Malherbe (SD:47-50) – A criação revela Deus

Aquele que renunciou a se deixar levar e ser levado pelas coisas do mundo, aquele que aceitou abandonar sua própria vontade e até mesmo seu desejo de vida eterna, preparou-se para receber a verdadeira vida, a vida do ser.

Ninguém é dono do mundo tanto quanto aquele que o deixou completamente. [ES-38]

O homem que assim deixou todas as coisas no seu nível mais baixo e onde elas são passageiras, as encontra em Deus onde elas são a verdade. Tudo o que está morto aqui está vivendo aí, e tudo o que é grosseiro aqui é espírito em Deus. [ES-29]

Aquele que renunciou a se deixar levar e ser levado pelas coisas do mundo, aquele que aceitou abandonar sua própria vontade e até mesmo seu desejo de vida eterna, preparou-se para receber a verdadeira vida, a vida do ser. E por uma sutil infusão de ser nele, seu próprio avanço termina na transfiguração da criação pela luz do ser para a qual ele agora se tornou transparente.

Para aquele que agisse corretamente, na verdade, Deus brilharia nas coisas profanas tão claramente quanto nas mais divinas, se ele realmente possuísse Deus. [EckhartT]

Deus irradia e transfigura toda a criação quando pode brilhar através de qualquer um de nós que nos tornamos transparentes à sua luz. E essa difusão seria total se todas as criaturas ali fossem transparentes.

Quando uma dentre elas se deixa transpassar pela luz do Ser, as criaturas se tornam Deus em Deus; porque, antes da travessia, elas nos distanciaram de Deus tanto mais quanto estávamos perto deles:

O homem deve aprender a abrir caminho através das coisas, aí apreender seu Deus, imprimi-lo fortemente em si mesmo segundo um modo essencial.

Assim como quem quer aprender a escrever deve na verdade, para adquirir essa arte, praticar muito e muitas vezes nessa atividade, por mais árido e difícil que seja para ele. Por mais impossível que lhe pareça, se a ela se aplicar com frequência e zelo, aprenderá e adquirirá esta arte. Na verdade, ele deve primeiro se lembrar de cada letra e imprimi-la fortemente em si mesmo. Então, quando ele tem essa arte, ele se liberta completamente da imagem e da reflexão, ele escreve sem dificuldade e espontaneamente.

É o mesmo se for uma questão de tocar viola ou algum outro trabalho dependendo de sua habilidade. Basta que ele saiba que quer praticar sua arte. E mesmo que não esteja constantemente consciente disso, ele realiza seu ato em virtude de sua habilidade, qualquer que seja seu pensamento.

Da mesma forma o homem deve estar imbuído da presença divina, ser formado pela forma de seu Deus amado, para que sua presença o ilumine sem nenhum esforço, para que ele também adquira o desapego de todas as coisas. No início, requer reflexão e penetração atenta, como o colegial em relação à sua arte.

Por isso :

É preciso ser instruído por Deus e saber que “o reino de Deus está próximo” [ES-68].

Deus também está “próximo” em todas as criaturas. [ES-68]

Ele conhece bem a Deus, aquele que o reconhece igualmente em todas as coisas.[ES-68]

Se um homem vai para o campo, faz sua oração lá e conhece a Deus, ou se ele está na igreja e conhece a Deus: se ele conhece melhor a Deus porque está em um lugar tranquilo como este, geralmente a causa é sua fraqueza, não Deus, pois Deus é o mesmo em todas as coisas, em todos os lugares, e ele está pronto para se doar igualmente na medida em que depende dele, e conhece a Deus com justiça quem o reconhece igualmente [em todas as coisas]. [ES-68]

Deus não está nisto ou naquilo, nisto e não naquilo. Ele é. E sua luz ilumina todas as coisas com igual luz quando foi capaz de atravessar o homem.

É porque somos nós que o trazemos ao mundo, é porque é através de nós que ele vem ao mundo, que cada elemento do mundo o torna próximo de nós e como que imediatamente perceptível.

É, portanto, através deste avanço que:

Tudo toma de Deus seu gosto e se torna divino. [EckhartT]

A criação transfigurada adquire um sabor desconhecido que lhe é comunicado pela irrupção do ser:

Só quando o homem se desacostumou de todas as coisas e as fez estranhas a si mesmo, ele pode, doravante, aplicar-se a todas as suas obras com prudência, entregar-se a elas sem escrúpulos ou privar-se delas, sem dificuldade. [EckhartT]

Nosso ouvido, quando se desligou do mundo e se permitiu entrar em sintonia com o ser, ouve uma melodia inédita e divina da qual nem sequer suspeitava:

Aquele que conhecesse apenas a criatura, não precisaria mais meditar em um sermão. Pois toda criatura está plena de Deus e é um livro. [ES-9]

Ouvida na vibração de um acorde perfeito do ser, a criatura se transforma em uma canção divina celebrando seu criador.

Aqui tocamos em um dos aspectos mais confusos dos Sermões de Eckhart: as inúmeras contradições que afetam suas palavras sobre o tema da criação. Às vezes descrito como um grande obstáculo a ser aniquilado, às vezes como um revelador divino, as coisas criadas aparecem em palavras eckhartianas em um status ambíguo.

Mais de um leitor é então tentado a reter apenas uma das duas interpretações que se apresentam. E como a insistência mais repetida de Eckhart sublinha o obstáculo na criatura, mais de um leitor não apreendeu o verdadeiro sentido dessa ambiguidade que é expressar precisamente o antes e o depois da criatura.

O próprio Eckhart também nos diz que a travessia do ser transforma a criação do entrave em adjuvante e que, naturalmente, essa transformação afeta igualmente o homem por inteiro. Mas essa travessia nunca é garantida. Por isso é necessário retornar constantemente ao exercício do desapego.