Merton Instinto

THOMAS MERTON — ASCENSÃO PARA A VERDADE
ENTRE O INSTINTO E A INSPIRAÇÃO
Começa a ficar clara a relação precisa da razão à vida mística. A razão tem papel tão importante na vida do homem, que a sua felicidade sobrenatural depende, de algum modo, dela. A razão empunha a chave da vida mística. Deus a pôs em suas mãos. Isto não quer dizer que é pelo pensamento e o estudo que encontramos o caminho da mística. Nem que a vida virtuosa que aperfeiçoa a razão, possa, estritamente, merecer graças de oração infusa ou divina união. Não é também uma elevação da razão a um alto grau de eficácia em sua própria ordem, com lúcido discurso e brilhantes intuições da verdade.

Para S. Gregório Nazianzeno, a alma do homem espiritual — do místico — é um instrumento tocado pelo Espírito Santo: organum pulsatum a Spiritu Sancto. O Espírito tira desse órgão harmonias e melodias que a razão e a vontade humana sozinhas nem poderiam sonhar. É esta música, a vibrar nas afinadas cordas de uma perfeita personalidade humana, que faz o homem santo. É quando harmonias especiais são tiradas de um instrumento humano, que o Espírito Santo forma um contemplativo. Qual a parte da razão nesse canto silencioso que Deus canta para Si e para o eleito na alma mística? A função da razão não é tocar o instrumento, mas afinar-lhe as cordas. O Maestro não quer perder tempo com essa operação. . . Ele ensina a razão, e a deixa trabalhar. Se depois encontra o instrumento desafinado, não perde tempo em tocar. Experimenta uma corda e vai-se embora. O pior é que geralmente o afinador fica o dia inteiro a bater no teclado, ‘sem se dispor a fazer o que devia: manter em ordem a afinação.

Isso exige muita discreção e delicadeza de alma. As cordas não devem ser nem esticadas, nem afrouxadas demais. É à razão que compete medir a dose de renúncia necessária para guardar todas as faculdades da alma atentas ao teclado dedilhado por Deus. Aqui já estamos num nível sobrenatural. Sem a graça, sem as virtudes infusas, a razão não conseguiria nada. Expliquemos o que acontece.

O que, a meu ver, compete à razão para conservar a afinação da alma com a graça, pode resumir-se a um processo de eliminação em que todo movimento desordenado da paixão e do instinto é julgado e rejeitado. A alma que é madura na ascese cristã é como a orelha sensível de um músico. O asceta medíocre é o que, moralmente falando, nem sabe quando abaixou. Mortificações excêntricas são tentativas de cantar acima do tom daclo por Deus. Têm o efeito de uma voz gritando no meio de um coro desafinado, onde só o órgão tocasse certo.

Tudo isso repete o que já dissemos: que a razão dispõe a alma para a união passiva com Deus, através do trabalho de “discreção”. Há outro termo para isto: o discernimento de espíritos. A tarefa da razão iluminada pela graça e aperfeiçoada pelas virtudes infusas, é assegurar a clara distinção entre a tentação e a luz da graça, entre força da emoção e o instinto de amor sobrenatural, entre as fantasias da imaginação e as luzes do Espírito Santo. Os movimentos sobrenaturais de luz e amor que nos chegam num nível natural pelas inspirações da graça ordinária, ajudam a razão em sua função conatural de aperfeiçoar a alma na virtude, isto é, de conservá-la no tom. Mas acima desse nível, há outro equipamento de faculdades pertencentes ao mesmo organismo unificado da graça. São hábitos que aperfeiçoam a ação da alma num nível mais alto do que o de seu modo natural. São os chamados Dons do Espírito Santo. É quando a alma é dominada e conduzida por especiais inspirações de Deus, através desses Dons, que vive o que se chama uma vida mística.

Todas as virtudes, adquiridas e infusas, naturais e sobrenaturais, dispõem a alma a agir de acordo com as normas de perfeição estabelecidas para um ser racional ordenado a um fim sobrenatural. Contudo, no nível das virtudes, onde a alma se move segundo um modo humano, sob a direção da razão e à luz da graça, a sua atividade é enfraquecida e obstruída por muitas imperfeições involuntárias. Por que isto? Com a caridade infusa e a graça santificante, e mais um exército de virtudes, a razão deveria funcionar sem tropeços. Até certo ponto ela o faz. Mas voltemos ao nosso instrumento e a seu afinador. A diferença entre a perfeição de uma alma que opera só no nível das virtudes, humano modo, e a de outra que é movida pelos Dons, através de inspirações especiais, é como a diferença entre uma sinfonia tocada por um afinador de piano e a tocada por um gênio. A razão, ajudada pela graça e as virtudes, pode avançar na vida sobrenatural. Ela é como um patinador que vai para o gelo com a bem fundada esperança de não ter de voltar carregado em padiola, podendo dizer: “Eu sei patinar”. Mas isto não o transforma em campeão. E se ele se sente animado a descrever arabescos com os patins, convém moderar o entusiasmo, pois bem que pode quebrar uma perna.