GNOSTICISMO – BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
Marsano (p. 1,1-68,18), único tratado deste códice, é longo mas muito mal conservado. O que dele resta parece corresponder bastante ao que Irineu diz dos ensinamentos de Marcos, o Mago, em sua Nota contra as heresias. Marsano é um apocalipse atribuído ao profeta gnóstico, Marsano. O princípio e o fim do texto encorajam os gnósticos, mostrando-lhes a proteção com que Deus os cerca:
Eles vieram para conhecer: eles o encontraram com coração puro e não foram afligidos pelo mal por ele. Aqueles que vos receberam escolherão a provação1 e ele afastará o mal deles (p. 1,11-19).
O profeta sobe progressivamente ao céu e, durante o caminho, descobre os diferentes níveis da realidade e certa aproximação à entidade divina, expressa em termos neoplatônicos:
Quando me informei dessas coisas, percebi que ele havia agido em silêncio. Ele existe desde o princípio no meio daquilo que existe verdadeiramente, aquilo que é parte do Um que existe. Lá há outro que existe desde o princípio, pertencente ao Um que age no Um silencioso. E o Silêncio (…) agiu. Esse Um agiu no silêncio que pertence ao Um incriado entre (os Eões e desde) o princípio ele não teve substância (ousia) (p. 7,1-15).
Após algumas páginas mal conservadas (p. 13-22) ou perdidas (p. 23-24), o autor se lança em uma interpretação mística das letras do alfabeto, expressões da alma humana e dos nomes angélicos (p. 25-42). Este curto exemplo das consoantes basta para ilustrar esse tipo de surpreendentes relações2:
E as consoantes existem com as vogais. E, individualmente (ou “parcialmente” ou “por seu turno”), recebem ordens e se submetem. Elas são a denominação dos anjos. E as consoantes existem por si mesmas e, mudando, submetem os deuses ocultos por meio da medida, da altura (do som), do silêncio e da abordagem. Elas chamam as semivogais, que são todas submetidas em acordo (ou “de comum acordo”?). Somente as (consoantes) duplas, imutáveis, subsistem com as vogais (p. 30,3-25).
O tratado termina com novas páginas danificadas, que parecem tratar da recompensa dos gnósticos, comparada com a alegria de mulher em trabalho de parto que finalmente dá à luz. Em conclusão, este texto tão mal conservado e impenetrável parece um apocalipse, não-judaico ou cristão que insistiria na escatologia com a intenção de revelar o mistério de Deus através das entidades filosóficas e das relações misteriosas das letras e dos números.
Provavelmente, a provação do martírio. ↩
cf. Clemente de Alexandria, Stromata, VI, 131,1ss. ↩