Thomas Merton — Zen e as Aves de Rapina — Sobre o saber (scientia)
Vejamos mais de perto dois trechos patrísticos sobre a ciência (scientia) ou o conhecimento (gnosis — episteme), como ocorreu na queda de Adão. Diz Santo Agostinho:
“Essa ciência é descrita como o conhecimento (gnosis — episteme) do bem e do mal porque a alma deve abrir-se ao que se situa para além dela, isto é: Deus. E deve esquecer-se do que está abaixo dela, ou seja, o prazer do corpo. Mas se a alma, abandonando a Deus, volta-se sobre si mesma e deseja gozar o poder espiritual que lhe é próprio como se fora Deus, incha-se ela de orgulho que é o princípio de todo pecado. E, quando, punida por seu pecado, aprende por experiência qual a distância que separa o bem de que desertou do mal em que caiu. É isso, portanto, o que significa haver provado do fruto da árvore do conhecimento (gnosis — episteme) do bem e do mal” (De Genesi Contra Manichaeos, IX. Migne, P. L., vol. 34, col. 203).
E ainda noutro lugar:
“Quando a alma abandona a sabedoria (saptentia) do amor, que é sempre imutável e una, e deseja a ciência (ou o conhecimento (gnosis — episteme), scientia) pela experiência das coisas temporais e mutáveis, torna-se inchada em lugar de edificada. E assim vergada, a alma separa-se da felicidade do bem como que movida por seu próprio peso” (De Trinitate XII, II — Migne, P. L., vol. 42, col. 1007).
Algumas breves palavras de comentário poderão clarificar esse conceito de “conhecimento (gnosis — episteme)” e seus efeitos.
Em primeiro lugar, o estado em que o homem é criado é um estado de não-autoconsciência que se “abre” ao que é metafisicamente mais elevado que ele e, contudo, intimamente presente ao seu ser íntimo, de maneira que ele próprio está escondido em Deus e unido a ele. É isso que, para Santo Agostinho, corresponde à inocência do paraíso e ao “vazio”. O conhecimento (gnosis — episteme) do bem e do mal começa com a fruição das coisas sensíveis e temporais queridas por elas mesmas. É esse ato que torna a alma consciente de si própria e a centra em seu próprio prazer. Isso desperta a alma para o que nela é bom e mau “por si mesmo”. Logo que isso ocorre, opera-se uma completa mudança de perspectiva e, deixando a unidade e a sabedoria (identificadas ao vazio e à pureza), a alma cai num estado de dualismo. Fica, então, consciente tanto de si própria como de Deus como seres separados. A alma vê, agora, Deus como objeto de desejo ou de temor e não mais se perde n’Ele como num sujeito transcendente. Além disso, está consciente de Deus como ser antagonista e hostil. E, contudo, a alma sente-se atraída ao Senhor como a seu mais elevado bem. Mas a experiência que tem de si mesma torna-se um “peso” que a faz gravitar para longe de Deus. Cada ato de auto-afirmação aumenta a tensão dualista entre o eu e Deus. Lembremo-nos da palavra de Santo Agostinho: “amor meus, pondus meum.” “Meu amor é um peso, uma força de gravidade”. Na medida em que se ama as coisas temporais, adquire-se uma substancialidade ilusória e uma personalidade que gravita “para baixo”. Isto é, adquire-se uma necessidade para coisas mais baixas na escala do ser do que a própria pessoa. Depende-se dessas coisas para a própria auto-afirmação. Finalmente, essa atração gravitacional torna-se uma escravidão a preocupações materiais e temporais, e acaba em pecado.
Entretanto, este próprio “peso” é uma ilusão. É um resultado da “inchação” do orgulho, mero peso oco, sem realidade. O eu que aparenta estar sendo atraído para baixo pelo peso do seu amor e enredado pelas coisas materiais é, de fato, algo de irreal. No entanto, retém uma existência empírica que lhe é própria; é aquilo no qual pensamos ser. E esta existência empírica é fortalecida por cada ato de desejo egoísta ou de medo. Não é o eu verdadeiro, a pessoa cristã, a imagem de Deus marcada pela semelhança do Cristo. É o falso eu, a imagem desfigurada, a caricatura, o vazio que inchou e está cheio de si mesmo, de maneira a criar para si uma substancialidade fictícia. Assim é que Santo Agostinho comenta a frase de São Paulo: scientia inflat. “O saber incha”.
Esses dois trechos tirados de Santo Agostinho são comentários suficientemente paralelos ao que se processa na sentença descrita pelo Dr. Suzuki: “Do vazio da mente surge de modo misterioso um pensamento e temos então o mundo das multiplicidades”. Evidentemente, não estou procurando insistir no fato de que Santo Agostinho nos ensina o Zen. Longe disso! Existem profundas e significativas divergências que não precisamos estudar aqui. Seja suficiente termos dito haver também certas semelhanças importantes, devidas, em grande parte, ao platonismo de Santo Agostinho.
Desde que nos encontramos no estado do “conhecimento (gnosis — episteme) do bem e do mal”, temos de aceitar o fato e compreender nossa posição. Temos de vê-la em relação à inocência para a qual fomos criados, que perdemos e que podemos recuperar. Entretanto, trata-se de considerar o conhecimento (gnosis — episteme) e a inocência como realidades complementares. Foi esse o mais delicado problema que os padres do deserto tiveram que enfrentar e para muitos deles foi desastroso. Reconheceram a diferença entre o “conhecimento (gnosis — episteme) do bem e do mal” de um lado e entre inocência e o vazio, do outro. Mas, como o Dr. Suzuki sabiamente observou: correram o risco de soluções demasiadamente simplificadas e abstratas. Foram muitos os que quiseram contentar-se com a inocência, deixando de lado o conhecimento (gnosis — episteme). Em nossas “sentenças”, João, o Anão, é um exemplo a focalizar. Quer atingir um estado em que não existe a tentação, nenhum sinal da menor paixão. (NA: «Disse o Abade Pastor que o Abade João, o Anão, havia rezado pedindo ao Senhor retirar-lhe todas as paixões. Tornou-se, assim, impassível. Nessas condições foi procurar um dos anciãos e disse-lhe; Vês diante de ti um homem inteiramente tranqüilo que não sofre mais paixão alguma. Respondeu-lhe o ancião: Vai, e roga ao Senhor para que ordene que em ti suceda alguma luta, pois a alma somente nos combates é amadurecida. E, quando recomeçaram as tentações, João, o Anão, disse, apenas, sem orar, para que lhe fossem retiradas as paixões: «Senhor, dá-me forças para chegar ao fim da luta». The Wisdom of the Desert, XCI.) Pois tudo isso nada mais é do que um requinte de “conhecimento (gnosis — episteme)”. Ora, em vez de levar à inocência, leva a mais pura quinta-essência do amor de si próprio. Leva à criação de um pseudo-vazio, um ser requintadamente purificado que é tão perfeito que pode descansar em si mesmo sem nenhum vestígio de grosseira reflexão. Isso, porém, não é vazio: permanece um “eu” que é o sujeito da pureza e o possuidor do vazio. E isto, como o viram os padres do deserto, é o triunfo final do sutil tentador. Deixa o homem enraizado e aprisionado em seu ser apenas, um espírito descobridor do bem e do mal, do eu e do não-eu, da pureza e da impureza do coração. Mas não é inocente, é um mestre do saber espiritual. E, como tal, está ainda sujeito à acusação do demônio. Uma vez que ele é perfeito está sujeito à maior de todas as ilusões. Se fosse inocente, estaria livre da ilusão.
O homem que encontrou realmente sua nudez espiritual, que compreendeu que está vazio, não é um “eu” que adquiriu o vazio ou tornou-se vazio. Está simplesmente “vazio desde o início”, como observou o Dr. Suzuki. Ou, para empregar os termos mais afetivos de Santo Agostinho e de São Bernardo, este homem “ama com um amor puro”. Quer isso dizer que ele ama com uma pureza e uma liberdade que brotam espontânea e diretamente do fato de que ele recuperou plenamente a semelhança divina e é agora, plenamente, seu verdadeiro ser, pois está perdido em Deus. É um com Deus e está com Ele identificado e, assim, nada sabe de um ego dentro de si. Tudo o que sabe é amor. Como diz São Bernardo: “Quem ama assim, ama simplesmente, e nada mais sabe do que o amor”. Qui amat, amat et aliud novit nihil.
Tivessem ou não facilidade em expressar plenamente essa espécie de vazio, o certo é que os padres do deserto se esforçavam por consegui-lo. E seu instrumento para abrir as sutis fechaduras da ilusão espiritual era a virtude da discretio. A mais importante de todas as virtudes, ensinava Santo Antão, era a discretio. a discrição. A discrição lhe ensinara o valor de um trabalho manual simples. A discrição ensinou aos padres do deserto que a pureza de coração não consistia simplesmente no jejum e na automaceração. A discrição, chamada também o discernimento dos espíritos, está, de fato, muito próxima do conhecimento (gnosis — episteme), uma vez que sabe distinguir entre o bem e o mal. Exerce, porém, suas funções à luz da inocência e em referência ao vazio. Não julga a discrição em termos de normas abstratas, mas, de preferência, em termos da pureza interior do coração. A discrição pronuncia julgamentos e indica opções, mas o juízo e a opção sempre orientam para a direção do vazio, ou pureza de coração. A discrição é uma função da humildade; é, portanto, um ramo do saber que se situa para além do alcance da perversão ou da interferência do demônio (Cf. Cassiano, Conferência II, De Discretione, Migne, P. L., vol. 49, c. 523 ss.).