Merton Amor Puro

Thomas Merton — Sementes da Contemplação

AMOR PURO

EMBORA sem explicitamente os distinguir, temos vindo falando de três modos de contemplação. São três iniciações possíveis.

1. A melhor dessas espécies de iniciações é um súbito vazio da alma, no qual as imagens desaparecem, as idéias e as palavras se calam, a liberdade e a claridade se abrem subitamente em vós, e todo o vosso ser abrange o prodígio, a profundidade, a evidência, mas também o vazio e a insondável incompreensibilidade de Deus. Esse contacto, esse puro sopro de entendimento é relativamente raro. As duas outras iniciações podem ser estados habituais.

2. O mais vulgar acesso à contemplação faz-se através de um deserto, todo aridez, para o qual, embora não vejais nada, não sintais nada, não compreendais nada e só tenhais consciência de uma certa dor íntima, de uma angústia, sois atraído e onde sois mantido na obscuridade e secura, porque se trata do único lugar em que podeis encontrar qualquer espécie de estabilidade e paz. À medida que avançais, aprendeis a repousar em tal árida quietude, e a garantia de uma presença reconfortante e poderosa, no fundo dessa experiência, vai aumentando dentro de vós até vos irdes gradualmente inteirando de que é Deus, revelando-se a Si Próprio numa luz que é dolorosa para a vossa natureza e para todas as respectivas faculdades, porque está infinitamente acima destas e porque a sua pureza briga com o vosso egoísmo, cegueira e imperfeição.

3. Temos, depois, uma quietud sabrosa, uma tranqüilidade cheia de bom sabor, repouso e unção, na qual, embora não exista nada que alimente e satisfaça os sentidos ou a imaginação ou a inteligência, a vontade descansa numa profunda, luminosa e absorvente experiência de amor. Este amor é como a nuvem luminosa que envolveu os Apóstolos, no Thabor, e os fez exclamar: «Senhor, estar aqui é bom para nós!»

E do seio dessa nuvem chegam tranqüilizadores sinais sensíveis, — a voz de Deus falando sem palavras, exprimindo o Seu próprio Verbo. Na verdade, reconheceis, pelo menos de qualquer maneira obscura, que essa bela, profunda e tão significativa tranqüilidade que inunda com a sua verdade e a sua substancial paz, todo o vosso ser, não é alheia à Missão da Segunda Pessoa na vossa alma, é um acompanhamento e um sinal dessa missão.

Assim, para muitos, a nuvem da sua contemplação identifica-se, duma maneira secreta, com a Divindade de Cristo e também com o amor que o Seu coração nos dedica, de modo que, nesses, a contemplação transforma-se em presença de Cristo, e eles mergulham numa suave e pura comunhão com Cristo. E tal tranqüilidade é sobretudo ensinada pela Sagrada Eucaristia.

Cristo passa a ser, para eles, uma presença sensível, Que os acompanha e os cerca por toda a parte onde vão e em tudo que fazem, uma coluna de nuvens durante o dia e uma coluna de fogo durante a noite, e, quando são obrigados a entregar-se a qualquer trabalho capaz de os distrair, não deixam de facilmente encontrar, outra vez, Deus, por meio de rápido relance lançado às suas próprias almas. E, às vezes, quando não pensam em voltar às profundidades e em repousar n’Ele, não deixa Ele, todavia, de os arrastar, inesperadamente, para a Sua obscuridade e paz ou inunda-os com uma maré de calma e inefável alegria, que nele; próprios nasce.

Por vezes, tais marés de alegria concentram-se em poderosos toques, — contactos de Deus que despertam a alma com um ímpeto de espanto e de prazer, um clarão de labareda que resplandece na alma como uma exclamação de inexprimível felicidade, e, às vezes, a queima, produzindo uma ferida dolorosa, embora deliciosa. Deus não pode tocar com essa chama muitas almas, ou mesmo tocá-las profundamente. Mas, não obstante, parece que os movimentos profundos do Espírito do Seu Amor se esforçam por se gravar, pelo menos ao de leve, em todas as almas que Deus introduz nessa calma e bem-aventurada noite.

Nestas três iniciações, permaneceis conscientes de vós próprios como se estivésseis no limiar de algo mais ou menos indefinido. Na segunda, mal estais conscientes: tendes só uma vaga, inexprimível sensação de que a paz está subjacente às trevas e aridez em que vos encontrais. Quase não ousais admiti-lo vós próprios, mas, apesar de todas as apreensões, dais fé de que vos dirigis para qualquer parte, que a vossa viagem é guiada e orientada e que podeis sentir-vos em segurança.

Na terceira, estais em presença de um Amor mais definido e mais pessoal, Que vos invade o espírito e a vontade de uma maneira que não podeis aprender e que despista qualquer tentativa da vossa parte para O conter e para O reter por qualquer impulso da vossa alma. Sabeis que essa «Presença» é Deus. Mas, quanto ao mais, Ele oculta-se numa nuvem, embora esteja tão próximo que está em vós, fora de vós e em volta de vós.

Quando um tal contacto com Deus se torna mais profundo e mais puro, a nuvem clareia. À medida que a nuvem se torna menos opaca, a experiência de Deus desabrocha em vós como um vácuo tremendo. O que experimentais é o vazio e a pureza das vossas faculdades, que um efeito criado do Amor divino em vós provoca. Não obstante, visto ser o Próprio Deus Quem diretamente produz tal efeito, e por ele Se faz conhecer, sem nenhum outro intermediário, a impressão é mais que puramente subjetiva e ensina-vos algo acerca de Deus que não podíeis saber de qualquer outra maneira.

Estes efeitos são intensificados pela luz do entendimento, infundidos pelo Espírito de Deus na nossa alma, que eles elevam, de súbito, numa atmosfera de escuridão, apagada a claridade em que Deus, embora frustrando e confundindo a nossa natural compreensão, se torna, dalgum modo, evidente.

Em tudo isto, contudo, permaneceis muito longe de Deus, muito mais longe do que pensais. E sois sempre dois. Há vós e há Deus a fazer-Se conhecer de vós por esses efeitos.

Ora, enquanto existe essa sensação de separação, essa consciência de distância e diferença entre nós e Deus, não entramos ainda na plenitude da contemplação.

Enquanto estivermos apenas à beira do abismo de pureza e de vazio que é Deus, estamos ainda infinitamente longe de Deus e as maiores graças ainda pouco nos ensinam a Seu respeito.

Da borda do abismo em que estamos, essas trevas, esse vácuo, parecem profundos, imensos — e aliciantes. Nada podemos fazer para lá penetrar. Não podemos abrir caminho, saltando a borda, embora não haja obstáculo.

Mas a razão é que talvez não haja também abismo.

Permaneceis ali, sentindo, até certo ponto, que o passo seguinte será um mergulho e que vos achareis flutuando no espaço interestelar.

Quando é a altura do passo seguinte, não o dais, não vos apercebeis da transição, não tombais em coisa alguma. Não ides para parte alguma, e, assim, não sabeis o caminho que seguis ou o caminho por onde, depois, regres-sareis. Não há espaço, ou há todo o espaço, o que é o mesmo.

O passo seguinte não é um passo.

Não sois transportado de um degrau a outro.

O que acontece é que a entidade distinta que sois vós desaparece aparentemente e parece nada ficar além de uma pura liberdade indistinguível da infinita Liberdade, um puro amor identificado com o Amor. Não dois amores, um esperando o outro, lutando pelo outro, procurando o outro, mas Amor Amando em Liberdade.

Quereríeis dar um nome a esta experiência? Acho que poderíeis dizer que ela só se torna experiência na memória de alguém. Por outras palavras: parece inexato até falar dela como de alguma coisa que acontece. Porque as coisas que acontecem têm de acontecer a um paciente e as experiências têm de ser experimentadas por alguém. Mas, aqui, o paciente de uma experiência partilhada, limitada ou material, parece ter-se evaporado. Vós não sois vós, vós sois gozo. Se preferis, vós não vos sujeitais a uma experiência, vós tornais-vos Experiência. Ora isto é inteiramente diferente, porque já não existis de tal maneira que possais refletir sobre vós próprios ou ver-vos sujeitando-vos a uma experiência, ou julgar o que se passa, se pode dizer-se que se passa, falando do que é eterno e imutável e de uma atividade tão prodigiosa que é infinita quietude.

E, neste ponto, toda a adjetivação cai por terra. As palavras são absurdas. Tudo o que dizeis induz em erro, — a não ser que apresenteis um rol de todas as experiências possíveis e digais: «Não é assim. Não é aquilo de que falo».

A metáfora tornou-se agora completamente ineficaz. Falai de «obscuridade», se for preciso, mas a idéia de obscuridade é já demasiado opaca e rude. Além disso, não há obscuridade. Podeis falar de «vácuo», mas isso faz pensar em flutuação no espaço e não há nada de espacial.

O que é, é libertação. É perfeito amor. É renúncia pura. É o gozo de Deus.

Não é uma liberdade inerente a qualquer objeto; não é o amor considerado como um ato que um inato impulso do nosso próprio ser domina; não é renúncia premeditada e realizada à laia de virtude.

É uma libertação que vive e circula em Deus, Que é Liberdade. É um amor amando no Amor. É a pureza de Deus regozijando-se na Sua própria liberdade.

E aí, onde a contemplação se torna o que verdadeiramente estava destinada a ser, já não existe qualquer coisa que se derramou de Deus para um objeto criado, mas Deus vivendo em Deus e identificando a vida de uma criatura com a sua própria vida, de modo que não fica nada com significado experimental, a não ser Deus vivendo em Deus.

Se um homem que tivesse sido assim reabilitado, libertado, realizado e aniquilado, pudesse pensar e falar pouco que fosse, não seria certamente para pensar e falar de si como de qualquer coisa de distinto ou como um objeto de experiência.

E eis porque não faz muito sentido, verdadeiramente, falar de tudo isto como do ponto culminante de uma série de degraus e como de qualquer coisa de grande em comparação com outras experiências menores. Isto ultrapassa os limites dentro dos quais as comparações têm significado. Ultrapassa o plano das «vias», que corresponde a algumas das nossas noções de viagem, ultrapassa os degraus que correspondem às nossas idéias de progresso, de avanço.

No entanto, isto é ainda um começo. É o mais baixo nível de uma nova ordem, na qual todos os níveis são incomensuráveis e impensáveis. Não é ainda a perfeição da vida interior.

O mais importante que resta dizer a respeito da perfeita contemplação, em que a alma se apaga a si própria pela perfeita renúncia a todos os desejos e a todas as coisas, é que ela não pode ter qualquer relação com as nossas idéias de grandeza e exaltação e não está, portanto, sujeita ao pecado de orgulho.

Efetivamente, tal perfeita contemplação implica, pela sua própria essência, a perfeição de toda a humildade. O orgulho é incompatível com ela, de qualquer maneira possível. Só será algo de que possamos orgulhar-nos ou desejar desmedidamente, ou que se torne, para nós, dalgum modo, matéria de pecado, quando completamente incompreendida e tomada por aquilo que não existe nem pode existir.

O termo de todos os seus atos é Deus. E a essência dessa contemplação é a pura e eterna alegria que está em Deus, porque Deus é Deus: a serena e interminável exultação na verdade de que Ele Que é perfeito é infinitamente Perfeito, é Perfeição.

Pensar que um homem poderia orgulhar-se dessa alegria, uma vez que ela o descobriu e libertou, equivaleria a dizer: «Este homem orgulha-se de o ar correr livremente.» «Este outro orgulha-se de o mar ser molhado.» «E aqui está um outro que se orgulha de as montanhas serem altas e a neve dos seus cumes ser pura, de o vento varrer a neve e fazer com que um penacho de nuvens flutue ao longo dos altos picos».

Eis um homem que está morto, enterrado, desaparecido, cuja memória se apagou no mundo dos outros homens e que deixou de existir entre os vivos que rastejam na terra… Chamar-lhe-eis orgulhoso porque a luz do sol enche a imensa abóbada do céu sobre a terra onde ele viveu, onde morreu, onde foi outrora enterrado?

Assim acontece com aquele que se aniquilou em Deus por meio da contemplação. Já só resta Deus. Ele é a identidade que age aqui. Ele é Aquele que ama, conhece e Se regozija.

Pode Deus ser orgulhoso, ou pode Deus pecar?

Imaginai que tal homem, uma única vez na sua vida se aniquilou em Deus pelo espaço de um minuto. Todo o resto da sua vida se gastou em pecados e virtudes, em bem e em mal, em trabalho e em luta, em doença e em saúde, em dons, em penas, em realizações e em arrependimentos, a forjar planos e a esperar, a amar e a temer. Viu coisas, estudou-as, compreendeu-as; formulou juízos, falou, agiu sabiamente ou não. Casualmente atingiu e deixou fugir-lhe a contemplação dos principiantes. Encontrou a nuvem, a obscura dulcificação de Deus. Conheceu o repouso na oração.

Em tudo isto, a sua vida foi um atoleiro de incertezas. Nas melhores delas, pecou talvez. Na sua imperfeita contemplação pôde encontrar o pecado. Mas no momento do tempo, no minuto, no pequeno minuto em que se libertou, abandonando-se a Deus (se, na verdade, assim se libertou), não pode haver dúvidas de que a sua vida foi então, pura, que, então, ele glorificou Deus, que, então, ele não pecou, que, nesse momento de puro amor, ele não podia pecar.

Pode uma tal união com Deus ser objeto de desmedido desejo? Não, se for bem compreendida. Porque não podeis desejar imoderadamente que Deus seja Deus. Não podeis imoderadamente desejar que a vontade de Deus seja feita por amor d’Ele Próprio. Mas é nestes dois desejos perfeitamente concebidos e realizados que nos exaurimos n’Ele e nos transformamos na Sua alegria, e é neles que não podemos pecar.

É em tal êxtase de puro amor que chegamos a cumprir, plena e verdadeiramente, o Primeiro Mandamento, amando a Deus, de todo o nosso coração, com todo o nosso espírito e toda a nossa força. É, portanto, uma coisa que todos os homens desejosos de agradar a Deus deveriam desejar, — não por um minuto, não por meia hora, mas para sempre. É sobre tais almas que a paz está assente no mundo.

São elas a força do mundo, porque são os tabernáculos de Deus no mundo. São quem salvaguarda da destruição, o universo. São os pequenos. Não se conhecem a si próprios. Toda a terra depende deles. Ninguém parece compreendê-lo. São aqueles para quem, em primeiro lugar, ela toda foi criada. Devem ser os herdeiros da terra.

São eles os únicos com possibilidade de gozar a vida completamente. Renunciaram ao mundo inteiro e a posse deste foi-lhes dada. Só eles conhecem o valor do mundo e das coisas que nele existem. Só eles são capazes de compreender a alegria. Todos os mais são demasiado débeis para a alegria. A alegria mataria todos os homens, exceto estes humildes. Eles são a pureza do coração. Eles vêem Deus. Deus faz-lhes a vontade, porque a Sua vontade é a deles. Faz tudo que eles querem, porque é Aquele Que deseja todos os seus desejos. Eles são os únicos que possuem tudo que podem desejar. A sua liberdade é sem limites. Eles procuram-nos para se inteirarem da nossa miséria e a afundarem na prodigiosa imensidão da sua própria inocência, cuja luz anda lavando o mundo.

Vinde, deixai-nos penetrar no seio dessa luz. Deixai-nos viver na pureza desse cântico. Deixai que nos despojemos dos farrapos do mundo como de peças de vestuário, e que, assim, nus, penetremos na sabedoria. Na verdade é o que pedem, rezando, todos os corações, quando clamam: «Seja feita a vossa vontade».