Maria Caminho

THOMAS MERTON — TEMPO E LITURGIA

O SACRAMENTO DO ADVENTO NA ESPIRITUALIDADE DE SÃO BERNARDO (cont.)

MARIA, O CAMINHO REAL

Resta uma idéia para completar a doutrina de São Bernardo sobre o Sacramento do Advento. Quis Deus que a Bem-aventurada Virgem Maria tivesse um papel à parte no Mistério da Encarnação e de nossa Redenção. Quis Ele que a salvação do mundo dependesse do consentimento dela.1 Maria é o “caminho real” pelo qual o Rei da Glória desceu ao mundo para restaurar a humanidade decaída e levá-la ao lugar que lhe estava destinado no céu. Virgo regia ipsa est via per quam Salvator advenit.2 Se a deixarmos de lado no Sacramento do Advento, jamais penetraremos plenamente seu mistério, uma vez que precisamos ir adiante ao encontro do Salvador, na mesma via pela qual Ele veio a nós. Studeamus et nos, dilectissimi, ad ipsum per eam ascenderé, qui per ipsam ad nos descendit: per eam venire in gratiam ipslus qui per eam in nostram miseriam venit.3

Seria inoportuno citar longamente o célebre texto de São Bernardo em louvor do santo Nome de Maria, cujas palavras a própria Igreja canta no oficio das Matinas da festa. Seja suficiente lembrar ao leitor que São Bernardo não encontra dificuldade nem tribulação nesta vida que não seja superada pela invocação do nome de Maria. “Seguindo-a, não vos desviareis, invocando-a, não desesperareis; pensando nela, não errareis. Se ela vos sustentar, não caireis, se ela vos guiar, não vos fatigareis; se ela vos amparar, alcançareis a meta; assim, experimentareis a verdade do que foi dito: o nome da Virgem era Maria”.4

Uma das idéias-chave da teologia mística de São Bernardo, em seu resumo de toda a obra da Redenção, está nesta frase sapientia vincit malitiam.5 O homem perdeu o gosto, o conhecimento (gnosis) experimental das coisas divinas (sápida scientia) com a queda. O pecado de Adão foi, em primeiro lugar, aquela forma de orgulho tão sutilmente analisada por São Bernardo como curiositas.6 Ora, nessa obra de reparação, a sabedoria divina procura apagar todo vestígio do mal. Para consegui-lo com maior perfeição, restaura no homem a sua primitiva dignidade, da maneira como ele havia perdido essa dignidade, através de uma mulher. Si via cecidit per feminam non erigitur nisi per feminam.7 É através de Maria que somos “reformados à sabedoria”. É sobre ela que o Espírito Santo medita muito amorosamente, na realização de sua mais sublime obra, na preparação para devolver ao homem o gosto perdido pelas coisas espirituais, dando-lhe por alimento a própria palavra encarnada como fruto dessa flor virginal.8 Por este texto, vemos ser evidente que Maria está no próprio centro do misticismo cisterciense. Ela é a Mãe de nossa contemplação, por ser Ela a Mãe de Jesus.

Deus, nessa sua obra sublime, opera sem ruído, sem som ou sem barulho de palavras. O anjo encontra Maria orando em solidão, fechada a porta, em segredo. O início da terceira homilia sobre Missus est é um hino de louvor a Maria na solidão e nos lembra que, mesmo para o cenobita cisterciense, a solidão interior, e mesmo um certo grau de solidão exterior, é necessário para a contemplação.9

É no silêncio virginal e na soledade da humilde oração de Maria que a Palavra divina desce à nossa terra, com a tranqüilidade do orvalho da noite. Se não fosse sua solidão e seu silêncio, nossa terra teria permanecido, de fato, um deserto! Vere sine ipsa non aliud quam terra árida sumus!10 Não encontrando obstáculo algum à palavra de seu amor, Deus derrama sobre Maria a plenitude de sua liberalidade divina, a pluvia voluntária que dela toma posse sem o ruído de nenhuma operação humana, absque strepitu operationis humanae suo se quietissimo illapsu virgineum dimisit in uterum.11

A Palavra vem ao mundo através das portas da oração silenciosa e oculta de Maria e essa Palavra (Jesus) é em seguida difundida pelo mundo inteiro, e nós O recebemos dos Apóstolos que O receberam dela. Eis um comentário adequado sobre o ensinamento habitual de São Bernardo sobre a interação da contemplação e do apostolado na vida da Igreja!

O tema principal das homilias sobre o Missus est é a ideia de que Maria, nas Escrituras, está sempre projetada, isto é, anunciada.

Uma vez que Jesus é o próprio centro das Escrituras e, já que Ele não vem a nós senão por Maria, conclui São Bernardo que está Maria, também, no centro das Escrituras. Ele a revela a nós em todos os tipos tradicionais da Escritura, com os quais a Liturgia nos familiariza. Ela é a “mulher” que há de esmagar a cabeça da serpente. É a mulher forte dos Provérbios. É a sarça que Moisés viu ardendo no deserto sem se consumir. É a vara de Aarão, é a haste que brota da raiz da árvore seca de Jessé. É o velo de Gedeão.12

Em realidade, para São Bernardo, toda a Escritura se harmoniza como os instrumentos de uma grande orquestra e, através desses vários instrumentos, o Único Espírito de Deus proclama uma só mensagem em tons diferentes, convergindo todos eles para a mensagem final do anjo a Maria, em que todo o Antigo Testamento encontra sua realização. Maria é, em certo sentido, ela própria, o Antigo Testamento. Reúne em si todas as profecias e todos os milagres e revela seu sentido, dando à luz a Palavra divina que estava nelas contida e oculta.13

Presente em todas as criaturas por seu poder, presente nos seres racionais como objeto de conhecimento (gnosis), presente nos santos pela união de amor, Deus agora se torna presente, no seio de Maria, de um modo inteiramente novo e extraordinário, unido não só à vontade dela, mas até mesmo à sua carne, de maneira que Ele próprio recebe carne da substância dela. Jesus é, ao mesmo tempo, o Filho de Deus e o Filho de Maria, Et si nec totus de Deo nec totus de Virgine, totus tamen Dei et totus Virginis est.14

Essa presença de Deus em Maria é o segredo do Advento, o coração do Mistério, pois foi em Maria que o Filho de Deus nos deu o admirável Sacramento do Advento — Filius tecum ad condendum in te mirabile Sacramentum!15



  1. Hom. 4, sup. Missus est, n.8 

  2. Serm. 2, Adv., n.5 

  3. Serm. 2, Adv., n.5 

  4. Hom. 2, sup. Missus est, n.17. 

  5. Cf. Serm. 14. De diversis e os sermões finais in Cantica. 

  6. De gradibus humilitatis et superbiae, n.10. 

  7. Hom. 2, sup. Missus est, n.3 

  8. Hom. 3, sup. Missus est, n.6. 

  9. Serm. 40, in Cantica, n.4. 

  10. Hom. 2, sup. Missus est, n.7 

  11. Hom. 2, sup. Missus est, n.7 

  12. Hom. 2, sup. Missus est, nn.4 a 7 

  13. Hom. 2, sup. Missus est, n.11. 

  14. Hom. 3, sup. Missus est, n.4 

  15. Hom. 3, sup. Missus est, n.4