Marques Cabral (NH:104-107) – Agostinho e a interioridade

MARQUES CABRAL, Alexandre. Niilismo e Hierofania. Rio de Janeiro: Mauad, 2014, p. 104-107


O pensamento agostiniano é marcado essencialmente pela tentativa de justificar a compreensão bíblica de Deus, com seu corolário moral, a partir de diversos elementos da literatura neoplatônica.1 Por isso, o acesso a Deus geralmente é analisado a partir da questão do conhecimento e de sua relação com uma certa compreensão antropológica, marcada pela distinção entre corpo e alma. Para o propósito deste tópico, é mister que se inicie explicitando o modo como Agostinho compreende o acesso humano a Deus pela via da interioridade. Com isso, alguns elementos da sua famosa teoria da iluminação são imprescindíveis. No que concerne a essa teoria, o que nela é almejado é a própria verdade imutável. Como nós humanos, seres finitos, portanto, transitórios, podemos chegar à verdade imutável? Deparamo-nos hodiernamente com uma pluralidade de criaturas e o que nela atestamos parece válido para hoje, mas não para amanhã. As flores que hoje vemos desabrochadas tornam-se [104] mortas em pouco tempo. Como conhecer uma verdade de caráter imutável, se só encontramos o mutável e transitório? Seguindo o pensamento platônico, Agostinho constatará que são os sentidos que respondem pelo conhecimento transitório das criaturas. No entanto, por paradoxal que seja, não são os sentidos que mentem. Isso porque, para Agostinho, “Mentir é querer passar pelo que não é”.2 Os sentidos somente levam ao engano, pois eles não informam ao homem senão o aspecto do objeto que eles captam. O engano por eles gerados não é outro senão o de levar o homem a acreditar que a verdade última das criaturas é aquilo que eles informam. Mas, quem é enganado pelos sentidos? Um trecho de A verdadeira religião nos responde essa questão, ao mesmo tempo que fornece novos elementos para a compreensão do problema da verdade:

Nem os olhos se enganam, pois só podem transmitir à alma (racional) a sua impressão. Ora, se não somente os olhos, mas todos os sentidos corporais transmitem a própria impressão, tal qual, pergunto-me o que devemos exigir a mais deles. Suprimamos assim os criadores de ilusões e não haverá ilusão.

Se alguém pensa que o ramo se parte na água e fica inteiro ao ser retirado de lá, não decorre que aí os sentidos anunciaram erroneamente. Este alguém é que foi mau juiz. Sendo o que é, a vista não podia nem mesmo devia, por sua natureza, sentir outra sensação de um fenômeno verificado dentro da água. Visto que o ar é um meio ambiente diferente do da água, é normal que a sensação seja uma através do ar, e outra através da água.

A vista, portanto, está certa. Foi feita somente para ver. A alma (racional) é que está no erro. O espírito é que recebeu o dom de contemplar a suma Beleza, não foi a vista. A alma (racional) quer, porém, voltar o espírito para os corpos, e os olhos corpóreos para Deus. Ela procura o que não é possível ser feito – entender as coisas carnais e ver as espirituais.3

O problema da verdade não é assumido pelos sentidos. Estes estão sempre corretos. Eles desempenham sua função de informar o modo como se encontram as criaturas no espaço £ no tempo, segundo suas características singulares. Por isso, os olhos informam como se dispõe um pedaço de madeira dentro d’água. O problema está na relação entre as informações dos sentidos e a alma racional que delas se apropria. Esta responde pelos juízos e não se reduz aos elementos provenientes dos sentidos. Desta relação entre sentidos e alma racional nasce o erro. No entanto, tal conhecimento refere-se ainda às criaturas. Se a alma racional ajuizasse corretamente o estado de fato de [105] uma certa criatura, a verdade por ela pronunciada ainda não seria a verdade mutável. A citação acima usa como exemplo um conhecimento contingente e mutável. A atividade da razão está aí concentrada em um setor transitório do real. No entanto, o texto afirma que o “espírito é que recebeu o dom de contemplar a suma Beleza, não foi a vista”. Se considerarmos que “espírito”, em Agostinho e na alta Idade Média, é um nome para descrever a qualidade inerente às almas racionais em geral (homem, anjo e Deus), então, um novo horizonte de tematização se abre. Espírito qualifica a alma racional, à medida que a caracteriza como não dependente do corpo, ou seja, o princípio vital dos seres racionais (alma, anima) não se identifica por completo com o corpo. No caso do homem, sua alma racional determina as atividades do corpo, porém, não se reduz a cada uma destas atividades.4 Pode-se falar, então, de uma certa transcendência da alma racional, pois ela pode transcender as informações dos sentidos e os conhecimentos às criaturas atrelados. Nesse sentido, o espírito pode-se relacionar com a suma Beleza, isto é, com a verdade imutável. Mas, como isso ocorre?

Um primeiro acesso à verdade imutável surge do exercício da dúvida. Esse argumento, que de certo modo antecipa algo da dúvida metódica cartesiana, relaciona-se diretamente com o ceticismo gerado pelo conhecimento das verdades transitórias. Como vimos acima, o erro emerge de uma relação distorcida entre as informações provenientes dos sentidos e sua apropriação pela razão. O juízo promulgado pela razão alcançaria o erro, quando os dados informados pelos sentidos não correspondessem ao modo fático como uma criatura se dispõe. Ora, mas até quando a razão ajuiza corretamente algo sobre uma criatura, este conhecimento está referido a um tipo de ente suscetível à transitoriedade. Portanto, esse tipo de verdade é transitório. Disso emerge a possibilidade do ceticismo. Tomando as verdades transitórias como paradigmáticas, a função da razão fica subjugada aos sentidos. Nessa perspectiva, o ceticismo parece ser a saída gnosiológica, no que concerne às verdades imutáveis. Justamente porque o ceticismo faz da dúvida um veículo para sua determinação, ele se torna o agente destruidor do acesso à verdade imutável. Agostinho percebe aí uma contradição. Quem duvida de algo, não pode duvidar do fato de que duvida. Essa dúvida, portanto, é acompanhada de uma certeza. Aquele que duvida está certo de que está duvidando. Logo, há uma verdade indubitável sustentando aquele que duvida. Mas, poder-se-ia perguntar a Agostinho: se este que duvida tem acesso a uma verdade que acompanha o exercício da dúvida, então, após duvidar, essa verdade não se esvai? Agostinho dirá que não: após duvidar, a verdade que acompanha a dúvida permanece. Há uma [106] evidência não temporal que revela àquele que duvida uma verdade. A questão é que o verdadeiro aparece iluminado pela verdade, mas a verdade não se reduz ao que ela deixa aparecer como verdadeiro. Assim, a verdade desvelada na dúvida não pode se reduzir ao momento em que alguém exercita a dúvida. Nas palavras de Agostinho:

Se não percebes bem o que digo, e duvidas que isso seja a verdade, toma consciência, pelo menos, de que não duvidas de que tenhas duvidado. Depois, se tens certeza de que duvidas, procura o fundamento dessa certeza e então, certamente, não será mais à luz de vosso sol, “mas à luz verdadeira, que vindo ao mundo, ilumina todo mundo” (Jo 1,8) (…).

Depois, penso assim essa mesma norma: Quem quer que perceba intelectualmente que duvida, percebe uma verdade. Possui uma certeza sobre esse objeto. Possui, pois, uma certeza sobre um objeto verdadeiro.

Por consequência, quem quer que duvide da existência da verdade, possui em si mesmo algo verdadeiro, de onde tira todo fundamento para a dúvida. Ora todo verdadeiro, só é verdadeiro pela verdade. Não possui, pois, o direito de duvidar da existência da verdade aquele que de um modo ou de outro chegou à dúvida.

Lá, onde aparecem essas evidências, fulgura uma luz, sem espaço local ou temporal, e sem trazer consigo nenhuma imaginação de qualquer gênero que seja. Será possível que a evidência possa ter alguma alteração? Certamente não, se bem que todo ser que reflete desapareça ou envelheça sob os impulsos carnais inferiores.5

  1. O próprio Agostinho fala do neoplatonismo em suas Confissões. Cf. AGOSTINHO, 1999, p. 183-185.[]
  2. AGOSTINHO, 1987, p. 96.[]
  3. Idem, p. 96-97.[]
  4. Uma análise pormenorizada disto encontra-se em GILSON, 2007, p. 59-220.[]
  5. AGOSTINHO, 1987, p. 107-108.[]