Eckhart — Esvaziamento
Ora, este “esvaziamento” estaria ainda muito apto a ter a percepção de uma consciência de si (self-consciousness) “pura”, distinta e separada. Temos, porém, uma expressão mais plena e verdadeira do Zen na experiência cristã em Mestre Eckhart. Eckhart admite que: “para ser uma conveniente morada de Deus e apto a corresponder à atuação de Deus em nós, deve o homem ser também livre em todas as suas ações, tanto interiores como exteriores”. Aqui temos, pois, a “pureza de coração” de Cassiano. Corresponde igualmente à idéia da “virgindade espiritual” em alguns místicos cristãos. Eckhart, entretanto, continua afirmando haver muito mais: “Deveria o homem ser tão pobre que não possuísse nem mesmo um lugar onde Deus pudesse atuar. Reservar um lugar seria manter distinções”. O homem deveria ser de tal modo desinteressado e desembaraçado, que nem soubesse o que Deus nele opera.
Pois, prossegue Eckhart:
“Se por acaso alguém estiver esvaziado de todas as coisas: criaturas, ele próprio e deus, e se deus pudesse ainda encontrar um lugar nele para agir… essa pessoa não é pobre da mais íntima pobreza. Porque Deus não pretende que o homem tenha um lugar reservado onde Ele possa operar, uma vez que a verdadeira pobreza requer que o homem esteja despojado de Deus e de todas as suas obras, de maneira que, se aprouver a Deus operar na alma, Ele próprio deve ser o lugar no qual Ele opera”… (Deus então toma a responsabilidade) por sua própria ação e (é) Ele próprio o cenário da ação, pois Deus age dentro de si próprio” (R. B. Blakney, Meister Eckhart, a Modern Translation, Sermão «Bem aventurados os pobres», New York, 1941, p. 231.).
Por causa dos problemas especiais que este difícil trecho apresenta à ortodoxia cristã, o editor da versão inglesa (Blakney) imprimiu a palavra Deus (God), ora com g minúsculo ora com G maiúsculo. É talvez um escrúpulo desnecessário. Seja como for, esse trecho reflete a dimensão que, em Eckhart, se assemelha ao Zen, ao considerar Deus como abismo infinito e alicerce, com o verdadeiro ser do eu alicerçado nEle (cf. Sunyata). Daí vem o fato de Eckhart pensar que: somente quando não resta mais nenhum vestígio do eu como “lugar” no qual Deus age, somente quando Deus age puramente em si mesmo, nós, enfim, recobramos nosso “verdadeiro eu” (que nos termos do Zen é “não-eu, não-ser”).
“É aí, nessa pobreza, que o homem reencontra o ser eterno que ele uma vez foi, agora é e, para sempre, será”. É fácil ver porque aqueles que interpretavam essa passagem em termos de sistema teológico da época (em lugar de interpretar em termos da experiência semelhante à do Zen, que era o que pretendia expressar) acharam-na inaceitável.
Entretanto, a mesma idéia expressa em palavras ligeiramente diferentes por Eckhart presta-se a uma interpretação perfeitamente ortodoxa. Eckhart fala de “perfeita pobreza” na qual o homem se acha mesmo “sem Deus” e “não possui em si nem mesmo um lugar onde Deus possa operar” (isto é, ultrapassando a pureza do coração).
“A renúncia em grau mais elevado ocorre quando, por amor a Deus, o homem se despede de deus. São Paulo separou-se de deus, por amor de Deus e deixou tudo o que poderia ter recebido de deus, assim como tudo o que poderia dar — juntamente com qualquer idéia sobre deus, e Deus permaneceu nele como Deus em sua própria natureza — não como é concebido por alguém ou “representado” — nem tampouco como algo a ser ainda atingido, mas antes como um “sendo” («an is-ness») como Deus é realmente. Então, o homem e Deus se tornam um todo que é pura unidade. Assim, o homem se transforma na pessoa real para quem não pode haver nenhum sofrimento, como de modo algum o pode haver na essência divina” (Blakney, Meister Eckhart, PP. 204-5).
Numa pobreza tão perfeita, diz Eckhart, ainda se pode ter idéias e experiências. Contudo, já se está livre de sua dependência.
“Não as considero como sendo minhas de modo a guardá-las ou deixá-las, tanto no passado como no futuro… Estou livre e vazio em relação a elas agora, neste momento mesmo…” (Blakney. op. cit, p. 207)
Para além do pensar, refletir, querer e amar do eu, e mesmo para além da “centelha” mística na mais profunda base do ser, encontra-se o mais elevado agente, “ao mesmo tempo puro e livre como Deus o é e, como Ele, perfeita unidade.” Pois “existe algo na alma tão estreitamente próximo de Deus que já é uno com Ele, não precisando jamais unir-se a Ele”. Eckhart continua desenvolvendo esta idéia da união dinâmica, numa maravilhosa imagem nitidamente ocidental e, no entanto, possuindo uma qualidade profundamente próxima do Zen. Essa semelhança divina em nós, que é o cerne do nosso ser, e está “em Deus” ainda mais do que “em nós”, é o foco da inexaurível alegria criadora de Deus.
“Nessa semelhança ou identidade, Deus encontra tanta alegria, que nela derrama toda a sua natureza e todo o seu ser. Seu prazer é tão grande quanto (para tomarmos um exemplo analógico) o de um cavalo solto, num prado verdejante onde o solo é plano e macio, para galopar à vontade, como gosta de fazer um cavalo, a toda velocidade sobre a relva — pois este é o prazer de um cavalo, conforme à sua natureza. Assim é com Deus, é prazer seu e enlevo, descobrir uma identidade porque pode, sempre, nela se abismar colocando nela toda a sua identidade — pois ele mesmo é essa identidade” (Blakney, Meister Eckhart, p. 205).
Do ponto de vista da lógica, essa exposição poética simplesmente não tem sentido; no entanto, como expressão da inexprimível intuição ou visão interior do próprio cerne da vida, é algo de incomparável. Mostra, aliás, como Eckhart compreendia a doutrina cristã da criação. Ele admite a separação da criatura e do Criador, pois esse algo está separado e é estranho a toda criação. Contudo, a distinção entre Criador e criatura não altera o fato de que existe também uma unidade básica dentro de nós, no ápice de nosso ser onde somos “um com Deus”.
Se pudéssemos nos identificar pura e simplesmente com esse ápice, seríamos outros, diversos daquilo que experimentamos ser, bem mais autenticamente nós mesmos, do que de fato somos. Assim, diz Eckhart: “Se fôssemos inteiramente esse “Algo” ou “unidade”, seríamos ao mesmo tempo não-criados e em nada semelhantes a qualquer criatura.. . Se eu me encontrasse nessa essência, mesmo por um momento, consideraria meu ser terreno sem maior importância do que um verme de estéreo” (Blakney, op. cit., p. 205). Devemos, todavia, imediatamente acrescentar que é somente nessa mais elevada união que descobrimos finalmente a dignidade e importância de nosso “ser terreno”. A tragédia está em que nossa consciência se acha inteiramente alienada deste mais profundo fundamento («ground») de nossa identidade. E, na tradição mística cristã, essa dicotomia interna e alienação é o que dá o verdadeiro sentido do “pecado original”.
Tudo isso está muito próximo das expressões que, por toda parte, encontramos nos Mestres do Zen. Mas a intenção é que tudo seja também puramente cristão, pois, como diz Eckhart, é precisamente nessa tão pura pobreza, quando não somos mais um “eu”, que reencontramos nossa verdadeira identidade em Deus. Essa identidade verdadeira é o “nascimento do Cristo em nós”. Interessante, pois, notar que, para Eckhart, é justamente quando perdemos nossa identidade especial, cultural e religiosa, separada — o “eu” ou a “persona”, que é o sujeito das virtudes como das visões, que se aperfeiçoa pelas boas obras, progride no exercício da piedade — é que Cristo, finalmente, no mais elevado sentido, nasce em nós. (Eckhart não nega a doutrina sacramentai do nascimento de Cristo em nós pelo batismo, mas está interessado em algo mais plenamente desenvolvido).
Evidentemente, esses ensinamentos de Eckhart foram considerados muito perturbadores. Seu gosto pelo paradoxo, o emprego deliberado de expressões que enfureciam suscetibilidades religiosas convencionais, de modo a despertar seus ouvintes para uma nova dimensão de experiência, deixaram-no exposto aos ataques de seus inimigos. Algumas de suas teses foram oficialmente condenadas pela Igreja — e muitas dessas teses estão sendo reinterpretadas hoje em dia pelos estudiosos, num sentido plenamente ortodoxo. Não é isso, no entanto, o que ora nos interessa. Eckhart pode ser melhor compreendido e apreciado naquilo que nele há de melhor: e isso não é algo que possa ser descoberto dentro das estruturas de um sistema teológico, mas sim fora dele.
Em tudo que tentou dizer, seja em linguagem familiar, seja empregando termos surpreendentes, Eckhart estava se esforçando por dirigir a atenção para algo que não pode ser estruturado, nem contido dentro dos limites de nenhum sistema. Não estava tentando construir uma nova teologia dogmática. Esforçava-se por dar expressão à grande renovação criadora da consciência mística que, em seu tempo, borbulhava na Renânia e nos Países Baixos.
Se os escritos de Eckhart forem estudados dentro dos moldes de uma estrutura religiosa e cultural, indubitavelmente ficaremos intrigados; entretanto, devemos tomar cuidado para não deixar escapar o sentido do que Eckhart está transmitindo, perdendo-se em questões laterais. Considerado em relação aos Mestres do Zen, do outro lado do planeta, que, como ele, empregavam deliberadamente expressões extremamente paradoxais, podemos detectar no Mestre re-nano a mesma espécie de conscientização que eles apresentam. Seja o que for o Zen, seja como for definido, está, de qualquer modo, em Eckhart. Mas a maneira de vê-lo não consiste em primeiro definir o Zen e depois aplicar a definição tanto a Eckhart como aos Mestres japoneses do Zen. O verdadeiro modo de estudar o Zen é penetrar pela casca (exterior) e provar o cerne (interior) que não pode ser definido. Temos, então, consciência em nós da realidade de que se está falando. Diz Eckhart:
“é preciso quebrar a casca se quisermos extrair o que contém. Pois se você quer o cerne, é preciso romper o invólucro. Assim, se você quer descobrir a nudez da natureza, é necessário destruir seus símbolos e quanto mais você penetrar “dentro”, tanto mais próximo estará da essência: Quando chegar ao Uno, que reúne e concentra em si todas as coisas, aí você deve permanecer” (Blackney, Meister Eckhart, op. cit., p. 148).