Thomas Merton — Zen e as Aves de Rapina — Reflexões sobre as “conferências” de Cassiano
João Cassiano, em suas narrações sobre as “conferências”, que ouviu quando visitou os padres do deserto do Egito, estabelece a lei fundamental da espiritualidade do deserto. Qual é o propósito e o fim da vida monástica? Este é o tema da primeira conferência.
A resposta é que a vida monástica tem dois propósitos: deve levar o monge em primeiro lugar a um intermediário e, em seguida, ao fim último de plenitude e completude. O fim intermediário ou scopos, escopo, é o que temos comentado como pureza de coração. Isso corresponde, de modo geral, ao termo “vazio” empregado pelo Dr. Suzuki. O coração puro é aquele que é perfectum ac mundissimum (perfeito e puríssimo) . Isto é, inteiramente livre de pensamentos e desejos inúteis. O conceito, na prática, corresponde antes à apatheia dos estóicos do que ao “suchness” do Zen. Mas, em todo caso, existe entre esses termos grande afinidade. Trata-se do quies ou repouso da contemplação — o estado do ser libertado de qualquer imagem e quaisquer conceitos que perturbem e ocupem a alma. É o clima favorável à theologia, a mais alta contemplação, que exclui até as idéias mais puras e espirituais e não admite qualquer conceito.
Nesse estado, conhece-se a Deus, não por conceitos ou visões, mas só pelo “não-conhecimento (gnosis — episteme)”. Essa é a linguagem empregada por Evágrio Pôntico, rigorosamente intelectual, fato que o aproxima mais do Zen do que os teólogos, mais afetivos, da oração, como São Máximo e São Gregório de Nissa.
O próprio Cassiano, embora se aproximando de Evágrio e com ele simpatizando, dá um equilíbrio afetivo caracteristicamente cristão ao conceito de pureza de coração, e insiste em que deva ser definida simplesmente como “caridade perfeita” ou um amor de Deus unificado, sem mistura nem olhar voltado para si. Essa qualificação poderia concebivelmente constituir uma importante diferença entre a “pureza de coração” cristã e o “vazio” do Zen. Entretanto, as relações entre os dois conceitos devem ser aprofundadas num estudo mais acurado.
Resta a dizer — e isto é o mais importante — uma coisa ainda. E que a pureza de coração não é o fim último do esforço do monge no deserto. É apenas um passo para esse fim. Dissemos acima que o paraíso ainda não é o céu. O paraíso não é a meta final da vida espiritual. É, em realidade, apenas uma volta ao início. É “começar de novo”, uma nova chance. O monge que conseguiu atingir a pureza de coração e recuperou, em certa medida, a inocência perdida por Adão, ainda não terminou sua viagem. Está apenas pronto para iniciá-la. Está pronto para um novo trabalho “que o olho não viu, o ouvido não ouviu, nem o coração do homem pôde conceber”. A pureza de coração, diz Cassiano, é o fim intermédio da vida espiritual. O fim último, porém, é o reino de Deus. Esta é uma dimensão que não entra no domínio do Zen.
Poder-se-ia argumentar que isso desmancha tudo o que foi dito sobre o vazio e nos coloca de novo num estado de dualismo e, portanto, de “conhecimento (gnosis — episteme) do bem e do mal”, dualismo entre Deus e o homem, etc. Tal não é, de modo algum, o caso. A pureza de coração estabelece o homem num estado de unidade e vazio em que ele se torna um com Deus. Mas essa é a necessária preparação, não para uma continuada luta entre o bem e o mal, mas para a verdadeira atuação de Deus revelada na Bíblia: a obra da nova criação, a ressurreição dos mortos, a restauração de todas as coisas em Cristo. Aí está a verdadeira dimensão do cristianismo, a dimensão escatológica que lhe é peculiar e que não existe no budismo. O mundo foi criado sem o homem; a nova criação, porém, que é o reino de Deus, será o trabalho de Deus no homem e através do homem. Será a grande, misteriosa obra teândrica do Cristo Místico, o novo Adão em que todos os homens como “uma só Pessoa”, ou um “Filho de Deus”, transfigurarão o Cosmo, oferecendo-o resplandecente ao Pai. Aí, nessa transfiguração, se realizarão as núpcias apocalípticas entre Deus e Sua criação, a perfeita e final consumação com a qual nenhum misticismo mortal é capaz de sonhar e que é apenas de leve prefigurado nos símbolos e nas imagens das últimas páginas do livro da Revelação (Apocalipse).
Aqui, estamos, naturalmente, de novo no domínio do conceito e da imagem. Pensar nessas coisas, especular sobre elas é, talvez, afastar-se do “vazio”. Mas é uma atividade de fé que pertence ao nosso domínio de conhecimento (gnosis — episteme) e nos condiciona a uma inocência superior e mais vigilante: a inocência das virgens prudentes que vigiam com lâmpadas acesas, num vazio iluminado pela glória da Palavra divina e inflamado pela presença do Espírito Santo. Essa glória e essa presença não são objetos que “penetram dentro” do vazio para “enchê-lo”. Nada mais são do que o “suchness” do próprio Deus.