Merton Pascoa

THOMAS MERTONTEMPO E LITURGIA
PÁSCOA: A VIDA NOVA
A Páscoa não será bem compreendida caso pensemos nela apenas como um tempo em que reafirmamos nossa na Ressurreição de Cristo dentre os mortos. O fato histórico de que a Ressurreição é a chave de toda a estrutura da cristã não é ainda razão suficiente para que a Páscoa seja a grande festa que é.

A Páscoa não é um dia a ser comparado ao “dia nacional da independência”, conquanto seja, em realidade, a celebração de nossa liberdade cristã. No entanto, essa celebração não é meramente uma lembrança do ato pelo qual fomos libertados, ela reanima nossa própria liberdade na renovação do mistério no qual nos tornamos livres.

Em todo caso, o mistério da Páscoa não é celebrado apenas na Páscoa, mas todos os dias do ano, porque a Missa é o mistério Pascal. O Tempo da Paixão, a Semana Santa, a Páscoa e os “cinquenta dias santificados” do ciclo pascal culminando na celebração de Pentecostes concorreram para desdobrar o Mistério Pascal diante de nós no tempo, em todos os seus pormenores. Todavia, a plenitude da Sexta-feira Santa, Páscoa e Pentecostes também se condensa no ritmo da Missa cotidiana. Pois, todas as vêzes que participamos dos Sagrados Mistérios, a Pascha Domini (a Passagem do Senhor), morremos com Cristo, com Ele ressuscitamos e d’Ele recebemos o Espírito da Promessa que nos transforma e nos une ao Pai, no Filho e através d’Ele.
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Páscoa é a hora de nossa libertação — libertação de quê? Precisamente da Quaresma e de sua Lei rígida que acusa e julga nossa fraqueza. Não estamos mais sob a Lei. Estamos libertados do julgamento severo!

Aqui está toda a grandeza e todo o inimaginável esplendor do mistério Pascal — aqui encontramos a “graça” da Páscoa que não conseguimos apreender porque temos medo de compreender-lhe todo o sentido. Para compreender a Páscoa e vivê-la, temos de renunciar ao nosso temor da novidade e da liberdade!

A morte exerce um duplo poder em nossas vidas: ela nos prende pelo pecado e nos prende pela Lei. Para morrer à morte e viver vida nova em Cristo, temos de morrer não só ao pecado, mas também à Lei.

Todo cristão sabe que deve morrer ao pecado. Mas a grande verdade que São Paulo se cansou de pregar a tempo e a contratempo é a verdade que nós, cristãos, mal apreendemos, uma verdade que nos escapou, que nos ilude constantemente e, assim, tem continuado há vinte séculos. Não nos conseguimos convencer do que significa não sermos mais escravos da Lei. E a razão é que não temos a coragem de encarar a verdade que contém o desafio crucial de nossa cristã, a grande realidade que torna o cristianismo diferente de toda outra religião.

Em todas as outras religiões, os homens procuram a justificação, a salvação, a fuga “da roda que leva do nascimento à morte” por meio de atos rituais ou observâncias religiosas ou práticas ascéticas e contemplativas. São meios inventados pelos homens para conseguir a libertação e a justificação deles próprios. Todas as outras religiões impõem aos homens leis rígidas e complicadas, sujeitando-o mais ou menos inteiramente a formas exteriores prescritas, ou ao que São Paulo denomina “noções elementares”.

Ora, o cristianismo é precisamente a libertação de todo sistema rígido e legal. São Paulo o assevera com força categórica. Diz que deixamos de ser cristãos no momento em que nossa religião se torna escravidão à “Lei” em vez de ser adesão pessoal, por meio de uma amorosa, ao Cristo ressuscitado e vivo: “Vós, que procurais a justificação pela Lei, vós rompestes com Cristo: decaístes da graça. Quanto a nós, é pelo espírito e mediante a que aguardamos seguramente o que a justificação nos faz esperar” (Gál 5,4-6). “Não tem valor algum a circuncisão, nem a incircuncisão. O que vale é a nova criatura” (Gál 6,15).

Assim, não tem o cristão outra Lei senão Cristo. Sua “Lei” é a vida nova que lhe foi conferida em Cristo. A Lei do cristão não está escrita em livros, e sim nas profundezas de seu coração, não com a pena do homem mas pelo dedo de Deus. O dever do cristão, agora, não é obedecer e sim viver. Não lhe compete salvar-se, está salvo por Cristo. Deve viver para Deus em Cristo, não apenas como alguém que procura a salvação, mas como alguém que já está salvo.

Poder-se-ia quase dizer que essa verdade é o grande “escândalo” do cristianismo. É a pedra constantemente rejeitada pelos construtores. É o elemento em nossa que tememos e nos recusamos a enfrentar. Como fizeram os judeus quando Jesus os desafiava curando no sábado e dizendo ser Ele o “Senhor do sábado”. Ouvi São Paulo:

“Foi para sermos livres que Cristo nos libertou”. “Deste modo, a Lei foi nosso pedagogo, para nos conduzir a Cristo, a fim de sermos justificados pela fé”. “Agora que conhecestes a Deus… quereis de novo, como outrora, vos tornardes escravos” (Gál 5,1; 3,24; 4,9).

Traduzido em nossos termos: a Páscoa é o mistério de nossa redenção. Uma vez que morremos e ressuscitamos com Cristo não somos mais pecadores. O pecado está morto em nós. A Lei não tem mais poder sobre nós.

Contudo, não é isso tão simples quanto pareça. Nossa vida nova em Cristo não é algo que possuímos de maneira permanente e garantida, entregue à nossa direção, uma “propriedade” definitivamente nossa. Estamos ainda suspensos sobre o abismo e podemos ainda cair no terrível temor do homem alienado que perdeu a confiança. Permanece todavia o fato de que, se consentimos nisso, a graça e a confiança se renovam a cada momento em nossas vidas. Não são uma posse permanente, mas um dom sempre atual do amor de Deus. Para termos essa liberdade de continuar, devemos crer, realmente, no poder de Deus para nos santificar e manter-nos santos. Temos de ousar ser santos pelo poder de Deus. Temos de ousar ter um santo respeito, uma reverência por nossa pessoa, pois fomos remidos e somos santificados pelo sangue de Cristo. Devemos ter a coragem de apreender o grande poder que nos foi dado, e devemos estar ao mesmo tempo conscientes de que esse poder sempre se aperfeiçoa na fraqueza e não é uma “posse”, uma “propriedade”.

E nossa fraqueza? E a lei que existe em nossos membros, a Lei do pecado e da morte?