Thomas Merton — Zen e as Aves de Rapina — Excerto de “A RECUPERAÇÃO DO PARAÍSO”
Um dos “santos” de Dostoievski, o Staretz Zosima, que fala como uma típica testemunha da tradição das Igrejas grega e russa, faz uma espantosa declaração. Diz ele: “Não compreendemos que a vida é um paraíso, pois é suficiente apenas desejar compreendê-lo, e logo o paraíso aparecerá diante de “nós em sua beleza”. Tomado no contexto de Os Irmãos Karamazov, com o pano de fundo de violência, blasfêmia e assassínio de que está cheio o livro, é de fato uma declaração surpreendente. Estaria Zosima realmente sério? Ou seria apenas um idiota iludido, sonhador de sonhos fantásticos inspirados pelo “ópio do povo”?
Seja qual for a opinião do leitor moderno sobre essa declaração, era ela certamente algo de básico para o cristianismo primitivo. Estudos contemporâneos sobre os padres da antigüidade têm revelado, sem a menor dúvida, que um dos motivos principais que impeliram os homens a abraçar a “vida angélica” (bios angelikos) de solidão e pobreza no deserto, foi precisamente a esperança de que, ao fazê-lo, poderiam voltar ao paraíso.
Ora, esse conceito deve ser compreendido de maneira correta. O paraíso não é “o céu”. O paraíso é um estado, ou mesmo um lugar na terra. O paraíso pertence mais propriamente à vida presente, não à futura. Em certo sentido pertence a ambas. E o estado em que o homem foi originariamente criado para viver na terra. E também concebido como uma espécie de antecâmara do céu depois da morte — como, por exemplo, no fim do Purgatório de Dante. Cristo, morrendo na cruz, disse ao bom ladrão a seu lado: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso”. E claro que isso não significava, não podia significar o céu.
Não devemos imaginar o paraíso como um lugar onde se está à vontade, onde existe o prazer sensual. É, sem dúvida alguma, um lugar de paz e descanso. Porém, o que os padres do deserto procuravam, quando acreditavam poder encontrar o “paraíso” no deserto, era a inocência perdida, o vazio e a pureza de coração de que fruíam Adão e Eva no Éden. Evidentemente, não podiam pretender encontrar belas árvores e jardins num deserto sem água, queimado pelo sol. E óbvio que não esperavam descobrir um lugar por entre as pedras escaldantes e as cavernas, onde pudessem reclinar confortavelmente em recantos cheios de sombra à beira da água corrente. O que buscavam era o paraíso dentro de si, ou melhor, acima e além de si próprios. Procuravam o paraíso na recuperação daquela “unidade” que havia sido destroçada pelo “conhecimento do bem e do mal”.
No início, Adão era “um homem”. A queda o dividiu, tornando-o “uma multidão”. Cristo restaurou, nEle, a unidade do homem. O Cristo Mítico era o Novo Adão”, e, n’Ele, todos os homens poderiam voltar à unidade, à inocência, à pureza e se tornarem “um só homem”. Omnes in Christo unum. Isso significava, é claro, viver não apenas egoisticamente, fazendo a própria vontade, obedecendo ao ego cheio de limitações, e sim ser “um só espírito com Cristo.” “Os que estão unidos ao Senhor”, diz São Paulo, “são um só espírito”. União com Cristo significa unidade em Cristo, de maneira que cada um dos que estão unidos ao Cristo pode dizer com Paulo: “Não sou eu que vivo, agora Cristo é que vive em mim”. E o mesmo Cristo que vive em todos. O eu individual “morreu”, com Cristo, ao seu “homem velho”, a seu eu exterior egoísta; e, “ressuscitou” em Cristo ao homem novo, um ser divino desapropriado de si, sem egoísmo, que é o Cristo único, o mesmo que é “tudo em todos.”
A grande diferença entre o Cristianismo e o Budismo surge nessa conjuntura. Do ponto de vista metafísico, o budismo parece considerar o “vazio” como uma negação total de toda a personalidade, enquanto o cristianismo encontra na pureza de coração e na “unidade do espírito” a suprema e transcendente realização da personalidade. Temos aqui um assunto extremamente complexo e difícil. Não estou preparado para discuti-lo. Parece-me, no entanto, que a maioria das discussões sobre essa questão, até agora, tem sido inteiramente objeto de equívocos. Muitas vezes, do lado cristão, identificamos “personalidade” com o ego ilusório, o eu exterior que, certamente, não é a verdadeira “pessoa” cristã. Do lado budista, parece não haver nenhuma idéia positiva de personalidade: é um valor que parece totalmente ausente do pensamento budista. Entretanto, não está de modo algum ausente da prática do budismo, como é evidente pelo comentário do Dr. Suzuki, que, no final da formação Zen, quando alguém se tornou “absolutamente despojado e nu”, descobre que é o “João-ninguém” que sempre foi. Isso parece-me corresponder na prática à idéia do cristão que se despoja do “homem velho” para encontrar “no Cristo” seu eu verdadeiro. A diferença principal está no fato da linguagem budista ser muito mais radical, austera e severa — e onde o discípulo do Zen diz “vazio” não permite ele lugar para qualquer imagem ou conceito que traga confusão para o verdadeiro objetivo em vista. O tratamento cristão desse assunto emprega expressões ricamente metafóricas feitas de imagens concretas, mas devemos cuidar de penetrar além da superfície externa, para alcançar as profundezas interiores.
Em todo caso, “a morte do homem velho” não é a destruição da personalidade. É a dissolução de uma ilusão, e a descoberta do homem novo é a realização, a conscientização daquilo que sempre existiu ali, pelo menos como possibilidade radical em razão do fato de ser o homem a imagem de Deus.
Se admitimos a declaração do Staretz Zosima de que o paraíso é algo de atingível, pois afinal estará presente em nós e basta-nos saber descobri-lo aí, podemos assim mesmo refletir e indagar sobre uma parte dessa afirmação: “basta desejar compreendê-lo e imediatamente o paraíso aparecerá diante de nós em toda a sua beleza”. Isso parece ser demasiadamente fácil. Requer-se muito mais do que simples veleidade. Qualquer um pode formular um desejo. Mas o “desejo” a que Zosima se refere aqui é algo que vai muito além do “sonhar acordado”. Significa, é claro, uma total reviravolta e a transformação de toda a vida. É preciso “desejar” a realização desse acontecimento, unicamente, e renunciar a desejar qualquer outra coisa. É preciso esquecer-se da procura de qualquer outro “bem”. É preciso dedicar-se de todo o coração e com toda a alma à recuperação da “inocência” perdida. E, no entanto, como o Dr. Suzuki tão bem fez notar, e como a doutrina cristã da graça nos ensina em outros termos, não pode isso ser a obra de nosso próprio “eu”. É inútil o “eu” tentar “purificar o eu”, ou o “eu” tentar “construir um lugar para si” em Deus. A inocência e a pureza de coração que pertencem ao paraíso são o vazio completo de si próprio, em que tudo é obra de Deus, a expressão livre e imprevisível do seu amor, obra da graça. Na pureza da inocência original, tudo é realizado em nós, mas sem nós — in nobis et sine nobis. Antes, porém, de atingirmos este nível, precisamos também aprender a operar no outro plano do “conhecimento” — scientia — onde a graça age em nós mas “só sem nós” — in nobis sed non sine nobis.