Merton Purificatio

Thomas Merton — A Vida Silenciosa

Puritas Cordis (cont.)

Essa pretensão radical, psicológica à onipotência é a profunda impureza que mancha e divide a alma pura do homem. Essa exigência da parte de uma criatura limitada para ser tratada como o Ser Supremo e Absoluto é a terrível ilusão que nos condena à escravidão cias paixões, da loucura e do pecado.

Evidentemente, só os psicopatas são capazes de declarar abertamente, com toda a franqueza, essa oculta pretensão. E é isso que os faz psicopatas. Desistiram da relativa normalidade, que exige que ocultemos essa absurda fantasia nas profundezas de nossa alma. Arrojaram-se o direito de não fazer caso algum da realidade, para viver num mundo que convém ao seu ideal imaginário; isto é, mostram-se abertamente como «deus», fazendo surgir um universo que eles próprios fabricaram, aniquilando (tanto quanto podem) toda outra realidade.

Aqueles que entre nós concordamos em chamar «sãos», são os que mantêm a pretensão pessoal à absoluta perfeição e onipotência recalcada e disfarçada debaixo de certos símbolos mentais aceitos, e só fazem valer a sua pretensão em atos tornados aceitos por uma aparência externa de inocuidade e utilidade social.

Há muitas maneiras aceitáveis e «sãs» de fazer valer a ilusória pretensão ao poder divino. Pode-se, por exemplo, ser um pai ou uma mãe tirânicos — ou um pai ou mãe lacrimejante tipo-mártir. Pode-se ser um patrão sádico ou amigo do autoritarismo, ou ainda um enervante maníaco de perfeição. Pode-se ser um palhaço ou um arrojado ou um libertino. Pode-se ser rigidamente convencional ou ostensivamente inconvencional. Pode-se ser um ermitão ou um demagogo. Alguns satisfazem o desejo que têm de serem divinos, metendo-se em tudo na vida alheia. Outros, julgando o próximo ou lhe dizendo o que deve fazer. Pode, alguém, infelizmente, procurar a santidade e a perfeição religiosa como forma inconsciente cia satisfação dessa profunda e oculta impureza da alma que é o orgulho do homem.

O grande inimigo da pureza de coração monástica é, portanto, o projeto básico, oculto, de ser melhor do que os outros, de fazer valer a própria liberdade à custa da liberdade alheia, de exaltar a própria vontade sobre a vontade dos outros e de elevar o próprio espírito acima dos espíritos dos que julgamos medíocres.

Desse projeto básico, central, vêm todos os outros projetos e ideais ilusórios. A alma impura vê-se devorada e dividida pelos incessantes esforços que faz para fazer valer sua pretensão radical, enquanto a mantém disfarçada debaixo de um exterior aceitável.

A vida de uma alma pura torna-se extremamente simples. Mas a alma impura é e deve ser singularmente complicada. Há tanta coisa a fazer! É preciso fazer-se valer e se exaltar e, ao mesmo tempo, crer-se humilde e pronto ao sacrifício de si. É preciso acariciar, a todo custo, o sentimento de santidade e nobreza de que dependem a paz e a felicidade dessa alma. Portanto, é necessário estar alerta para notar todas as fraquezas e imperfeições dos outros, porque são, potencialmente, rivais. E é necessário ainda que esses outros sejam punidos «caridosamente» e humilhados «docemente» para que não levantem a cabeça à altura da nossa no caminho real da santidade. É preciso tomar cuidado para que, enquanto, abertamente, faz-se alarde de renunciar à vontade própria, essa vontade seja secretamente satisfeita. É preciso assegurar-se de que desejo algum deixe de ser satisfeito. Em uma palavra, cumpra-se a nossa vontade na terra como se cumpre, no céu, a vontade de Deus!

Uma vez que tudo isso é manifestamente impossível, S. Bernardo faz notar que essa alma está inevitavelmente sujeita à insegurança e ao medo. O medo é a «cor» que escurece a alma e torna obscura a imagem divina, retorcendo-a em um ídolo e uma caricatura. O medo é a «impureza» da alma que aspira a ser onipotente.

O homem decaído, portanto, é alguém em quem a Imagem Divina, ou o livre arbítrio, se tornou escravo por se ter feito o seu próprio ídolo. A imagem de Deus é falseada pela «dessemelhança». Sob a tirania desse ídolo, a própria liberdade se transforma em escravidão e o homem se atormenta, tentando querer o impossível, tentando verificar e provar sua absurda pretensão de ser um «deus».

Qual é a resposta? Já a encontramos. É o sacramento da cruz, a fé e a obediência de Cristo que, como diz S. Pedro purificam nossos corações.1 O orgulho íntimo do homem decaído tem de ser crucificado na cruz da Verdade. O amor da Verdade e da cruz põe por terra o ídolo, coloca o homem em seu verdadeiro nível, devolve-lhe a liberdade, liberta-o do medo, fortifica-lhe a caridade e o torna capaz de viver e agir como filho de Deus. «A verdade vos libertará» (Jo 8, 32).

Por isso é que S. Bento, depois de haver descrito os doze degraus da humildade interior e exterior (cada qual sendo participação no mistério da obediência de Cristo) declara que «quando todos esses degraus tiverem sido galgados, alcançará logo o monge a perfeita caridade que expele todo temor».2

Pureza de coração, perfeito amor, eis o início da unidade interior do monge. Libertado das ilusões e dos projetos egoístas, salvo da dolorosa necessidade de servir a sua inexorável vontade própria, começa o monge a experimentar como é suave o jugo do serviço de Cristo e leva o fardo da liberdade divina! Seus olhos se abrem e, pela primeira vez, começa a ver-se e aos outros como realmente são. Não estando mais obrigado a satisfazer em primeiro lugar a seus caprichos e paixões, descobre que todas as coisas lhe causam alegria e felicidade, porque ele as prova na liberdade dos filhos de Deus. Isto é, pode utilizá-las sem a elas pertencer e possuí-las sem delas ser escravo.

A pureza de coração é, também, o início da união do monge com seus irmãos. União verdadeira, pois a caridade monástica não é apenas um «contrato social», um acordo a que se chega pelo consentimento de vários egoísmos; é a pureza de coração, que se alcança somente quando todas as vontades separadas de cada irmão se transformam em uma só vontade, a vontade comum, a vontade de Cristo. A essa comunidade de vontades não se pode chegar por um contrato como para um negócio. É um amplexo das almas na pureza do Espírito de Deus.

Esse abraço de todas as purezas unidas, de vontades limpas e desinteressadas, de almas que se perdem na luz de Deus é o mais alto cume do ideal cenobítico. Todas as almas chamadas à união com Deus são fundidas como o ferro no fogo e transformadas, juntas, na Luz de Deus. Então, o próprio Deus nelas vive, age e se manifesta. Conhece-se a si mesmo, nelas, abraça, nelas, a própria bondade d’Ele tornando-as capazes de partilhá-la uns com os outros. Assim como o Pai está no Filho, assim o Filho está neles e eles são todos um no Pai e no Filho. Aqui temos a realização do mistério da Eucaristia, que é o coração da vida monástica.

Quando, porém, se há de chegar a essa plena realização? Poderá ser perfeitamente alcançada aqui na terra? Quem o pode dizer? Em todo caso quando monges vivem juntos, como devem, na caridade de Cristo e na pureza do Espírito de Deus, carregando os fardos uns dos outros, e se ajudando mutuamente a se encontrarem n’Ele, é que ao menos começam, na terra, a construir a cidade celeste.



  1. Castificantes corda vestra in obedientia caritatis (I Ped 1, 22). 

  2. S. Regra, cap. 7.