THOMAS MERTON — MARTA, MARIA E LÁZARO
AÇÃO E CONTEMPLAÇÃO NO MISTÉRIO DE CRISTO
Antes de abordar o assunto deste livro, que trata da doutrina de S. Bernardo sobre a vida ativa e a vida contemplativa, detenhamo-nos para refletir sobre esse grande mistério da ação e da contemplação, em Nosso Senhor Jesus Cristo, mistério que nos é revelado no Novo Testamento. É evidente que, aqui, não é mais necessário empregar a palavra «contemplação» : os Livros Santos nos falam antes da infinita realidade da vida divina tal como se manifestou e tal como nos foi dada em Cristo, realidade que transcende a fraca noção que possuímos sobre misticismo. Mais tarde se falará da contemplação vivida pela alma de Cristo, do seu conhecimento beatífico, infuso e adquirido. Os Evangelhos só nos falam do inefável mistério da união do Filho com seu Pai; ensinam-nos que a contemplação verdadeira e perfeita se realiza na alma cristã quando ela vive em perfeita união com Cristo na caridade do seu Espírito deificante, e quando ela penetra com Ele no Santo dos Santos, fazendo um só com o Pai, n’Ele, e fazendo um só com todos aqueles que estão unidos com o Pai, n’Ele. «Deus, ninguém jamais o viu», diz S. João (Jo 1,18). «O Filho único, que está no seio do Pai, Ele é que o revelou». O Verbo «veio do Pai» para assumir a natureza humana, mas, durante toda a sua vida terrestre, permaneceu no seio do Pai.
A alma de Cristo teve sempre a intuição mais perfeita e mais continuamente beatífica do Pai, de Si mesmo, o Verbo, e de sua união mútua, no Espírito Santo. Compreendia Deus n’Ele e sabia que Ele era Deus e que Ele e seu Pai faziam um só. Via toda a criação, passado, presente e futuro, em sua Pessoa divina, pois é o Primogênito de toda criatura e «n’Ele é que todas as coisas foram criadas, as que estão nos céus e as que estão na terra, as coisas visíveis e as coisas invisíveis. . . tudo foi criado por Ele e para Ele» (Col 1, 15-16). Tudo que vem de Deus estava n’Ele, pois o Pai O amou e tudo entregou em suas mãos (Jo 3, 35; 17, 10). Só durante a Paixão foi a imagem gloriosa do Pai momentaneamente obscurecida, na alma humana do Redentor. E, no entanto, mesmo durante a Paixão, Ele era Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro. Mesmo aí, sua experiência foi, num sentido muito especial, uma experiência contemplativa : a experiência da Luz que brilhou nas trevas e que as trevas não compreenderam. Durante a sua Paixão, Jesus viveu esse obscurecimento da luz divina de que toda alma cristã deverá doravante participar, a fim de passar de suas próprias trevas à luz admirável de Deus, sendo atraída pelo poder do Pai que, também, se ocultara momentaneamente nas trevas com seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo. Mesmo nas trevas da morte, antes da Ressurreição, Jesus é uma coluna de fogo que nos ilumina durante nossa passagem do Mar Vermelho e do deserto, rumo à terra prometida, conforme canta a Igreja no mistério triunfante da Páscoa.1
Jesus está unido a seu Pai numa só natureza divina, numa visão e num amor perfeitos, sendo Ele próprio o esplendor do Pai e a imagem da sua glória. Mas, além dessa união pela contemplação e pelo amor, o Filho do homem estava também unido ao Pai pela ação. «Saí do Pai e vim ao mundo» (Jo 16, 28). «É preciso que eu faça as obras d’Aquele que me enviou» (Jo 9, 4). São as próprias palavras de Jesus, dizendo-nos que veio a este mundo trabalhar para seu Pai. Sua vida mesma, todo o seu ser, sua substância se encontravam engajados nessa obra. «Meu alimento é fazer a vontade dAquele que me enviou e realizar sua obra» (Jo 4, 34). A obra que Jesus realizou não é a sua, mas a de seu Pai, e Ele não tem outra razão de existir senão o executar aquilo para que foi enviado.
É nas obras do Filho que o Pai se manifesta ao mundo, pois as obras do Filho são, ao mesmo tempo, as obras do Pai, e a doutrina do Filho é a doutrina do Pai. Quando o Filho fala, é o Pai que n’Ele fala. As obras do Filho decorrem de sua inefável união com o Pai, são sua expressão viva e vivo testemunho. «Se não faço as obras do meu Pai, não me creiais. Mas se as faço, mesmo que não me quisésseis crer, crede em minhas obras, a fim de que saibais e conheçais que o Pai está em mim e que estou no Pai» (Jo 10, 37-38). «Não crês que estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo: o Pai que permanece em mim faz Ele próprio estas obras» (Jo 14, 10).
Mas por que procura o Pai manifestar-se no Filho? Essa ação que lhe é exterior não é só para Ele. É verdade que, daí, recebe glória, mas sua glória consiste em dar fruto em sua criação, nos seres espirituais, nos anjos e nos homens. Sua glória está em fazê-los participantes da sua vida divina e do conhecimento que tem de Si mesmo, a fim de que eles se tornem seus filhos e não façam senão um só com seu Filho único, deificados n’Ele e ligados ao Pai na unidade do Espírito Santo. A ação de Jesus no mundo consiste em fazer com que os homens participem da sua própria visão do Pai e em uni-los, n’Ele, a seu Pai. «Quem quer que escute meu Pai e receba seu ensinamento vem a mim. . . Como o Pai, que é vivo, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim aquele que me come viverá por mim» (Jo 6, 46). O que nos é prometido por essas palavras é a união mais íntima que se possa conceber entre os homens e Deus, uma união que se realiza no mistério da Eucaristia, prefigurando, desde este mundo, a contemplação sem fim de Deus Pai, na eternidade.2
Se o Pai realiza sua obra no mundo através do Verbo encarnado, é para levar os homens a contemplá-l’O no céu e dar-lhes, desde esta vida, um antegozo dessa contemplação divina. Por isso é que somos chamados a nos unir à contemplação do Pai através do Filho, na terra como no céu. Mas isso supõe também que estejamos unidos à «ação» do Pai através do Filho.
“Haec igitur nox est quae peccatorum tenebras columnae illuminatione purgavit”. “Eis a noite que dissipou as trevas do pecado pela luz de uma coluna de fogo”. Vigília pascal. Benção do Círio. ↩
“Fac nos, quaesumus, Domine, divinitatis tuae sempiterna fruitione repleri: quam pretiosi corporis et sanguinis tui temporalis perceptio praefigurat”. “Concedei-nos, Senhor, na eternidade, aquele gozo inesgotável de vossa divindade que anuncia em figura, neste mundo, a comunhão de vosso corpo e sangue precioso”. Pós-comunhão da Missa do Corpo de Deus. ↩