Horto do Esposo — MARIO MARTINS
Antes de mais nada, uma pequena mas necessária divagação. Temos, em filosofia, o «mal metafísico», a negação de perfeições indevidas a tal ou tal ser. Um cavalo não tem a beleza alada da borboleta nem a inteligência do homem. Este não-ter constitui um mal metafísico. Por sua vez, a borboleta não possui a força do cavalo, nem a sua capacidade de viver longos anos. Enfim, o homem não tem a inteligência perfeita dos anjos.
Neste sentido, o mal metafísico é inerente a tudo o que é limitado e a angústia que daí pode resultar revela a tendência para o Absoluto. Uma coisa deixa de ser boa no ponto em que termina a sua bondade. E sofremos, porque gostaríamos que ela não conhecesse limites de espécie alguma (o que só é próprio de Deus).
Sendo a existência um bem, o para-além-dos-limites dessa existência, embora conatural a todas as criaturas, constitui um mal metafísico e verifica-se, de sobra, em tudo o que depende do tempo e do espaço. Chamemos-lhe, por analogia, «inexistência metafísica».
Pois bem, o Horto do Esposo sente-se dominado por esta idéia da «inexistência metafísica», estreitamente vinculada à busca do Absoluto. A atenção desvia-se do que há de positivo, nas coisas e na existência temporal, para o que nelas falta pela miséria premente da sua temporalidade.
Contudo, este desvio da atenção não constitui fim em si mesmo, mas sim meio. Trata-se duma atitude anímica e dum processo psicológico que obrigam o coração do homem a nunca descansar na beleza das coisas limitadas e a procurar o que não finda.
Tal atitude leva-nos a sentir o mundo e a vida como sombra que passa ou realidade desprezável, tão pequeno lhe parece o seu conteúdo positivo.
Como se desenrola a dialéctica desse processo psicológico, que reduz a sombras tudo o que é mundanal? Por meio da comparação entre o muito pequeno e o imensamente grande, pelo sentimento da morte, que domina o tempo, e pela vivência das mudanças a que tudo está sujeito, no mundo. Para uma coisa mudar, algo nela tem de morrer. Para vir a doçura da Primavera, acabam as neves invernais. O fruto nasce da flor moribunda. E no homem, fenece a juventude, ao chegar a beleza da maturidade.
Surge um elemento positivo. Porém, desaparece outro igualmente positivo. E é no desaparecer que nos fixamos.
Desta maneira, a vida causa-nos a impressão dum morrer sucessivo, dum desaparecer ininterrupto e rápido, pois a mudança é também rápida, para um espectador que vai decompondo microscòpicamente a mudança e o tempo.
E com certa razão, porque, rigorosamente falando, a vida temporal não é exactamente igual em dois momentos sucessivos e isto redu-la a uma aparição-desaparição de quase-sombras efêmeras, a ser e não ser.
Em nós, o tempo apresenta-se como inseparável do movimento e este implica a morte de alguma coisa, ou de algum estado. Concebemos o tempo psicológico à maneira duma só dimensão linear, realizada pela memória do passado, pela efemeridade do presente (a fazer-se e a desfazer-se) e pela antevisão do futuro. Das duas extremidades de qualquer extensão temporal, o ponto de partida afasta-se cada vez mais, na memória, e o ponto de chegada (a morte, o deixar-de-ser) aproxima-se também cada vez mais.
Entre as duas extremidades vazias, o presente reduz-se quase a uma abstracção, como o ponto geométrico. O passado é o ter-ido-morrendo; o futuro é o estar-chegando-para-a morte; e o presente, de tão grande densidade subjectiva, é o estar-morrendo a cada instante.
Assim, a vida, como o tempo, devora-se a si mesma. Um momento expulsa o outro e só o espírito imortal fica subjacente ao rio das mudanças, embora perturbado por elas. O próprio corpo não é hoje como foi ontem. Envelheceu, foi morrendo — até que um dia morrerá de todo.
E este estar-morrendo apresenta-se sob o aspecto de negação, a abranger quase todo o campo da consciência, transformando a vida em longa agonia.
Por conseguinte, ser homem temporal é ser-para-a-morte e ter consciência desse temporalismo. E as mudanças e desaparecimento das coisas, em si ou em relação a nós, vão matando o homem circunstancialmente, naquilo que ele ama e possui neste mundo.
Neste caso, o homem (ou melhor, o seu espírito) situa-se no deslizar permanente do que é temporal, no suportar a morte. Sujeito à mudança, tudo o que existe no tempo (afora o espírito) é como se não existisse tempo nenhum — tal a conclusão a que chega a nossa sensibilidade.
O sentimento da morte, reduzindo a existência temporal a um desfarelamento ininterrupto, gera, em nós, uma angústia maior que a dos simples animais. Estes absorvem-se no presente, vivem com plenitude o instante que passa e a morte não ensombra, geralmente, a sua maneira íntima de sentir a vida. O homem, porém, oscila entre o prazer animal de gozar o instante efêmero e a tristeza reflexiva de o ver morrer.