Thomas Merton — Zen e as Aves de Rapina — Sobre o Demônio
Dr. Suzuki não mencionou um dos principais atores no drama da queda: o demônio. O budismo possui certamente um conceito bem definido desse personagem (Mara — o tentador). E se alguma vez houve uma espiritualidade mais preocupada com o demônio do que a do deserto do Egito nos primórdios do cristianismo, esta é o budismo do Tibet. No Zen, contudo, o demônio pouco aparece. Ve-mo-lo ocasionalmente nas “Declarações dos Pais”. Mas sua presença se faz notar por toda parte no deserto que, em realidade, é seu refúgio. O primeiro e maior eremita, Santo Antão, é o tipo clássico do lutador que enfrenta o demônio. Os padres do deserto invadiram o território próprio e exclusivo do demônio para, vencendo-o num combate a sós, reconquistar o paraíso.
Sem tentar a delicada tarefa de identificar plenamente esse espírito ubiqüitário e mau, lembremo-nos que, nas primeiras páginas da Bíblia, ele aparece como oferecendo ao homem o “conhecimento episteme do bem e do mal”, como algo “melhor”, superior e mais “semelhante a Deus” do que o estado de inocência e de vazio. E nas últimas páginas da Bíblia, o demônio é, enfim, “expulso” quando o homem vê restaurada sua unidade com Deus. O ponto significativo é que nesses versos do livro da Revelação (Apocalipse, 12, 10), o demônio tem o título de “acusador de nossos irmãos… que acusou diante de Deus dia e noite”. No livro de Jó, o demônio é, não só aquele que causa os sofrimentos de Jó, mas entende-se que ele atua também como “tentador”, através das palavras moralizantes dos amigos de Jó.
Os amigos de Jó entram em cena como conselheiros e “consoladores”, oferecendo a Jó os frutos de sua scientia moral. Jó porém insiste em que seus padecimentos não têm explicação, E que ele não consegue descobrir-lhes a razão através da ética convencional. É então que seus amigos tornam-se seus acusadores e lançam-lhe uma maldição como pecador. Assim, em lugar de pecadores transformam-se em torturadores, em virtude de sua própria moralidade. E, assim, enquanto se declarando advogados de Deus, agem como instrumentos do demônio.
Em outras palavras, o domínio do conhecimento episteme ou da scientia é um domínio onde o homem está sujeito à influência do demônio. Isso em nada contribui para alterar o fato de que o conhecimento (gnosis — episteme) é um bem e necessário. Contudo, mesmo quando nossa “ciência” não nos falha, tende, mesmo assim, a iludir-nos. Suas perspectivas não são as de nossa natureza mais interior e espiritual. E, ao mesmo tempo, estamos sendo constantemente enganados pela paixão, o apego a nós próprios, e pelas “artimanhas do demônio”. O domínio do conhecimento episteme é, portanto, um domínio de alienação e perigo, onde não somos realmente nós próprios e onde há probabilidade de nos tornarmos completamente escravos do poder da ilusão. E isso é verdade não apenas quando caímos no pecado, mas também, até certo ponto, quando o evitamos. Os padres do deserto compreenderam que a mais perigosa atividade do demônio entrava em cena contra o monge somente quando este era moralmente perfeito, isto é, presumidamente “puro” e bastante virtuoso para ser capaz de tornar-se vítima do orgulho espiritual. Aí tinha início o combate com o último e mais sutil dos apegos: o apego à nossa própria excelência espiritual; o amor do nosso “eu” espiritualizado, purificado, “vazio”; o narcisismo dos perfeitos, do pseudo-santo e do falso místico.
O único meio de escapar, como ensinava Santo Antão, era a humildade. E o conceito de humildade dos padres do deserto corresponde muito de perto à pobreza espiritual que o Dr. Suzuki acaba de nos descrever. E preciso nada possuir e nada reter, absolutamente. Nem mesmo um “eu” no qual se possa receber visitas angélicas e nem mesmo um despojamento de si que possa ser motivo de orgulho.
A verdadeira santidade não é obra do homem que se purifica, é o próprio Deus presente em sua luz transcendente que para nós é vazio.