Maimonides Alma

Moisés Maimonides — Os Oito Capítulos
Excertos de “Os Oito Capítulos”, tradução Alice Frank, publicado por Editora Maayanot (1992)
Sobre a alma do homem e seus poderes
Saiba que a alma do homem é uma somente. Ela tem ações múltiplas e diversas, algumas das quais são chamadas às vezes de almas. Portanto, poder-se-ia pensar, como os médicos, que o homem tem muitas almas. Mesmo o mais eminente médico declarou, na introdução de seu livro, a existência de três almas: natural, vital e espiritual. Estas “ações” são chamadas, às vezes, de poderes ou partes e freqüentemente se fala de partes da alma. Esta denominação é usada muitas vezes pelos filósofos. Dizer “partes” não significa a divisão da alma em partes como seriam os corpos. De fato, eles consideram as diferentes ações da alma, como parte de um todo, composto destas mesmas partes.

Você sabe que a melhora do comportamento moral significa a cura da alma e de seus poderes. O médico que sana, cura os corpos, primeiro deve conhecer na sua totalidade o corpo que ele está curando e quais as partes do corpo, quero dizer o corpo do homem. Precisa ter conhecimento das causas que o fazem adoecer para poder evitá-las e do que é saudável para poder recomendá-las. Assim, desejando melhorar os hábitos morais do homem, o médico da alma precisa conhecer a alma e seus poderes como um todo, e suas partes, tão bem como o que o faz adoecer ou ter saúde. Logo, na minha opinião, há cinco partes da alma: nutritiva ou vegetativa, sensitiva, imaginativa, sensual e racional.

Este capítulo é somente sobre a alma do homem, como já foi mencionado. Por exemplo, a parte nutritiva do homem não é a mesma que a pertencente a um burro ou ao cavalo. O homem é alimentado pela parte nutritiva da alma humana, o burro pela parte nutritiva da alma do burro e uma águia é alimentada pela parte nutritiva de sua alma. Usamos a palavra “alimentado” para todos estes seres, só porque existe uma única palavra em comum “alimentado” e não porque o significado seja igual para todos. Da mesma maneira, um indivíduo e um animal são chamados de “sensitivos” unicamente por causa do caráter homônimo da palavra, e não porque o sentido do homem seja similar ao dos animais.

A sensação existente em uma espécie não poderá ser igual em outra. Mais apropriadamente, cada gênero possui uma alma única, distinta e diferente da alma de outra espécie.

Certas ações são inerentes a uma alma e outras ações de uma outra alma. Uma ação poderá ser parecida com outra, assim, duas ações poderão ser consideradas idênticas, apesar de não o serem. Por exemplo, consideremos três locais escuros: o sol brilha em um deles e é iluminado; a lua reflete no outro e é clareado; acende-se uma lâmpada no terceiro local e fica claro. Encontramos luz nos três locais, mas a razão de uma delas é o sol, da outra é a lua e da terceira o fogo. Do mesmo modo, a causa das sensações do homem é a alma do homem; a causa das sensações do burro é a alma deste e a causa das sensações da águia é a alma da águia. Não existe algum conceito unindo-as (as sensações), somente a palavra homônima.

Entenda bem esta idéia, porque é extraordinariamente maravilhosa. Muitos filósofos tropeçam nesta teoria e se apegam a opiniões estranhas e incorretas.

Retornarei agora ao nosso ponto de vista em relação às partes da alma. Afirmo que a parte nutritiva consiste no poder de captar, reter, digerir, excretar, crescer e procriar a sua própria espécie e separar as misturas, isolando o que se precisa para nutrir e o que deve ser expelido. O tratado referente a esses sete poderes, os meios pelos quais trabalham, como funcionam, quais são os órgãos onde sua ação é mais óbvia e evidente, quais são os poderes continuamente existentes e quais cessam no tempo apropriado — todo este assunto pertence à arte da medicina. Não há necessidade de se aprofundar nesta matéria aqui.

A parte sensitiva da alma consiste nos cinco sentidos conhecidos de todos: visão, audição, paladar, olfato e tato. Este último se encontra na total superfície do corpo e não tem um órgão específico como os outros quatro.

A parte imaginativa é a capacidade de conservar a impressão de objetos percebidos pelos sentidos, depois que estes desapareceram das imediações dos sentidos. Algumas impressões são ligadas às outras e algumas são separadas. Portanto, dos objetos percebidos, esta parte acrescenta outras não percebidas e que são impossíveis de apreender. Por exemplo, o homem imagina uma nave de ferro flutuando no ar ou um ser humano cuja cabeça está nos céus e os pés na terra, ou um animal com mil olhos. A parte imaginativa soma muitas destas possibilidades e concretiza-as na imaginação. A respeito deste assunto, os teólogos dialéticos cometeram um grande erro no qual basearam seu ponto de vista referente à divisão do necessário, do possível e do impossível. Eles achavam e faziam as pessoas pensarem que todo o imaginável é possível. Eles não sabiam que esta faculdade (imaginativa) combina coisas cuja existência é impossível, como já mencionamos.

A parte apetitiva é a força pela qual o homem almeja ou repudia uma determinada coisa. Desta força originam ações tais como procurar algo ou fugir dele, bem como ser atraído por alguma coisa ou evitá-la, raiva e amabilidade, medo e audácia, crueldade e compaixão, amor e ódio e outros estados da alma. Esta força emprega todos os órgãos do corpo como instrumentos: por exemplo, o poder da mão para tocar e se apossar, a força dos pés para andar, o poder da vista para ver e o poder do coração para ser corajoso ou atemorizado. Da mesma maneira, os outros órgãos — tanto internos como externos — e seus poderes são instrumentos desta força apetitiva.

A parte racional do homem é a força pela qual o homem usa seu intelecto, delibera, conhece as ciências e distingue entre ações vis e nobres. Algumas destas ações ou atividades são de cunho prático e outras são teóricas. Das ações práticas, algumas são produtivas e algumas refletivas. Pela teoria o homem tem a noção da essência dos seres imutáveis. Estas atividades teóricas são chamadas simplesmente ciências. O produtivo é o meio pelo qual adquirimos um ofício, tal como carpintaria, agricultura, medicina e navegação. O refletivo é o meio pelo qual se delibera sobre uma ação que se deseja concretizar, se é possível fazê-lo ou não e, se for possível, como deverá ser feito. Esta é a extensão na qual o tópico da alma é tratado aqui.

Saiba que esta alma única, cujos poderes ou partes estão descritas acima, é como a matéria, e o intelecto é a sua forma. Se não conseguir sua forma, a (existência da) capacidade de receber esta forma é em vão e é, como se fosse, inútil. Este é o significado do pensamento (de Salomão): “Este fato, sem conhecimento a alma não é boa”. Ele quer dizer que a existência de uma alma que não atinge a sua forma, mas é uma alma sem conhecimento, não é boa. Esta não é a ocasião para dissertar sobre forma, matéria ou de quantos intelectos há e de como são adquiridos. Não é necessário para o estudo apresentado sobre ética, mas é mais apropriado para o Livro de Profecias já mencionado. Aqui termino este capítulo e começarei outro.