Thomas Merton — Poesia e Contemplação
Excertos da tradução do Mosteiro da Virgem (Petrópolis)
II
NO caminho da oração, como é descrito pelos escritores dos primórdios do monaquismo, a meditatio deve ser considerada em sua relação estreita com a psalmodia, a lectio, a oratio, e a contemplatio. Faz parte de um todo em continuidade, de vida inteira unificada, do monge: a conversatio monastica, o voltar-se do mundo para Deus. Separar a meditação da oração, da leitura e da contemplação é falsificar a imagem que temos do caminho monástico de oração. À medida que o caráter mais contemplativo da meditação se acentua, vemos que é, não só um meio em relação a um fim, mas que tem também algo da natureza da oração. Daí não ser tanto um caminho que nos leva a encontrar a Deus, como um meio de repousarmos nAquele que já encontramos, que nos ama, que está perto de nós, que vem a nós para atrair-nos a Ele: Dominas enim prope est.1 Oração, leitura, meditação e contemplação enchem o aparente “vácuo” da solitude e do silêncio monásticos com a realidade da presença de Deus. E, assim, aprendemos o verdadeiro valor do silêncio e chegamos a experimentar o vazio e a futilidade daquelas formas de distração e inútil e supérflua comunicação que em nada contribuem para a seriedade e simplicidade da vida de oração.
Seja o que for que se possa pensar do valor da celebração comunitária com toda espécie de canto e auto-expressão — e estas coisas têm, certamente, seu lugar — o tipo de oração de que tratamos aqui como sendo propriamente “monástica” (embora possa, também, enquadrar-se na vida de qualquer pessoa a ela atraída) é uma oração de silêncio, simplicidade; de unidade meditativa e contemplativa. É uma profunda integração pessoal, numa escuta vigilante, atenta “do coração”. A resposta que este tipo de oração atrai, geralmente não é de jubilação ou que possa ser ouvida: é uma entrega total, sem palavras, do coração, em silêncio.
A inseparável unidade do silêncio e da oração monástica foi bem descrita por um monge siríaco, Isaac de Nínive:
Muitos procuram avidamente, porém só encontram os que permanecem em contínuo silêncio… Todo homem que se regozija com uma multidão de palavras, mesmo que diga coisas admiráveis, é vazio interiormente. Se amais a verdade, sede amante do silêncio. O silêncio como a luz do sol, vos iluminará em Deus e vos libertará dos fantasmas da ignorância. O silêncio vos unirá ao próprio Deus…
Acima de tudo, amai o silêncio; ele vos traz frutos que a palavra não pode descrever. No início, temos de forçar-nos a ser silenciosos. Porém, nasce então algo que nos atrai ao silêncio. Possa o Senhor dar-vos uma experiência deste “algo” que brota do silêncio. Se somente praticardes isso, uma luz indizível brilhará sobre vós como consequência… depois de algum tempo uma certa doçura nasce no coração, deste exercício e o corpo é atraído, quase que à força, a permanecer em silêncio.
É preciso observar que, no contexto monástico, o termo oração mental gera um completo equívoco. Raramente oramos com a “mente” apenas. A meditação monástica, a oração, oratio, contemplação e leitura envolvem o homem todo; procedem do “centro” de seu ser, seu “coração”, renovado no Espírito Santo, totalmente submisso à graça do Cristo. A oração monástica começa, não tanto por “considerações” como por uma “volta ao coração”, pela descoberta do nosso centro mais profundo, pelo despertar das mais íntimas profundezas de nosso ser na presença de Deus que é a fonte de nosso ser e de nossa vida.
Nessas páginas, pois, o termo “meditação será empregado como sendo mais ou menos equivalente ao que os místicos da Igreja Oriental denominaram “a oração do coração” — pelo menos no sentido de uma oração geral, de uma oração que busca suas raízes na própria base de nosso ser, não apenas em nossa mente ou em nossos afetos. Na “oração do coração” buscamos o próprio Deus presente nas profundezas de nosso ser e aí o encontramos invocando o nome de Jesus com fé, admiração e amor.
O termo “oração mental” sugere infelizmente uma ruptura na vida de oração, entre oração “na mente” com ou sem “atos” específicos e a simples oração vocal, seja individual seja comunitária. Isto por sua vez, implica outra ruptura entre a oração pública e a individual. Toda espécie de problemas, é costume pensar, deriva deste suposto conflito. E, de fato, é bem verdade que, quando se está convencido de que há conflito entre essas “divisões” da vida de oração, resulta uma espécie de deslocamento espiritual. Mas, na tradição monástica primitiva, jamais houve esta divisão nem este conflito. Toda a vida do monge é uma unidade harmoniosa em que várias formas de oração têm seu próprio lugar e tempo — mas nesses momentos, de um modo ou de outro, o monge é considerado como “orando sempre”. São Basílio, por exemplo, quando fala daquilo que os modernos autores denominaram a “oração privada”, ou individual, descreve a oração do monge durante seu tempo de trabalho. Essa oração consiste, parte em salmos, parte em palavras simples e espontâneas do próprio monge — ou atos, sem palavras, dirigidos a Deus.
Para a oração e a salmodia, toda hora convém. Enquanto as mãos estão ocupadas com seus afazeres, podemos louvar a Deus com a língua ou, se não, com o coração… Assim, em meio a nosso trabalho podemos realizar o dever da oração, dando graças Àquele que concedeu força a nossas mãos para ocupar-nos de nossas tarefas, e inteligência às nossas mentes para adquirir conhecimentos… Conseguimos, assim, um espírito recolhido quando, em cada ação, rogamos a Deus o êxito de nossos trabalhos e satisfazemos a nossa dívida de gratidão para com Ele… e quando mantemos diante de nossa mente o fim que temos em vista: agradar-lhe2.
Na tradição céltica, existe um poema atribuído a São Columba, que descreve a vida eremítica numa ilha no oceano e dá alguma ideia das várias maneiras de orar que dão unidade a todas as atividades do dia num todo orgânico. Depois de se haver descrito como um exilado que “virou as costas à Irlanda, seu país”, e que se sente movido à compunção ao contemplar as ondas quebrarem-se na praia, descreve seu encantamento pela vida de dor e de louvor que leva:
Possa eu bendizer o Senhor
que tudo conserva —
O céu com suas incontáveis hierarquias,
A terra, a costa e a inundação,
Possa eu perscrutar os livros todos
Que fariam bem a qualquer alma;
Às vezes ajoelhando-me ante o amado céu,
Às vezes cantando salmos;
Às vezes contemplando o Rei dos Reis,
Senhor Santo.
Às vezes a trabalhar sem a isso ser forçado,
Como seria isso delicioso.
Às vezes buscando auxílio nos rochedos
Às vezes pescando
Às vezes dando de comer aos pobres
Às vezes num carcair (uma cela solitária)3
São Beda descreve também a constante meditação dos monges celtas e dos leigos que acompanhavam Santo Aidano em sua missão a Nortumbria no sétimo século. Atribui a vida de oração vital dos monges ao fervor do próprio Aidano.
Seu estilo de vida era tão diferente da mediocridade de nossa época! Todos os que o acompanhavam, tanto os monges como os leigos, ocupavam-se em meditar, -isto é, seja lendo as Escrituras, seja refletindo sobre os salmos. Essa era a maneira como ele empregava o dia, e também aqueles que com ele estavam, onde quer que fossem4.
Notem o sentido largo que Beda confere à meditação, identificando-a com lectio e salmodia. Notem também como ele não vê problema em relação ao fato de monges e leigos viverem o mesmo tipo de vida de oração simples, baseada na Bíblia.
Nesses trechos tradicionais, encontramos não somente uma visão muito simples, larga e sadia da vida de oração, mas a de uma vida inteiramente unificada e contudo diversa, em perfeita harmonia com a natureza. Está entendido, em primeiro lugar, que cada um reza como quer, ou vocalmente ou “em seu coração”. Aqui, a oração vocal significa evidentemente o canto, em voz alta, dos salmos. Esta maneira de orar não é uma luta para conseguir manter-se recolhido apesar do trabalho, de viagens ou outras atividades. Flui da vida cotidiana e está de acordo com o trabalho e outros deveres. É, de fato, um aspecto do trabalho do monge, um clima no qual o monge trabalha, uma vez que supõe uma percepção consciente e dependente em relação a Deus. Repito: as formas que essa “conscientização” toma não são definidas nem prescritas. Não há nenhuma insinuação de que o monge deva imaginar Deus “lá fora” ou em algum lugar. Cada um procederá de acordo com sua fé e capacidade próprias. O clima dessa oração é, portanto, um clima de conscientização, gratidão e amor totalmente obediente que nada procura senão agradar a Deus. Encontramos essa mesma simplicidade no capítulo 52 da Regra de São Bento. Ao falar da oração individual e privada, diz: “Se alguém deseja orar a sós, em segredo, entre simplesmente e ore, não em voz alta mas com lágrimas e o fervor do coração.” O clima da oração sugerido nessa expressão tradicional, “lágrimas e fervor do coração”, é o de compunção e amor.
O conceito de “coração” poderia bem ser aqui analisado. Refere-se à base mais íntima e profunda da personalidade de alguém. Trata-se do santuário interior, onde a autoconsciência ultrapassa a reflexão analítica e desabrocha em confrontação metafísica e teológica com o Abismo do incognoscível e, contudo, presente — Alguém que é “mais íntimo a nós do que nós próprios o somos”5.
NOTAS
N. da T. — “O Senhor está perto”, Carta de S. Paulo aos Filipenses. cap. 4 vers. 5. ↩
Regra Maior, Q. 37, Ascetical Works (N. York, 1950), pág. 308. ↩
Citado por W. G. Hanson em Early Monastic Schools of Ireland (Cambridge, 1927), pág. 22. ↩
História Eclesiástica, III, 5 ↩
Utilizando a frase de Santo Agostinho em suas Confissões ↩