Deixar-me desapegar da criação, deixar-me desapegar de mim mesmo, deixar dissolver minhas representações de Deus, essas são as condições para o nascimento de Deus na alma e para o nascimento da alma em Deus. O gesto mais bonito da alma para com Deus é, portanto, para usar um vocabulário diferente daquele de Eckhart, “matar” Deus. E, matando Deus, deixar-se levar pelo maremoto assim causado pela morte de Deus.
Deixar-se desapegar de todo ser criado. Deixar-se desprender, consequentemente, do próprio ser. Estes são os passos que marcam o caminho para Deus.
Mas onde, a quem leva esse caminho? Se adivinharmos o preço do desapego em relação às criaturas e do desapossar-se de si mesmo, o que sabemos do termo a que nos conduz esse caminho de morte a nós mesmos, esse caminho de espoliação de nosso ser externo?
Podemos esperar que o místico nos fale de Deus. E, de fato, em alguns de seus sermões, ele a evoca em termos próximos da linguagem escolástica mais crítica:
Se alguém me perguntasse quem é Deus, eu responderia agora assim: Deus é um bem que persegue todas as criaturas com seu amor, para que elas também o persigam, tão delicioso é que Deus seja perseguido pelas criaturas. [EckhartS:63]
Em outras palavras :
Deus é uma totalidade sem totalidade. [EckhartS:63]
Mas aqui novamente, e apesar das aparências, Eckhart permanece intransigente, pois mesmo a doutrina mais sutil é grosseira quando se trata de Deus:
Se a alma contempla Deus como Deus, ou como imagem, ou como trinitário, há uma insuficiência nela. Mas quando todas as imagens da alma são postas de lado e ela contempla apenas o Uno, o ser nu da alma encontra o ser nu sem forma da unidade divina que é o ser superessencial que repousa imóvel em si mesmo. Ah! maravilha das maravilhas, que nobre sofrimento é que o ser da alma não possa sofrer senão a unidade una e pura de Deus! [EckhartS:83]
A ausência de forma na relação marca a comunhão sem fusão, a união mútua sem confusão, da qual nossos amores humanos, no seu melhor, representam apenas antecipações efêmeras.
Eckhart visa a mesma realidade quando usa fórmulas apofáticas:
Note-o! Deus não tem nome, porque ninguém pode falar dele ou compreendê-lo. […] Se eu digo: Deus é bom, não é verdade. Eu sou bom, Deus não é bom. Direi mais: sou melhor que Deus. Pois o que é bom pode se tornar melhor, e o que pode se tornar melhor pode se tornar o melhor de tudo. Mas Deus não é bom, por isso não pode tornar-se melhor e, porque não pode tornar-se melhor, não pode tornar-se o melhor de tudo, porque está acima de tudo. Se eu disser mais: Deus é sábio, não é verdade, eu sou mais sábio do que ele. Se eu acrescentar: Deus é um ser, isso não é verdade. Ele é um ser supereminente e um Nada superessencial.[EckhartS:83]
Quem dissesse que Deus é bom falaria tão mal dele como se dissesse que o sol é negro. [EckhartS:9]
Resumidamente :
A bondade é uma vestimenta sob a qual Deus está escondido. [EckhartS:9]
Se somos bons, podemos nos tornar melhores. Se podemos nos tornar melhores, nosso futuro em bondade é infinito. E podemos nos tornar os melhores. Porque seria somente por abuso de linguagem, baseado numa espécie de passagem ao limite, que essa qualificação poderia ser reservada a Deus. Deus ainda está além dessa extrapolação hiperbólica. Ele não se preocupa com essas categorias, mesmo que não possamos deixar de usá-las para (mal) falar sobre disto.
Deus é, portanto, incognoscível. E a enunciação dessa verdade é ao mesmo tempo a enunciação de um erro, pois enuncia algo de Deus. O sermão 71 é um daqueles onde Eckhart desenvolveu mais claramente este paradoxo:
Deus não tem nome. Se a alma lhe tivesse dado um nome, teria forçado uma determinação. Deus está acima de qualquer nome, ninguém consegue designar Deus. [EckhartS:71]
É por isso que, além disso, Eckhart é levado a conduzir um discurso “explicitamente paradoxal” sobre Deus:
Ele viu o nada, era Deus! Deus não é nada e Deus é algo. O que é algo também não é nada. O que Deus é, ele absolutamente é. […] Se alguém vê alguma coisa ou se alguma coisa entra em seu conhecimento, não é Deus porque ele não é nem isso nem aquilo. [EckhartS:71]
E até mesmo :
Por mais mínimo, por mais puro que eu conheça a Deus, ele deve ser descartado. E mesmo que eu tome a luz que é verdadeiramente Deus, como toca minha alma, não é como deveria ser. Eu tenho que apreendê-lo em sua efusão. Eu não podia ver bem a luz brilhando na parede se não virasse meus olhos para onde ela brilha. E mesmo assim, se eu apreendê-la onde ela brota, devo ser liberto dessa efusão; devo apreendê-la tal qual paira nela mesma. Mesmo assim, eu digo que não deve ser assim. Não devo apreendê-la nem em seu contato, nem em sua efusão, nem quando paira nela mesma, pois tudo isto ainda é um modo. Devemos apreender Deus como um modo sem modo, como um ser sem ser, porque não há modo. [EckhartS:71]
Em suma, o verdadeiro conhecimento de Deus é um conhecimento que, estritamente falando, não é! É um “conhecimento” impossível como conhecimento, pois todo conhecimento supõe um conhecedor e um conhecido, um sujeito e um objeto e que o “conhecimento” de Deus deve ser estritamente falando um conhecimento sem dualidade, isto é, um conhecimento sem uma relação sujeito-objeto, um não-conhecimento. Eckhart o reconhece à sua maneira:
Se o conhecimento de Deus ocorre nesta luz, deve ser seguro e encerrado em si mesmo sem a intervenção de qualquer coisa criada. Então conhecemos a vida eterna sem qualquer mediação. [EckhartS:71]
Esta é também a razão pela qual:
Se conheço em Deus todas as criaturas, nada conheço!
Eu tive que fugir da criação, deixar a mim mesmo. E agora sou levado a fugir de Deus por causa de Deus! Fugir até o limite máximo onde meu falar como homem poderia me levar a Deus. Em última análise, devo fugir do próprio indizível. Por ser “indizível”, também procede do não e assina minha heteronomia, minha não emancipação do não, minha subserviência à dualidade.
Como muitas vezes, o místico dominicano, para se fazer entender, dá asas à sua imaginação:
Quando a alma alcança o Uno e entra nele em total rejeição de si mesma, encontra Deus como num nada. Pareceria a um homem em um sonho — era um sonho acordado — que estava grávida do nada como uma mulher está grávida de um filho, e nesse nada nasceu Deus: ele era o fruto do nada. Deus nasceu do nada. [EckhartS:71]
Mas tais imagens nunca devem enganar. Elas nunca são nada além de “quase”, “como se”. Eckhart, com sua ironia habitual, se afasta disso:
Fique em silêncio e não se glorie em Deus, porque se você se vangloriar dele, você está mentindo e cometendo pecado. Se você quer ser sem pecado e perfeito, não se gabe de Deus. Nem você deve querer entender nada de Deus, pois Deus está acima de todo entendimento.
E conclui comentando que o “conhecimento” de Deus é a pobreza real, talvez até a pobreza real, a única que vale a pena possuir:
Portanto, dizemos que o homem deve ser abandonado e privado de Deus, para que ele não conheça nem conheça a ação de Deus nele; é assim que o homem pode possuir a pobreza.
Esse “empreendimento” é difícil entre todos. Sua dificuldade, porém, não é aquela que podemos temer: trata-se menos de realizar grandes coisas do que de deixar-se pacientemente libertar por Deus daquilo que, dentro de nós e fora de nós, impede o nascimento de Deus em nós. Eckhart não perdeu a oportunidade de reconhecer a dificuldade ao mesmo tempo em que ressalta a alegria que tal percurso traz:
Ninguém deve pensar que é difícil conseguir isso, embora […] pareça difícil e grande. É bem verdade que no início o desapego é um pouco difícil, mas quando se avança, nunca a vida foi mais fácil, nem mais contente, nem mais amável, e Deus se empenha muito em permanecer constantemente perto do homem e instruí-lo, a fim de levá-lo aí se o homem estiver disposto a segui-lo. Nunca o homem desejou algo tanto quanto Deus deseja fazer com que o homem O conheça. Deus está pronto em todos os momentos, mas nós estamos muito despreparados. Deus está perto de nós, mas estamos muito longe. Deus está dentro, mas nós estamos fora. Deus é íntimo de nós, mas somos estranhos.
Deixar-me desapegar da criação, deixar-me desapegar de mim mesmo, deixar dissolver minhas representações de Deus, essas são as condições para o nascimento de Deus na alma e para o nascimento da alma em Deus. O gesto mais bonito da alma para com Deus é, portanto, para usar um vocabulário diferente daquele de Eckhart, “matar” Deus. E, matando Deus, deixar-se levar pelo maremoto assim causado pela morte de Deus.