Loyola Exercicios Semana 2

Exercícios Espirituais — A segunda semana
A segunda semana
A segunda semana tem um caráter muito diferente da primeira. A alma, tendo meditado sobre o pecado, sobre seu pecado, e o tendo recusado, se encontra, após sua confissão geral e sua comunhão, preparada para as grandes opções e, mais precisamente, preparada para ouvir o apelo do Rei eterno. Inácio, para melhor fazer apreender o caráter imperioso desse chamado, imagina que um soberano, o melhor do mundo, convida cavalheiros a segui-lo para conquistar toda a terra dos infiéis. Que vassalo bem nascido recusaria alistar-se? Ora, Cristo Nosso Senhor ultrapassa, infinitamente, em majestade qualquer rei terrestre e promete uma glória que não tem medida comum com a glória humana.

As contemplações que seguem têm como objeto a Encarnação, a Natividade e depois os principais episódios da vida de Jesus, até o dia de Ramos. Esta série não é contínua, é entrecortada de meditações adventícias da maior importância — tal a quinta e bizarra contemplação, que consiste em aplicar os cinco sentidos aos temas da Encarnação e da Natividade.

Estamos, aqui, no âmago de uma sutilíssima psicologia espiritual relacionando-se com os sentidos humanos, e que traz um nome rico de ressonância para os comentadores, o de aplicação dos sentidos.

É preciso primeiro lembrar que os sentidos carnais foram o objeto, desde o começo do retiro, de um vigoroso esforço de purificação: tratava-se de expiar faltas cometidas anteriormente pelo uso desordenado dos cinco sentidos. Mas, uma vez restabelecida a ordem, e a carne submetida ao espírito, torna-se possível uma espécie de recuperação, de reemprego desses f mesmos sentidos, com a condição de que sejam espiritualizados, se possível dizer, e tornados imaginários — a palavra imaginário não significando “fictício”, mas “que se move no mundo das imagens, da imaginação”.

Assim, o sentido do gosto, que é a origem dos pecados de gula, será, no começo, reeducado pela penitência e o jejum. Depois, imaginar-se-á Jesus Cristo tomando seu alimento com 6s Apóstolos. Exercitar-se-á, em suma, o sentido do gosto — mas representando-se a si mesmo como o Cristo o exercendo. Assim também os outros sentidos. Habituar-se-á a ver, tocar, ouvir como Jesus ou a Virgem viam, ouviam, tocavam eles mesmos e, com esta viva representação, reformar o uso de seus próprios sentidos subordinando este uso aos mais elevados fins espirituais. Processo útil ao serviço da retomada em mãos próprias do domínio de si, do domínio pelo espírito das realidades do corpo para a unificação, em suma, de todo o ser reconduzido para Deus.

Há mais, porém: os sentidos imaginários, uma vez canalizados, poderão ser aplicados a numerosos objetivos — ao Inferno, por exemplo — e o retirante é convidado, já no fim da primeira semana, a “ouvir os urros dos condenados, a respirar o cheiro de enxofre, o mau cheiro das coisas podres, a provar coisas amargas como as lágrimas, a tristeza e o verme que rói a consciência, a tocar o fogo que consome as almas”.

Pode-se igualmente aplicar os sentidos imaginários às cenas do evangelho que se deve evocar na “composição de lugar”, e deste modo mais diretamente participar dos mistérios da vida de Cristo.

Há, porém, um nível ainda superior.

A atividade, que não cessa de mobilizar o espírito no uso dos sentidos imaginários, pode moderar e dar lugar a uma pura atitude da alma, ao mesmo tempo mais simples, mais abandonada, se é possível assim dizer, e próxima da contemplação: os sentidos imaginários transformam-se então em sentidos espirituais e dão àquele que reza uma impressão de presença.

Tal é de fato a misteriosa e riquíssima experiência que sugere a fórmula “oler y gustar con el olfato y con el gusto la infinita suavidad y dulzura de la divinidad”, “sentir e provar com o olfato e o gosto a infinita suavidade e doçura da divindade” (terceiro ponto da quinta contemplação do primeiro dia). Atingimos aqui um limite. O engenho humano está ultrapassado. A alma tornada simples e unificada está pronta para receber a visita de Deus.

Outra meditação adventícia, a das duas bandeiras que se colocam no quarto dia e que é precedida de um exame relativo aos estados de vida, início da escolha decisiva.

Eis, numa tradução um tanto dura, mas muito próxima do original, esse texto famoso:

PRIMEIRO PRELÚDIO. O primeiro prelúdio é a história: será aqui como Cristo chama e reclama todos os homens sob sua bandeira, e Lúcifer, pelo contrário, sob a sua.

SEGUNDO PRELÚDIO. Composição vendo o lugar. Convirá aqui ver um grande campo, compreendendo toda a região de Jerusalém onde o supremo capitão geral dos bons é Cristo Nosso Senhor; e outro campo na região de Babilônia onde o chefe dos inimigos é Lúcifer.

TERCEIRO PRELÚDIO. Pedir o que quero; e isto será, aqui, implorar conhecimento dos enganos do mau chefe e auxílio para me livrar dele, e conhecimento da verdadeira vida, que mostra o supremo e verdadeiro capitão, e graça para o imitar.

PRIMEIRO PONTO. O primeiro ponto é imaginar como se estivesse sentado o chefe de todos os inimigos neste grande acampamento de Babilônia, como sobre uma grande cátedra de fogo e fumaça, com um semblante horrível e assustador.

SEGUNDO PONTO. Considerar como ele procede à convocação de inumeráveis demônios e como os espalha uns em tal cidade, outros noutra, e assim pelo mundo inteiro, sem poupar províncias, lugares, condições sociais nem pessoa alguma em particular.

TERCEIRO PONTO. Considerar a arenga que ele lhes dirige e como os admoesta para que joguem redes e correntes; dizendo-lhes que devem tentar primeiro pela ambição das riquezas, como é o hábito ut in pluribus — em latim no texto: “como na maioria” (dos casos) -, a fim de que mais facilmente as pessoas acedam à vã glória do mundo e depois sintam o orgulho aumentado; de modo que o primeiro degrau seja feito de riquezas, o segundo de honrarias, o terceiro de orgulho e partindo desses três degraus, Lúcifer conduz a todos os outros vícios.

Assim, também, pelo contrário, deve-se imaginar o supremo e verdadeiro capitão, que é o Cristo Nosso Senhor.

PRIMEIRO PONTO. Considerar como o Cristo Nosso Senhor está num grande campo desta região de Jerusalém, num lugar modesto e como ele se apresenta belo e gracioso.

SEGUNDO PONTO. Considerar como o Senhor de todo o Universo escolhe tantas pessoas, apóstolos, discípulos etc. e os envia pelo mundo inteiro, espalhando sua doutrina sagrada junto a todos os tipos e pessoas e condições sociais.

TERCEIRO PONTO. Considerar o discurso que Cristo Nosso Senhor dirige a todos seus servos e amigos que envia a tal empresa recomendando-lhes que de boa vontade ajudem a todos levando-os, primeiro, à suprema pobreza de espírito e — se algum dia Sua divina majestade fosse por isto melhor servida e desejasse escolhê-los — igualmente à pobreza de fato; segundo, ao desejo dos opróbrios e dos desprezos porque, partindo dessas duas coisas, atinge-se a humildade; de modo que haja três degraus: o primeiro, a pobreza, contrária à riqueza; o segundo, o opróbrio ou o desprezo, contrário à vã glória mundana; o terceiro, a humildade, contrária ao orgulho; e que, partindo desses três degraus, seus enviados conduzem a todas as outras virtudes.

Observar-se-á neste texto que Lúcifer é apresentado numa cátedra, isto é, numa cadeira de ensino. O fim desta meditação não é tanto arregimentar o cristão na tropa do Cristo — já aí se encontra pelo batismo — quanto mostrar-lhe os ardis e os métodos de Satã, mestre do erro. Nisto talvez resida a originalidade dessa oposição lírica, da qual poder-se-ão encontrar muitos antecedentes, mesmo no Apocalipse. Em todo caso, Santo Inácio fazia muita questão desse exercício, visto como recomendou fazê-lo à meia-noite, depois uma segunda vez de madrugada e ainda repeti-lo duas vezes durante o dia, mais ou menos na hora da missa e na hora das vésperas. É muito provável — e sobre isto temos o testemunho de Olivério Manareu que recebeu confidencia do próprio Santo — que esta meditação sobre a bandeira do rei e sobre a bandeira do “inimigo mortal de nossa natureza humana” Santo Inácio praticou-a em Manresa e constitui um dos mais antigos elementos, senão o mais antigo, dos Exercícios. Em compensação, a outra meditação adventícia, a parábola dos três binários, das três séries de dois homens, é mais recente: data certamente de uma época em que Santo Inácio tinha podido constatar a que ponto o apetite dos bens deste mundo podia impedir uma verdadeira conversão. Pensa-se que foi em Paris, no contato com clérigos ávidos de prebendas, que fez esta triste experiência. Ele recomenda a todos, religiosos ou pessoas do mundo, ter para com o dinheiro uma atitude de indiferença, a do terceiro grupo de homens, para o qual tanto faz ter ou não ter a coisa adquirida…

O retirante, tendo bem compreendido a vaidade das riquezas, estará apto para um outro sacrifício, o de seu amor próprio, e se iniciará no caminho da humildade. Inácio considera que há três espécies de humildade — e tem-se a impressão que se recorda de ter percorrido ele próprio estas etapas no voluntário aniquilamento. A primeira maneira consiste em obedecer à lei de Deus seja qual for a situação, mesmo muito importante em que se esteja colocado. A segunda é uma humildade de indiferença: não buscar mais a honra do que o opróbrio. A terceira é perfeita: consiste em escolher não somente “a pobreza com Cristo pobre, de preferência à riqueza”, mas também “os opróbrios com Cristo cheio de opróbrios ao invés de honras”, e ainda a preferir “ser julgado ignorante, louco pelo Cristo que. primeiro, passou por tal, antes de ser julgado sábio e prudente neste mundo”.

Se o retirante fez seu esse heroísmo no desenlace, está apto à escolha decisiva, que Santo Inácio chama eleição. No fim da segunda semana, estamos no ponto central dos Exercícios Espirituais, quando a alma, esclarecida sobre o fim para o qual deve tender e sobre os meios que lhe são propostos, orientar-se-á do lado da coragem e da generosidade.

Há duas maneiras de fazer uma boa eleição, Santo Inácio porém só as revela após ter insistido sobre algumas meditações preliminares. Esta primeiro: na maioria das vezes, subordina-se o fim ao meio em lugar de subordinar o meio ao fim. Assim muitos decidem casar-se, como se se tratasse de um fim a atingir, e depois consentem em servir a Deus no casamento. Na realidade, servir a Deus é o fim, e o casamento é apenas um meio.

Espera-se aqui um desenvolvimento análogo, dizendo respeito aos clérigos, — encontra-se, com efeito, e é um pouco desconcertante: “Outros, escreve Santo Inácio, querem benefícios eclesiásticos, depois, quando os obtêm, resolvem servir a Deus.” O paralelismo é revelador da época. Inácio prossegue: “Primeiro devemos estabelecer como objeto procurar servir a Deus que é o fim, e, secundariamente, tomar um benefício ou me casar, se isto me convém melhor, que é o meio para o fim.”

Segunda consideração preliminar: duas eleições são possíveis, uma irrevogável, tal a escolha para o sacerdócio ou o casamento; a outra revogável — assim, tomar ou deixar benefícios eclesiásticos, tomar bens temporais ou renunciar a eles. Se a escolha foi bem feita, para um estado irrevogável, é inútil refazê-la.

Terceira consideração, relativa aos três tempos nos quais se pode fazer uma santa eleição: pode-se ser chamado bruscamente por Deus, como foi São Mateus, ou São Paulo no caminho de’ Damasco. Ou então pode-se ter sido diretamente tocado por certos favores místicos em que as consolações afluíam quando nos orientávamos para Deus, e as desolações quando íamos para Satã. A eleição então é feita no fim do esforço chamado discernimento dos espíritos.

Há, enfim, uma terceira maneira de escolher, menos perfeita e a qual ter-se-á recorrido, se não se foi favorecido pela primeira ou pela segunda. Ela se caracteriza da seguinte maneira: tendo bem considerado para que p homem nasceu, a saber, para louvar a Deus e salvar sua alma, decide-se calmamente por “uma vida ou um estado nos limites que autoriza a Igreja”…

Esta terceira maneira se subdivide em dois modos, que correspondem cada um a uma disposição espiritual, uma que se poderia chamar racional, a do calculista, outra a do emotivo, mais impetuosa.

Tem-se a impressão — será falsa? — de que o primeiro modo de eleição se dirige aos clérigos. É extraordinário, de fato, que Santo Inácio tenha escolhido, para ilustrar este primeiro modo, o seguinte exemplo: “Um cargo ou benefício, a receber ou a abandonar”. Sem dúvida, acrescenta “ou de qualquer outra coisa que recaia sob uma eleição re-vogável”. Mas a continuação do texto mostra claramente que o retirante, aqui, é um homem que já tem uma certa experiência dos bens deste mundo e que pode, antes de abandoná-los, pôr-se, em relação a eles, num estado de perfeita indiferença: sopesar, raciocinando, isto é, refletindo bem sobre as vantagens que traz o cargo ou o benefício proposto e suas desvantagens e os perigos que faz correr. Em seguida “observar de que lado a razão se inclina mais” e decidir-se “segundo a grande moção racional e não segundo qualquer moção sensual”, isto é, inspirada pelo sentimento. Este racionalismo seco na deliberação teria de que surpreender se em algumas linhas acima Santo Inácio não o tivesse colocado em sua verdadeira perspectiva aconselhando o retirante a “pedir a Deus Nosso Senhor para mover sua vontade e pôr em sua alma o que ele deve fazer”, em relação à opção que lhe é proposta. Os dois pontos da balança são colocados primeiro em equilíbrio. Depois, um dos pratos, pelo efeito da reflexão discursiva, discurriendo, abaixa-se pouco a pouco. É necessário, porém, que Deus intervenha. .. Então, o prato mais leve se eleva e a opção se faz.

O outro é inteiramente diferente: primeiro considera-se que o amor experimentado por um dos termos da alternativa “desce do alto” provém do amor que se sente por Deus. Em seguida, por um esforço de desdobramento, imaginar que é um outro que delibera e a que se deve dar conselho. Como este conselho será certamente escolher a maior glória de Deus e a maior perfeição da própria alma, deve-se tomá-lo por si mesmo. Em seguida, voltar-se ao fundo de si mesmo e perguntar-se, antecipando sobre o futuro, que escolha desejaria ter feito na hora da morte. Enfim, por uma antecipação ainda mais longínqua, supor que se está no dia do Juízo e que se lembra, diante do tribunal de Deus, de sua deliberação presente. Que regra gostaria de ter seguido? Essa regra é discernida claramente, e é bem conhecida! Então é preciso tomá-la imediatamente, tomá-la agora, se quiser encontrar-se, mais tarde, diante do Supremo Juiz, em completa felicidade e alegria.

Parece que a meditação, aqui, seja proposta singularmente aos temperamentos jovens, capazes de entusiasmo e de generosidade afetiva.

Dessas alturas, Santo Inácio desce para as planícies. Dir-se-ia que está tocado de caridade para com aqueles que não puderam segui-lo tão alto. Quais são estas pessoas? Prelados, casais, los que estan constituídos en prelatura o en matrimônio, — sejam, aliás, ricos ou pobres. Podem ainda, uns e outros, mesmo já tendo feito escolhas irrevogáveis, tomar certas decisões firmes relativas a escolhas revogáveis. Talvez eles não tenham nem a ocasião nem tampouco o desejo. Então Santo Inácio lhes propõe simplesmente melhorar suas vidas utilizando assim mesmo os Exercícios Espirituais e refletindo sobre seus modos de eleição. À força de considerar estes textos e de “ruminá-los”, apreenderão melhor como devem governar, por exemplo, sua casa, e quantos empregados podem conservar, como dirigirão sua “família” no sentido latino da palavra, parentes e empregados, quanto devem despender com os pobres e obras de piedade — tudo isto buscando unicamente a maior glória de Deus.

Estas advertências, por caridosas que sejam, tem-se a impressão de que constituem uma espécie de licença dada no início da terceira semana, a todos os que não tiverem querido, por falta de coragem, nem podido, já estando feita sua escolha definitiva, optar pela decisão mais alta.