Merton Poesia e Contemplação IV

Thomas Merton — Poesia e Contemplação
Excertos da tradução do Mosteiro da Virgem (Petrópolis)

IV

OUTRO obstáculo. E talvez seja ele mais comum. Trata-se da inércia espiritual, da confusão interior, da frieza, da falta de confiança. Pode esse ser o caso dos que, depois de haverem iniciado bem, experimentam o inevitável “tombo” que surge quando a vida de meditação começa a tornar-se séria. Aquilo que no princípio parecia fácil e agradável, de repente mostra-se totalmente impossível. A mente não funciona. Não se consegue concentrar em coisa alguma. A imaginação e as emoções vagueiam. Por vezes disparam. A esta altura talvez, no meio de uma oração cheia de aridez, desolação e repugnância, inconscientes fantasias podem apoderar-se de quem medita. Podem ser desagradáveis e mesmo assustadoras. Com mais frequência, nossa vida interior torna-se simplesmente um deserto destituído de qualquer interesse.

Isso pode, sem dúvida, ser explicado como provação passageira (a “noite dos sentidos”), mas devemos enfrentar o fato de que é, muitas vezes, coisa mais séria. Pode ser o resultado de um ponto de partida errado no qual (devido ao habitual jargão usado nos livros sobre oração e vida ascética) surgiu uma ruptura entre a “vida interior” e os demais setores de nossa existência. Nesse caso, a suposta “vida interior” pode nada mais ser do que uma corajosa e absurda tentativa para evadir-se inteiramente da realidade. Sob pretexto de que aquilo que se acha “no interior” é, de fato, real, espiritual, sobrenatural, etc… cultiva-se a negligência e o desprezo pelo que é “exterior” como sendo mundano, sensual, material e oposto à graça. Isto é má teologia e mau ascetismo. É, de fato, mau sob todos os aspectos, pois, em lugar de aceitar a realidade tal como é, nós a rejeitamos para explorar algum domínio perfeito de ideais abstratos que, concretamente, não possuem realidade alguma. Muitas vezes, a inércia e a repugnância que caracterizam a chamada “vida espiritual” de muitos cristãos poderiam, talvez, ser curadas com um simples respeito pelas realidades concretas da vida cotidiana, pela natureza, pelo corpo, pelo trabalho que executamos, pelos nossos amigos, nosso ambiente, etc. Um falso sobrenaturalismo que imagina ser o “sobrenatural” uma espécie de região platônica de essências abstratas totalmente separadas e opostas do mundo concreto da natureza não oferece verdadeira base para uma autêntica vida de meditação e oração. A meditação não tem sentido nem é real se não está enraizada na vida. Sem essas raízes, nada pode produzir senão ressequidos frutos que geram repugnância, acedia e até mórbida e degenerada introversão, masoquismo, dolorismo, negação. Nietzsche expôs impiedosamente o desesperador acúmulo de desordens resultantes desta caricatura de cristianismo.1

Os principiantes podem começar por um outro falso ponto de partida que termina num misto de presunção e inércia. Havendo aprendido a desfrutar de alguns frutos da vida espiritual e tendo conseguido alguns pequenos êxitos, quando perdem tudo isso começam a olhar em redor de si procurando as razões do ocorrido. Estão convencidos de que alguém merece “censura” e, não vendo motivos para censurar-se a si mesmos (pois, afinal, não se trata talvez de ser alguém “censurado”), procuram uma explicação na sociedade monástica na qual vivem. Ora, precisamos admitir que o monaquismo se acha em plena crise de renovação, com todas as observâncias, e até mesmo os ideais, questionados cada dia. Não temos dificuldades em encontrar coisas a serem criticadas. O fato de que as críticas possam ter alguma base, não as torna, contudo, cm cada caso, razoáveis. E isso especialmente quando as críticas são puramente negativas e procuradas principalmente como um meio de desabafar a frustração e o ressentimento.

Muitos obstáculos à vida do pensamento e do amor — que é a meditação — vêm do fato de que as pessoas insistem em ficar emparedadas dentro de si mesmas para acariciarem seus pensamentos e suas experiências como uma espécie de tesouro particular. Interpretam mal a parábola evangélica dos talentos e, como resultado disso, enterram seu talento num lenço em lugar de fazê-lo produzir e aumentá-lo. Mesmo quando mergulhamos na vida contemplativa, o amor pelos outros e a abertura a eles permanecem, como, na vida ativa, a condição para uma vida interior viva e frutuosa de pensamento e amor. O amor pelos outros é um estímulo à vida interior, não um perigo, como alguns erradamente acreditam.

O padre Monchanin (vide Henri le Saux), um grande contemplativo de nossos tempos, sacerdote francês que fundou um ashram2 cristão no sul da Índia, disse o seguinte:

Mantenhamos viva a chama do pensamento e do amor; são a mesma e única chama. Comuniquemos aos que nos rodeiam o desejo de compreender e de dar (bem como de receber). Existem demasiadas consciências fechadas sobre si mesmas.3

Muitos monges bons e sérios, idealistas, desejam tornar sua vida uma obra de arte conforme a um modelo aprovado. Isto traz consigo instinto de auto-observação, de programar sua vida, de se remodelarem, de harmonizar e re-harmonizar todas as suas disposições interiores — ora, isso tem como resultado uma meditação e uma contemplação de si-próprios, com horário integral! Podem, infelizmente, achar essa ocupação de tal modo agradável e absorvente que chegam a perder todo interesse na ação invisível e imprevisível da graça. Em uma palavra, procuram construir sua própria segurança, evitar o risco e o temor implicados na submissão ao mistério desconhecido da vontade de Deus.

Outros obstáculos:

Desânimo — Perdemos toda confiança, torna-mo-nos secretamente convencidos de que nada podemos realizar no caminho da oração. Em realidade, também isso pode dever-se a uma fatal subjetividade que nos tenha levado a procurar os resultados errados — o cultivo de sentimentos e “realização” num nível imaturo. Há perigo aqui de regressão psicológica. Se estamos preparados a ir avante, a nos perdermos, não é caso de desânimo. O remédio é — esperança.

Confusão, desamparo — Um senso de incapacidade devido ainda ao abuso do subjetivismo; aprisionados em nós mesmos, tornamo-nos paralisados. O caminho é a . Que fazer diante desses obstáculos? O Novo Testamento não nos oferece técnicas e expedientes. Diz-nos que devemos voltar-nos para Deus, depender de sua graça, conscientizar-nos de que o Espírito Santo nos é dado, totalmente, em Cristo, que Ele reza em nós quando não sabemos rezar.

Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em vós. Pois todos os que são movidos pelo Espírito de Deus, estes são filhos de Deus. Assim, pois, não recebestes o espírito da escravidão, para outra vez cair no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: “Aba, Pai!” O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. Do mesmo modo, o Espírito ajuda a nossa fraqueza, porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis. Aquele que perscruta os corações sabe o que deseja o Espírito, porque ele só pede pelos santos segundo Deus.4

A atividade do Espírito em nós torna-se cada vez mais importante à medida que progredimos na vida interior de oração. É verdade que nossos próprios esforços permanecem necessários, pelo menos enquanto não forem inteiramente suplantados pela ação de Deus “em nós e sem nós” (conforme uma expressão tradicional). Porém, cada vez mais nossos esforços atingem nova orientação. Em lugar de sermos dirigidos para fins por nós mesmos escolhidos, e em lugar de serem medidos pelo proveito e o prazer que julgamos irão ocasionar, nossos esforços são cada vez mais orientados para uma submissão, obediente e cooperante com a graça, que implica em primeiro lugar uma atitude crescente de atenção e receptividade para com a ação oculta do Espírito Santo. É precisamente a função da meditação, no sentido em que aqui a descrevemos, levar-nos a essa atitude de conscientização e receptividade. Dá-nos também, essa meditação, força e esperança, justamente com uma profunda percepção do valor do silêncio interior no qual o mistério do amor de Deus nos aparece com clareza.


NOTAS


  1. Cf. EMMANUEL Mounier, The Spoils of the Violent. 

  2. N. da T. — Pequeno mosteiro. 

  3. Ecrits Spirituels, pág. 125. 

  4. Rom. 8, 11; 14-16; 26-27.