Apoftegmas — Macário
Tradução do grego de D. Estevão Bettencourt O.S.B.
1. A propósito de si mesmo, o Abade Macário contou o seguinte: «Quando eu era jovem e residia numa cela no Egito, apreenderam-me e fizeram-me clérigo na aldeia. Todavia, já que eu não queria aceitar o cargo, fugi para outro lugar; aí foi ter comigo um homem secular, piedoso, o qual tomava os produtos de meu trabalho manual e me servia. Ora aconteceu que uma virgem, tentada, caiu em fornicação na aldeia; e, como ela estivesse grávida, perguntaram-lhe quem era que a tornara tal. Ela respondeu: ‘O anacoreta’. Foram, então, buscar-me e levaram-me para a aldeia; aí penduraram-me ao pescoço marmitas escurecidas pela fumaça e asas de potes; assim me levaram a circular por todos os quarteirões da aldeia, espancando-me e dizendo : ‘Este monge corrompeu a nossa virgem; agarrai-o, agarrai-o’. E tanto me batiam que quase morri. Entrementes, aproximou-se um dos anciãos, que disse: ‘Até quando espancareis o monge estrangeiro?’ O homem referido, que me prestava serviço, seguia, cheio de vergonha atrás de mim, pois também a ele insultavam muito, dizendo: ‘Eis o anacoreta do qual davas testemunho; que fez?’ Em dado momento os pais da virgem disseram: ‘Não o soltaremos antes que dê a caução de que sustentará a jovem’. Então intimei isto ao meu servidor, o qual prestou a caução por mim. Assim voltei para minha cela, e dei ao servidor todos os cestinhos que eu tinha, dizendo-lhe: ‘Vende-os, e dá de comer à minha esposa’. A seguir, falei comigo mesmo: ‘Macário, eis que encontraste uma esposa; é preciso que trabalhes um pouco mais para sustentá-la’. Em consequência, eu trabalhava noite e dia, e mandava-lhe os lucros. Ora, quando chegou para a infeliz o tempo de dar à luz, ela passou muitos dias em dores para conseguir gerar. Perguntaram-lhe, pois: ‘Que significa isto?’ Ela respondeu: ‘Eu sei, pois caluniei o anacoreta e o acusei mentirosamente; não é ele que tem culpa, mas tal jovem’. Então meu servidor, alegre, veio ter comigo, comunicando: ‘A virgem não pôde dar à luz até confessar’: ‘O anacoreta não tem culpa, mas menti contra ele. Eis agora que a aldeia toda quer vir aqui com honrarias e pedir-te perdão’. Eu, ao ouvir isto, levantei-me e fugi aqui para a Cétia, a fim de que não me atribulassem os homens. Este é o motivo pelo qual vim para cá».
2. Certa vez Macário o Egípcio foi da Cétia à montanha da Nítria para participar da oblação do Abade Pambo. Pediram-lhe então os anciãos: «Dize uma palavra aos irmãos, ó Pai». Ele respondeu: «Eu ainda não me tornei monge, mas vi monges. Pois em dada ocasião, estando eu na Cétia sentado na cela, atormentaram-me os pensamentos sugerindo-me: ‘Vai para o deserto, e considera o que lá se te deparar’. Fiquei em luta com este pensamento durante cinco anos, dizendo-me: ‘Não seja ele inspirado pelo demônio’. Visto, porém, que o pensamento persistia, fui para o deserto; lá encontrei um lago com uma ilha no meio, aonde os animais do deserto iam beber. Entre os animais vi dois homens nus, o que fez estremecer meu corpo, pois julguei que fossem espíritos. Eles, porém, vendo-me atemorizado, disseram-me: ‘Não temas; também nós somos homens’. ‘Perguntei-lhes então: ‘Donde sois, e como viestes para este deserto?’ Responderam: ‘Somos de um cenóbio; combinamos vir juntos para cá, e eis quarenta anos que aqui estamos e um de nós é Egípcio, e outro Líbio’. A seguir, eles, por sua vez, me interrogaram: ‘Como está o mundo? Cai a água em seu tempo? Tem o mundo sua prosperidade habitual?’ Respondi-lhes: ‘Sim’. De novo interroguei-os: ‘Como posso tornar-me monge?’ Responderam-me: ‘Se alguém não renuncia a tudo que é do mundo, não se pode tornar monge’. ‘Repliquei: ‘Eu sou fraco, e não posso fazer o mesmo que vós’. Observaram eles: ‘Se não podes fazer o mesmo que nós, senta-te em tua cela, e chora os teus pecados’. Perguntei-lhes ainda: ‘Quando é inverno, não sentis frio? E, quando faz calor, não se queimam os vossos corpos?’ ‘Responderam: ‘Deus nos fez esta graça: nem sentimos frio no inverno, nem nos prejudica o calor no verão’. É por isto que vos disse que ainda não me tornei monge, mas vi monges. Perdoai-me, irmãos».
3. Quando o Abade Macário habitava o pleno deserto, levava absolutamente a sós vida anacorética, enquanto mais abaixo havia outro deserto, onde muitos irmãos habitavam. O ancião, que costumava observar a estrada, certa vez viu Satanás que se aproximava sob forma de homem, devendo passar por ele; aparecia trajando uma túnica de linho perpassada de furos, dos quais pendiam pequenos vasos. Perguntou-lhe então o ilustre ancião: «Aonde vais?» Respondeu: «Vou recordar alguma coisa aos irmãos». Continuou o ancião: «E por que levas esses frascozinhos?» Explicou aquele: «São iguarias que levo para os irmãos. ‘O ancião insistiu: «Isso tudo?» O outro afirmou: «Sim; se um não agradar a alguém, apresentar-lhe-ei outro; e, se também este não agradar, apresentarei um terceiro; finalmente, dentre todos ao menos um há de agradar». E, tendo dito isto, foi-se. O ancião ficou observando as estradas, até que de novo aquele voltou; ao vê-lo, Macário disse-lhe: «Salve!» Satanás perguntou: «Como me é possível salvar-me?» Disse o ancião: «Por que assim falas?» O outro explicou: «Porque todos foram cruéis para comigo, e ninguém me tolera». O ancião indagou: «Então não tens nenhum amigo lá?» Aquele disse: «Sim, tenho lá um monge amigo, e ao menos este me obedece; quando me vê, volta-se como vento». Prosseguiu o ancião: «E como se chama tal irmão?» Satanás respondeu: «Teopempto». E, dito isto, seguiu caminho. Então o Abade Macário levantou-se e foi ao deserto que estava mais abaixo. Quando soube da sua chegada, os irmãos tomaram palmas nas mãos e saíram ao seu encontro; a seguir, cada um pôs-se a fazer os preparativos, julgando que o ancião havia de se hospedar na sua cela. Macário, porém, procurava quem era na montanha o chamado Teopempto. Tendo-o encontrado, entrou na cela deste. Teopempto recebeu-o com júbilo, Quando estavam os dois a sós o ancião perguntou: «Como estás, irmão?» Aquele respondeu: «Bem, por tuas preces». O ancião continuou: «Os teus pensamentos não te atormentam?» O outro afirmou: «Em verdade estou bem», pois tinha vergonha de confessar. O ancião insistiu- «Eis há quantos anos levo vida ascética, sou honrado por todos; não obstante, mesmo a mim, ancião, atormenta o espírito da fornicação». Teopempto então confessou: «Crê, ó Abade, que também a mim». A seguir, o ancião pôs-se a alegar que ainda outros pensamentos o perseguiam, até conseguir que Teopempto confessasse o mesmo. Finalmente, perguntou-lhe Macário: «Como jejuas?» Aquele respondeu: «Até a nona hora». O ancião mandou: «Jejua até o pôr do sol; luta; recita de cor trechos do Evangelho e das outras Escrituras; e, se te sobrevier algum pensamento mau, nunca olhes para baixo, mas sempre para cima, e logo o Senhor te auxiliará. Tendo assim instruído o irmão, o Abade voltou para sua solidão. Ora eis que, quando estava a espreitar a estrada, viu mais uma vez aquele demônio; perguntou-lhe: «Aonde vais de novo?» Respondeu: «Lembrar alguma coisa aos irmãos». E continuou caminho. Quando voltou, o santo perguntou-lhe: «Como estão os irmãos?» Aquele disse: «Mal». O ancião indagou: «Por quê?» Respondeu: «São todos cruéis; e o maior mal é que também aquele que eu tinha como amigo obediente, mesmo esse, não sei como, se voltou; nem ele me obedece; ao contrário, tornou-se o mais cruel de todos; jurei por conseguinte, não andar mais por aqueles lugares senão após algum tempo». Dito isto, foi embora, deixando o ancião. E o santo entrou em sua cela.
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