Thomas Merton — POESIA E CONTEMPLAÇÃO — INTRODUÇÃO
O monge é um cristão que, respondendo a um convite especial de Deus, deixa os interesses de caráter mais ativo de uma vida mundana para entregar-se totalmente à “Boa Nova” do reino de Deus, à “conversão” (metanoia) num espírito de renúncia e de oração. Em termos positivos, devemos entender a vida monástica sobretudo como vida de oração. Os elementos “negativos”: silêncio, solicitude, jejum, obediência, “penitência”, renúncia à propriedade e à ambição, têm todos em vista de-sobstacular o caminho, de maneira que a oração — meditação e contemplação — possa ocupar o espaço criado pelo abandono de outros interesses.
Nestas páginas, o que está descrito sobre oração interessa primeiramente aos monges. Entretanto, assim como um livro sobre psicanálise escrito por um psicanalista é, antes de mais nada, para analistas pode também (se não for demasiadamente técnico) atrair um leigo interessado por esses assuntos, do mesmo modo, um estudo prático, não acadêmico, sobre a oração com fontes monásticas, deve ser de interesse para cada cristão, uma vez que todo cristão está destinado de algum modo a ser uma pessoa de oração. Embora o desejo de solicitude e a vocação à vida monástica sejam a meta de poucos, todos os cristãos devem, pelo menos em teoria, interessar-se suficientemente pela oração para poder ler e utilizar o que aqui se diz para monges, adaptando-o às circunstâncias de sua própria vocação. É claro que, pressionados pelo ambiente da vida urbana contemporânea, muitos se encontrarão frente à necessidade de um certo silêncio interior e de uma medida de disciplina, simplesmente para impedir um desequilíbrio e manter sua identidade humana e cristã e a liberdade espiritual. Para realizar isso, poderá acontecer que procure com freqüência ter momentos de retiro e oração, onde possa aprofundar sua vida meditativa. Estas páginas descrevem a oração de preferência a técnicas especiais restritas; aquilo, portanto, que é dito aqui aplica-se à oração de qualquer cristão, embora com um pouco menos de ênfase, talvez, no que concerne às provações próprias à vida de solitude.
A oração monástica é, antes de mais nada, essencialmente simples. No monaquismo primitivo, a oração não era necessariamente litúrgica, conquanto não tenha demorado muito a ser considerada a liturgia como a especialidade dos monges e cônegos. Em realidade, os primeiros monges no Egito e na Síria tinham apenas uma liturgia das mais rudimentares. A oração pessoal daqueles monges era direta e de modo algum complicada. Por exemplo: lemos nas “Sentenças” dos Pais do Deserto (Apophtegma 19, P. G. 34:249.) como um monge interrogou São Macário a fim de saber como devia orar. Respondeu-lhe o monge: “Não é preciso empregar muitas palavras. Basta abrir os braços e dizer: Senhor, tem compaixão de mim como desejas e como bem sabes ter! E se o inimigo te pressiona fortemente, dize: Senhor, vem em meu auxílio !” Nas Conferências sobre a Oração, de João Cassiano (Conferência 10), vemos como os primeiros monges enfatizavam a simplicidade da oração composta de curtas frases hauridas nos salmos ou em outras partes da Escritura. Urna das preces mais freqüentemente utilizadas era Deus in adjutorium meum intende, “Ó Deus, vem em meu auxílio” (Salmo 69,2).
À primeira vista, poder-se-ia perguntar o que teriam essas orações, tão simples, a ver com uma vida de “contemplação”. Os Pais do Deserto, em primeiro lugar, não se tinham em couta de místicos, embora muitas vezes o fossem de fato. Cuidavam em não correr atrás de experiências extraordinárias ; contentavam-se em lutar pela “pureza de coração” e em controlar seus pensamentos, para manter as mentes e os corações desimpedidos, livres de todo apego e toda preocupação, de maneira a poder, esquecidos totalmente de si próprios, aplicar-se inteiramente ao amor e ao serviço de Deus.
Este amor expressava-se, em primeiro lugar, em relação à Palavra de Deus. A oração era hau-rida nas Escrituras, especialmente nos salmos. Os primeiros monges consideravam o saltério, não apenas como uma espécie de compêndio de todos os livros da Bíblia, mas como um livro de particular eficácia para a vida ascética, pois revelava os movimentos secretos do coração em sua luta contra as forças das trevas (SANTO ATANÁSIO, Ep. ad Marcellinum). Os “Salmos de batalha” eram todos interpretados como referindo-se à guerra interior contra a paixão e os demônios. A Meditação era sobretudo a meditatio scripturamm (Cf. DOM JEAN LECLERCQ, Love of Learning and the Desire of God (N. York, Fordham University Press, 1961). Caps. I e IV.). Não devemos, contudo, imaginar que os primeiros monges se aplicassem a uma “meditação” muito intelectual e analítica da Bíblia. Para eles, a meditação consistia em fazer das palavras da Bíblia algo que lhes pertencesse; memorizavam-nas e repetiam-nas com simples e profunda concentração “de cor”, isto é, com o coração. Assim, o “coração” tem papel central nessa forma primitiva de oração monástica.
A São Macário foi pedido explanar a frase de um salmo: “A meditação do meu coração está diante de ti.” Deu, então, uma das mais antigas descrições daquela “oração do coração” que consistia em invocar o nome do Cristo com profunda atenção, na própria raiz de nosso ser, isto é, “no coração”, considerado como a fonte e raiz de nossa verdade interior. Invocar o nome de Cristo em “nosso coração” eqüivalia a apelar para Ele com a mais profunda e sincera intensidade de fé, manifestada pela concentração de todos o nosso ser sobre uma oração despojada de tudo que não é essencial e reduzida a nada mais do que a invocação do seu nome, com simples pedido de auxílio. Disse Macário: “Nenhuma meditação é mais perfeita do que o Nome bendito e salvífico de Nosso Senhor Jesus Cristo que habita sem interrupção em ti, como está escrito: ‘Soltarei gemidos como a andorinha, murmurarei como a pomba!’ (Cântico de Ezequias: Isaías, 38). É isso que faz o homem interiorizado que persevera em invocar o Nome salvífico de Nosso Senhor Jesus Cristo.” (Cf. AMELINEAU, citado por RESCH em Doctrine Ascétique des Premiers Maîtres Egyptiens, pág. 151)
Os monges das Igrejas Orientais na Grécia e na Rússia têm, durante séculos, utilizado um manual de oração, a Philokalia. Trata-se de uma antologia de citações dos pais da vida monástica no oriente, do terceiro século até a Idade Média. Tudo neste livro gira em torno da “oração do coração”, ou a “oração de Jesus”. Na escola de contemplação hesicasta, que floresceu nos centros monásticos do Sinai e do Monte Atos, esse tipo de oração desenvolveu-se numa técnica especial quase esotérica. Nestas páginas, não entraremos nos pormenores dessa técnica que, por vezes (de maneira um tanto irresponsável), tem sido comparada ao ioga. Enfatizaremos somente a simplicidade essencial da oração monástica no tocante à “oração do coração”, que consistia no recolhimento interior (ou concentração), no abandono dos pensamentos que distraem a mente e na humilde invocação do Senhor Jesus com palavras da Bíblia, num espírito de fé intensa. Esta simples prática é considerada de importância crucial na oração monastica da Igreja Oriental, uma vez que se crê no poder sacramentai do Nome de Jesus para atrair o Espírito Santo ao coração daquele que ora. Um texto tipicamente tradicional diz:
Somos enriquecidos pela fé (e, se quer eis, pela esperança e a humildade) com que se invoca o dulcíssimo Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Somos, também, enriquecidos pela paz e pelo amor. Pois, em realidade, trata-se de uma árvore vivificadora de três galhos, por Deus plantada. Aquele que, em tempo oportuno, a toca e dela se alimenta como convém colherá vida infinita e eterna em lugar da morte, como sucedeu a Adão… Nossos gloriosos Mestres… em quem vive o Espírito Santo, ensinam-nos sabiamente, a todos, especialmente àqueles que desejaram entregar-se ao divino silêncio (isto é, os monges) e se consagraram a Deus, renunciando ao que é mundano, a praticar com sabedoria o hesicasmo e a escolher sua misericórdia com esperança inquebrantável. Esses têm, como prática constante e ocupação, invocar o seu santo e dulcíssimo Nome, trazendo-o sempre na mente, no coração e nos lábios… (KADLOUBOVSKY and PALMER, Writings jrom the Phüokalia on Prayer of the Heart, págs. 172-173).
A prática de manter sempre o Nome de Jesus presente na raiz de nosso ser era, para os antigos monges, o segredo do “controle dos pensamentos” e da vitória sobre a tentação. Acompanhava todas as demais atividades da vida monástica, impregnando-as de coração. Aí estava a essência da meditação monástica; uma forma especial do hábito da presença de Deus colocado por São Bento na Regra, como pedra angular da vida e da meditação monásticas. Esta prática ou este hábito básico podia, é claro, ser desenvolvido de maneira a incluir o pensamento da paixão, morte e ressurreição de Cristo. Santo Atanásio foi um dos primeiros a associá-lo aos diferentes momentos das Horas Litúrgicas (De Virginitate, 12-16).
Contudo, para manter a simplicidade, aqui nos concentraremos nas formas mais elementares da meditação monástica. Explanarei a oração do coração como um meio de nos mantermos em presença de Deus e da realidade enraizados em nossa própria verdade interior. Invocarei eventualmente os antigos textos. Mas o desenvolvimento do tema será essencialmente moderno.
Afinal, alguns dos temas básicos do existencialismo de Heidegger, colocando, como se sabe, em relevo o fato inelutável da morte, a necessidade de autenticidade no homem e, ainda, uma espécie de libertação espiritual, podem lembrar-nos que o clima no qual a oração de tradição floresce não está totalmente alheio ao nosso mundo moderno. Muito pelo contrário. Estamos numa época em que, por sua própria natureza, como tempo de crise, de revolução, de luta, exige a busca e a interrogação especiais, que constituem o trabalho do monge em sua meditação e em sua oração. Pois o monge procura interrogar não só o seu próprio coração; mergulha profundamente no coração do mundo, do qual permanece fazendo parte, embora pareça tê-lo “deixado”. Em realidade, o monge afasta-se do mundo unicamente para poder escutar com maior intensidade as vozes mais profundas e mais desprezadas que surgem daquilo que no mundo há de mais profundo e interior.
Por isso é que o termo “contemplação” se torna tanto insuficiente como ambíguo quando aplicado às mais elevadas formas de oração cristã. Nada é mais alheio à autêntica tradição monástiea e “contemplativa” (isto é, carmelitana) na Igreja do que uma espécie de agnosticismo que exaltaria o contemplativo acima do cristão comum, introdu-zindo-o num domínio de conhecimento (gnosis — episteme) e de experiências esotéricos, livrando-o das lutas, preocupações e sofrimentos comuns à existência humana, colocando-o num plano elevado, num estado privilegiado entre os espiritualmente puros, como se fosse quase um anjo, invocado pela matéria e as paixões e, afinal, sem estar mais familiarizado com a economia da cruz, dos sacramentos e da caridade. O caminho da oração monástiea não é algo que leve a uma fuga sutil da economia cristã da encar-nação e da redenção. É um modo especial de seguir o Cristo, de participar da sua paixão e ressurreição e da sua obra redentora em relação ao mundo. Por esta mesma razão, as dimensões da oração em solitude são as mesmas da angústia comum ao homem, de sua busca de si mesmo, de seus momentos de náusea em face de sua vaidade, falsidade e capacidade de traição. Longe de estabelecer alguém numa segurança narcisista intangível, o caminho da oração nos coloca cara a cara com a impostura e a indignidade do falso eu que procura viver unicamente para si mesmo e saborear as “consolações da oração” egoistamente. Este “eu” é pura ilusão e, por fim, quem vive nesta ilusão tem de acabar ou num estado de náusea ou na loucura.
Por outro lado, temos de admitir que a vida social, a chamada “vida mundana”, promove a seu modo esta existência narcisista e ilusória, até os último limites. O estranho estado de alienação e de confusão do homem na sociedade moderna é talvez mais “suportável” porque é vivido em comum, com uma multidão de distrações e fugas — e também com oportunidades de ação fecunda e autêntico esquecimento de si cristão. Porém, subjacente a toda vida, está a raiz da dúvida e da auto-inter-rogação que mais cedo ou mais tarde nos levará a encontrarmo-nos face a face com o sentido último da vida. Essa auto-interrogação jamais poderá prescindir de um certo “temor” existencial — um senso de insegurança, de nos sentirmos “perdidos”, de exílio e de pecado. É um senso de que, de algum modo, não fomos verdadeiros, não tanto para com uma moral abstrata ou algumas normas sociais, e sim para com a nossa própria e mais íntima veracidade. “Temor”, neste sentido, não é o simples medo infantil de represália, ou um sentido ingênuo de culpabilidade, o medo de violar os tabus. É uma consciência profunda de que somos capazes de uma total má fé para conosco e para com os outros: de que somos uma mentira viva.
A dimensão monástica peculiar a esta luta está no fato de que a própria sociedade, a vida institucionalizada, a organização, o “caminho aprovado” pode, em realidade, nos estar incentivando a viver nessa falsidade e ilusão. A raiz profunda do “temor” monástico é o conflito interior que nos faz adivinhar que, para sermos leais para com Deus e para conosco, devemos romper com as normas estabelecidas e seguras que nos são familiares e partir para o desconhecido. “Se alguém odiar seu pai e sua mãe”… Essas palavras de Cristo indicam de certo modo a profundidade do conflito que está subjacente a toda conversão cristã — o voltar-se para uma libertação baseada, não mais na aprovação social e numa relativa alienação, e sim na dependência direta para com Deus invisível e imperscrutável, na fé pura.
É preciso dizer sem demora que esta luta não termina no portão do mosteiro. Pode mesmo, muitas vezes, surgir de novo num conflito em que está em jogo a própria vocação monástica, A meta da renovação e transformação monástica é procurar meios pelos quais monges e monjas possam permanecer fiéis à sua vocação, aprofundando-a e desenvolvendo-a, sob formas novas. Não se trata apenas de sacrificar suas vidas para reanimar estruturas antigas. Trata-se de coordenar seus esforços com o fim de criar novas formas de vida monástica, novas áreas de experiência contemplativa.
Precisamente aqui é que está o principal serviço do monge em relação ao mundo. Esse silêncio, essa escuta, esse questionamento, essa humilde e corajosa abertura àquilo que o mundo ignora sobre si mesmo — tanto o bem como o mal. Se na parte final deste estudo falarmos com freqüência do conceito do “temor”, será nesse sentido existencial.
O monge que é realmente homem de oração c que enfrenta com seriedade os desafios de sua vocação em toda a sua profundidade encontra-se, por esse mesmo fato, exposto ao temor existencial. Experimenta em si o vazio, a falta de autenticidade, a busca da fidelidade, o senso de estar “perdido”, do homem moderno, mas experimenta tudo isso de maneira inteiramente diferente e mais profunda do que o homem que vive em pleno mundo moderno, para quem esta desconcertante percepção de si próprio e do seu mundo vem antes como uma experiência de tédio e de desorientação espiritual. O monge faz o confronto entre sua própria humanidade e a do seu inundo, no ponto mais profundo e central, onde o vácuo parece abrir-se para um negro desespero. O monge camusiano confronta “o absurdo” e o transcende apoiado em sua liberdade. A opção pelo desespero absoluto é transformada em esperança perfeita pela pura e humilde súplica da oração monástica. O monge enfrenta o pior e nele encontra a esperança do que há de melhor. Das trevas nasce a luz. Da morte, vida. Do abismo surge, inexplicavelmente, o dom misterioso do Espírito enviado por Deus, a fim de tornar todas as coisas novas, de transformar o mundo criado e redimido e restaurar tudo em Cristo.
Esta é a obra criadora, a função curativa do monge, realizado no silêncio, na nudez do espírito, no vazio, na humildade. É uma participação na morte salvífica e na ressurreição do Cristo. Todo cristão, portanto, pode, se assim o deseja, abrir-se a esta dimensão de silêncio da oração e da reflexão meditativa da Igreja, em comunhão com ela, Igreja do Deserto.