Thomas Merton — A Vida Silenciosa
Puritas Cordis (cont.)
A humildade desapega o monge, antes de tudo, daquela absorção em si mesmo que o faz esquecer-se da realidade de Deus. Desapega-o daquela fixação em sua própria vontade que o faz ignorar e desobedecer à vontade eterna de Deus, única realidade a ser encontrada. Destrói aos poucos o edifício de projetos ilusórios que o monge levantou entre si mesmo e a realidade. Despe-o da veste dos ideais espúrios que ele teceu para disfarçar e embelezar seu ser imaginário. Encontra-o, e o salva, no meio dum conflito sem fim com o resto do universo — salva-o, nesse conflito, por um salutar «desespero» em que renuncia, enfim, à luta inútil para fazer-se um «deus». Quando atinge essa renúncia final, mergulha através do centro da sua humildade para achar-se, enfim, no Deus vivo.
A vitória da humildade monástica é a vitória do real sobre o irreal — vitória em que ideais humanos falsos são postos de lado e o «ideal» divino é alcançado, experimentado, segurado e possuído, não numa imagem mental mas na realidade presente, concreta e existencial de nossa vida. A vitória da humildade monástica é um triunfo da vida em que, pela integração do pensamento, da ação, do idealismo, da realidade, da oração e do trabalho, o monge descobre que vive, agora, com perfeição, plenitude e de modo fecundo, em Deus. Contudo, Deus não aparece. Exteriormente, o monge não mudou. Não tem auréola. É ainda frágil e limitado ser humano. As coisas externas em sua vida são as mesmas de sempre. A oração, o trabalho, a comunidade monástica são os mesmos; por dentro, porém, tudo mudou e, na expressão do Apóstolo, Deus «é tudo em todos».
Pela humildade monástica, deixa o monge, de nadar contra a corrente da vida. Desiste da luta sinistra e inconsciente que sempre travou para se fazer valer contra a vontade dos outros, resistir aos desejos de seus superiores, se impor a seus irmãos como um ser distinto e superior. Agora, não mais fala e age em seu próprio nome, mas em nome do Pai eterno. Como Jesus, seu alimento é fazer a vontade «Daquele que me enviou». Com Jesus, pode dizer: «Aquele que me enviou está comigo e não me deixa só, porque eu faço sempre aquilo que lhe é agradável» (Jo 8, 29).
Não quer isso dizer que o monge se torne incapaz de pecar. Na realidade, sua fraqueza e indigência mostraram-lhe que lhe é impossível realizar, na terra, um estado de perfeição moral absoluta. Como S. Paulo, vê-se compelido a dizer: «Segundo o homem interior, eu me comprazo na lei de Deus; mas vejo em meus membros outra lei, que luta contra a lei de minha razão» (Rom 7, 22-23). Mas, também com S. Paulo, pode declarar: «Sabemos que Deus faz tudo concorrer para o bem daqueles que o amam» (id. 8, 28) e «Gloriar-me-ei feliz de minhas fraquezas, para que a força de Cristo habite em mim. Por isto me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo; porque quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 9-10).
A vitória da humildade monástica é a aceitação plena da ação oculta de Deus na fraqueza, no ordinário, no insatisfatório do cotidiano. É a aceitação de nós mesmos incompletos, de maneira a que Ele possa, a seu modo, tornar-nos completos. É alegria em nosso vazio que só por Ele pode ser repleto. É paz em nossa esterilidade que Ele mesmo torna imensamente fecunda, sem que possamos compreender como isso acontece.
Entretanto, para que a humildade chegue a tomar posse de nossa alma, tem o monge de renunciar finalmente e por completo a toda preocupação e agitação com que se esforça para esconder a si mesmo suas limitações, e disfarçar em virtudes suas faltas. A perfeição não é para aqueles que se esforçam para sentir, parecer ou agir como se fossem perfeitos. É para aqueles, e só para aqueles que estão plenamente conscientes de serem pecadores como os demais homens, mas pecadores amados, redimidos e transformados por Deus. A perfeição não é para os que se isolam em torres de marfim de uma impecabilidade imaginária, mas só para aqueles que tomam o risco de macular sua pretensa pureza interior mergulhando em cheio na vida como deve ela inevitavelmente ser vivida neste nosso mundo imperfeito: a vida com suas dificuldades, tentações, decepções e perigos. Tampouco será a perfeição para aqueles que vivem unicamente para si, ocupando-se exclusivamente em embelezar a própria alma. A santidade cristã não é apenas questão de «recolhimento» ou «oração interior». Santidade é amor: amor a Deus acima de tudo e amor a nosso irmão em Deus. Tal amor, exige em última análise, completo esquecimento de nós mesmos.
Entretanto, o monge é tradicionalmente alguém que deixa o mundo, foge da companhia dos homens e procura purificar a alma vivendo na solidão com os anjos. Não se arrisca ele, por isso mesmo, a perder todo contato com a realidade e a se privar da união vital com seus irmãos em Cristo, única a santificá-lo? Não será, então, a vida monástica uma fuga para a esterilidade, um evadir-se de toda responsabilidade de viver? Não diminui ela, completamente, e restringe a vida do homem, a ponto de cessar ele de viver, passando os dias a vegetar, vítima de piedosa ilusão?
Deve-se admitir que a toda vocação correspondem os riscos profissionais, e o monge que perde de vista o sentido do chamamento monástico poderá bem desperdiçar a vida numa estéril preocupação de si. Mas devemos precisamente procurar a razão dessa fuga do mundo que o monge efetua, no fato de que o «mundo» (o que Cristo condenou) é a sociedade daqueles que vivem exclusivamente para si. Deixar o «mundo» significa, portanto, em primeiro lugar, deixar-se a si mesmo e começar a viver para os outros. Aquele que vive «no mundo mas não é do mundo» é o que, em plena vida, com todas as crises que lhe são próprias, se esquece de si a fim de viver para os que ama. O mosteiro tem por alvo criar uma atmosfera extremamente favorável ao esquecimento próprio. Se alguns monges utilizam mal a oportunidade que lhes é dada e se tornam egoístas é porque fisicamente deixaram o «mundo» trazendo, contudo, em seus corações, o espírito do mundo, para o mosteiro. Vieram, não tanto para procurar a Deus, mas sim seus próprios interesses, seu proveito, sua paz, sua perfeição. Chegamos, porém, agora, ao verdadeiro segredo da vida monástica e à resposta à pergunta: que significa procurar a Deus?
Significa viver em Cristo, encontrar o Pai no Filho, Seu Verbo Encarnado, participando pela fé e pelo dom de si mesmo da obediência, da pobreza e da caridade de Cristo.
A vida monástica não está apenas dedicada ao estudo de Cristo ou à contemplação de Cristo ou à imitação de Cristo. O monge procura tornar-se Cristo pela participação na paixão de Cristo.
A vida no mosteiro, diz Cassiano, é vivida «sob o sacramento da cruz» (sub crucis sacramento).1
Viver, porém, no mistério da Cruz, é viver em união com Cristo «obediente até à morte, e morte de cruz» (Filip 2, 8-9).
Muitos pormenores da vida austera do monge podem ser mitigados pelos superiores. Pode haver modificação quanto à oração cotidiana, ao trabalho manual, o jejum, o silêncio; em uma coisa, porém, não poderá haver mudança — na obrigação fundamental do monge de ser «obediente até à morte». Quer isso dizer que eleve entregar, senão a própria vida, ao menos, a vontade teimosa de «viver» e existir como indivíduo que se busca a si mesmo e se faz valer. Renunciar ao prazer das mais caras ilusões que se possui a respeito de si próprio é morrer de maneira mais eficaz do que poderia acontecer a alguém que se deixasse matar por um ideal pessoal, claramente concebido. De fato, sabemos ser possível a um homem entregar a vida para dar testemunho da própria vontade e ilusões. Mas o que a vida monástica nos pede é a verdadeira e completa renúncia de nós mesmos. Mesmo se os superiores tentarem poupar nossa fraqueza, Deus não nos poupará, se verdadeiramente O procuramos.
Contudo, viver «sob o sacramento da cruz» é participar da vida de Cristo ressuscitado. Pois, quando morrem nossas ilusões, dão lugar à realidade. Quando nosso falso «eu» desaparece, quando a treva de nossa auto-idolatria se dissipa, então realizam-se em nós as palavras cio Apóstolo: «Surge, tu que dormes e Cristo te iluminará» (Ef 5, 14). E, ainda: «Deus, que disse: Do seio das trevas brilhe a luz, foi quem fez brilhar sua luz em nossos corações, para que façamos brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Jesus Cristo» (2 Cor 4, 6).
Cassiano cita essa expressão de um dos Padres do Deserto, o Abade Pinufio. Este, dirigindo-se a um jovem cenobita no dia de sua profissão, diz: “Considera, portanto, as condições da cruz debaixo do sacramento da qual deves viver doravante neste mundo, pois não és tu que vives, mas Aquele que por ti foi crucificado é quem vive em ti. Institutiones, IV, 34, Migne P. L. 49: 195. ↩