Marta

VIDE: Marta e Maria, Saber e Não-Saber, Virgindade

Glória Ribeiro: Excertos de seu ensaio sobre o SERMÃO II de Mestre Eckhart, em “Ensaios de Filosofia

No sermão “Jesus entra!” Eckhart torna patente o caráter de Marta. Neste sermão, ele nos dá a seguinte tradução do primeiro verso da passagem do evangelho de São Lucas, aqui em questão: “Nosso Senhor Jesus Cristo entrou num castelo (numa casa) e foi recebido por uma virgem que era mulher”.

Assim, no lugar de chamá-la por seu nome, Eckhart se refere a Marta como “uma virgem que era mulher”. Com isto, ele quer mostrar o que constitui o ser Marta. Ou melhor, o ser mais íntimo da alma. Pois bem, para que a alma possa receber Deus, a este se unindo no mais fundo do seu ser, deve se despojar de todas as imagens, de todos os meios com os quais opera. Deve tornar-se virgem, tal como era antes de vir a concretizar-se como um ser determinado. Ou seja, “da mesma forma que o olho não deve possuir nenhuma cor, a fim de poder registrar todas as cores, ou o paladar deve ser sem nenhum gosto específico para que ele possa degustar todos os aromas, da mesma forma, o intelecto (a alma) deve ser inteiramente receptiva, virgem de todas as imagens, se quer conhecer todas as imagens”.

No ser mais íntimo da alma não está em jogo a ação de nenhuma das faculdades com as quais (a alma) opera a sua união com o que lhe é exterior — tais como a vontade, a memória, a razão — mas apenas a atividade que a constitui enquanto alma. Qual seja: a atividade de ser. Mas o que constitui mais propriamente o ser da alma? A princípio responderemos: a alma enquanto aquilo que nos anima, enquanto a atualização do nosso ser, nada mais é do que um acolher, um puro e simples deixar ser. Tal afirmação, contudo, nos soa contraditória, pois como é possível que a alma, enquanto a atualização de ser, pode constituir-se, concomitantemente, como pura passividade? Ou melhor, como a atividade da alma pode ser compreendida como passividade, como deixar ser?

Como vimos no início da presente exposição, para Eckhart as criaturas são o que são à medida que participam, que fazem parte do Uno. Ou seja, que as criaturas não possuem nada de seu, que a sua existência é algo que lhe é dado, conferido por Deus. E que, portanto, nada mais são do que seres finitos, limitados por esse pertencimento. Sendo assim, teríamos que a alma é a atividade de acolhimento do ser que nos é conferido por Deus. Ser que não é outro que o próprio Deus que se faz tempo, finitude ao tornar-se Filho. Donde o ser mais íntimo da alma é o ato de acolher o ser, o Filho. A alma é esta atividade, é, em si mesma, este acolhimento. Por conseguinte, Deus, ao se fazer presente na alma como Filho, é quem dimensiona o ser desta mesma alma.

Diremos então: Marta, enquanto diz o ser mais íntimo da alma, é virgem à medida que se despe de todas as imagens, de todas as determinações dos seres para que possa, desta forma, tornar-se livre para acolher o Uno na imagem do Filho.

Donde é preciso também que Marta seja mulher, já que neste acolhimento do ser, do Uno, ela, dele, torna-se prenhe. Como mulher, Marta concretiza o ser, o faz nascer. Deus nasce em cada gesto de suas mãos, em cada palavra proferida, em cada passo do seu cotidiano: nasce como tempo. No entanto é este mesmo nascimento, que expressa a união da alma com Deus, que possibilita que esta mesma alma se prive da sua posse. E isto acontece à medida que a alma pode vir a tornar-se novamente plena de si mesma, vindo a permanecer presa às imagens, à multiplicidade; presa às criaturas. Esta possibilidade é constitutiva do ser da alma porque para que a alma possa deixar ser o ser é preciso, constantemente, perdê-lo, para que possa para ele novamente retornar.

Retomando o que havíamos dito acerca da relação que se estabelece entre Marta e Maria, teríamos que Marta ao dizer o ser mais próprio de Maria é o ponto de onde esta parte e para onde retorna. Ou seja: Marta enquanto mulher é o ponto de onde parte a atitude de Maria — enquanto esta representa a alma que, ao concretizar o ser, acaba por se locupletar a si mesma, mantendo-se presa às imagens, à multiplicidade das criaturas. Marta, enquanto virgem, é o ponto para onde Maria busca retornar. O caminho de volta para a unidade de Deus.

Pois bem, consoante Eckhart, quando Jesus repreende Marta, chamando-a duas vezes pelo nome, Ele faz com que ela perceba o quão limitada e pobre é a sua ação de acolher, de receber o Uno que é Deus. E isto porque, neste acolhimento, já está implícita a perda mesma disto que é acolhido. Por isto, Maria — mesmo correndo o risco de permanecer presa às imagens, em sua contemplação — escolheu a melhor parte, que é a de sempre e a cada vez retornar à unidade.