Horto do Esposo — MARIO MARTINS
E é neste ponto que surge, no Horto do Esposo, a parábola do unicórnio cristianizada na legenda de S. Barlaão e S. Josafá.
Viver é um durar precário, constantemente roído pelo tempo, e todos somos reservados e guardados pera a morte. Ainda mais: todos morremos e assy escorremos como a água êna terra. É o fluir da existência, o ir-passando.
E tal ir-passando abrange também o mundo, que morre em si ou, pelo menos, morre para nós. Nada há de estável e tudo é aflição de espírito.
Uns nascem e outros desaparecem na sepultura, a fortuna e o poder vêm e vão e «todas as cousas deste mudo som semelhantes ao regato das augoas que corre muy tostemête e se sume êno mar».
Felizes hoje, infelizes amanhã, ora ricos, ora mendigos, nunca permanecemos na posse tranqüila de coisa nenhuma”. Por causa disso, representa-se a Fortuna em figura de mulher com uma rosa seca e um lírio a desfolhar-se na mão esquerda.
A esta atitude de espírito, fixa no lado negativo do tempo, podemos chamar-lhe destemporalização perceptiva. Para ela, o tempo não dura. Desdura.
Murcha depressa a beleza vã, o corpo envelhece e todos passam pela porta do fim inevitável. Existimos hoje, amanhã não sabemos o que será de nós. Tudo é incerto afora o morrer. E a vida breve, as riquezas e a glória, tudo é vão e tudo corre para a destruição. Por isso a vida he assy como morte e a sua extensão, diz o Horto do Esposo, reduz-se a um ponto e a quase nada.
Existir no tempo é ser mutável e mortal — sonho e sombra. Nada há no mundo sem vaidade e é breve e ilusória a ventura. Ansiosa por abarcar as coisas instáveis, a alma do homem busca sempre algo de novo, corre duma sombra para outra sombra e mergulha no instável, participa dele e torna-se também vaidade. Dispersa-se, escraviza-se e sofre.
Em suma, adoecemos da temporalidade e morte das coisas, diminuímos a densidade da nossa existência, fazemo-nos também sombras, por dentro. E assim ficamos desnudos da realidade interior, transformados em figuras sonhadas. Desrealizamos, em certo modo, a única coisa autêntica que possuímos — a alma.
A irrealidade das coisas meramente temporais sente-se no vazio que elas deixam no coração do homem, criado para Deus”. Se existissem de verdade, não nos deixariam vazios. Ora, esta tristeza do coração humano, perante o vazio das coisas amadas, tem um sentido: a renúncia, a fuga de tudo o que é temporal. Ter muito não é ser muito. Apegar-nos às coisas passageiras eqüivale a tentar reter nas mãos as águas fugitivas dum rio. Se queres a plenitude interior, nada desejes daquilo cuja existência depende do tempo”. Renuncia e terás, deixa o que está fora, recolhe-te em ti mesmo e possuirás o que não passa. A este desprender-nos, pela vontade, de tudo o que é temporal e amar o que é intemporal, podemos chamar-lhe destemporalização afectiva.
Segue-se uma inversão libertadora, para além do tempo, da instabilidade e da morte, um salto por cima de tudo isto.
São páginas paradoxais, nem sempre exactas e de bom gosto, mas que adquirem sentido vigoroso quando as reduzimos ao esquema de tese, antítese e síntese. Tese: afirmação instintiva da bem-aventurança temporal. Antítese: negação reflexiva dessa bem-aventurança. Síntese: superação do tempo e de tudo o que nele dura e desdura.
Estaríamos perante uma espécie de necrofilia exasperada, se não fosse o instinto vital, a fome de eternidade a superar a morte, em luta agónica pela vida, instinto esse nascido do desespero de não-ser e do desejo de ser-para-sempre. E chegamos a um optimismo transcendental, traduzido em expressões às vezes quase inumanas.
Bem-aventurados os que têm sorte? Não! Bem-aventurados os que sofrem e os que nada têm.
E por que são eles bem-aventurados? Porque da privação da felicidade terrestre o homem sobe à felicidade celeste, já neste mundo, embora não plenamente. É a síntese — a superação do mundo ilusório e do tempo efêmero.
Destemporalizando-se, os homens realizam, dentro de si, algo da eternidade-por-vir. Com efeito, desprendidos do pecado, situam-se na paz inalterável da boa consciência e na imutabilidade dos bens eternos, trazem na alma o reino dos céus e a beleza da sua contemplação. Livres da visão das sombras, os cegos levantam-se com mais facilidade à contemplação do que não é deste mundo. Os surdos escutam melhor a palavra interior, com a orelha do coraçõ, elevados em êxtase. Os que têm o olfacto pouco apurado procuram os odores sobrenaturais, com que o Senhor chama as almas. Os enfermos não podem andar à caça pelos montes. Porém, mediante a virtude contemplativa, caçam nos montes eternos, em busca de Jesus e da pomba, que é a Virgem Maria.
Então o homem ergue-se à posse do que está acima das riquezas passageiras, torna-se celestial e semelhante a Deus. Como a esposa dos Cantares une-se a Deus, AA maneyra e AA forma de Deus. Deste modo, a alma encontra-se a si mesma, deixa de se dispersar no fluir das mudanças. Estamos já perante fenômenos de ordem mística, mas que a filosofia tem o direito de encarar, nos seus aspectos meramente humanos.
Através da concentração espiritual, o contemplativo, no êxtase, roça pela eternidade, se assim nos podemos exprimir, e perde a noção do tempo, embora continue no tempo. Desaparece o antes e o depois. Fica somente um «agora» cheio de plenitude. E é nesse momento denso e supremo que se realiza a destemporalização psíquica do homem, absorto no que está fora do tempo. Esta conclusão final não a tira o Horto do Esposo, mas está nas suas premissas.
O negativismo inicial da destemporalização, na espiritualidade da Idade Média, conduz-nos, pois, a algo de superior e bem positivo, situando-nos no coração da eternidade, num impulso heróico, nascido do desespero de não-ser e do desejo de ser-para-sempre. E o homem temporal tende a transcender-se, a tornar-se super-homem. Nietzsche nada perderia, se tivesse tomado em consideração esta concepção heróica da existência e esta vontade de ser-mais, de ser-eternamente.