Livro de Tomé [KDNH]

Biblioteca de Nag HammadiLivro de Tomé
R. Kuntzmann
O Livro de Tomé, o Atleta (II,7). Tradução de R. Kuntzmann, in BCNH, n.° 16, 1986. (trad. em português de Álvaro Cunha)

Este livro, datado do fim do século III, é um dos testemunhos mais tardios da tradição atribuída a Tomé, pertencendo ao gênero literário dos diálogos de revelação (como Epístola Apócrifa de Tiago ou Apócrifo de João). Depois de um discurso introdutório do Salvador, o texto apresenta sete trocas de palavras entre Tomé e o Salvador. As três últimas páginas do tratado apresentam um monólogo do Salvador, que proclama doze maldições e três bênçãos. O autor do tratado coloca nos lábios do Salvador palavras virulentas contra aqueles que se deixam levar pelo desejo, personificado pelo “Fogo” e reduzido principalmente ao domínio da sexualidade. Talvez os “relaxados” que são fustigados encarnem uma corrente “monástica” mais laxista, que aceitasse o princípio da salvação pela gnose, mas recusasse o ascetismo extremo e suicida pregado pelos responsáveis pelo grupo. Embora utilizando expressões gnósticas, o documento é muito mais o testemunho de radicalização do encratismo monástico. O pessimismo exarado pelas condenações brutais do escrito mostra que o autor e sua comunidade estavam em situação desesperadora.

A seguir apresentamos alguns extratos característicos.

O discurso introdutório do Salvador, p. 138,4-18, apresenta o princípio do conhecimento de si mesmo como fundamento da salvação (por introspecção). Neste texto, Tomé, o Gêmeo, é o modelo do homem perfeito identificado com o mestre:

O Salvador diz a Tomé: “Irmão Tomé, enquanto ainda tens tempo no mundo, escuta-me, pois eu te revelo aquilo sobre o que tens refletido em teu coração. Já que se diz que tu és meu gêmeo e meu verdadeiro companheiro, examina-te e compreende quem és tu, como és tu ou o que te tornarás. Já que és chamado meu irmão, não deves sê-lo sem conhecer-te a ti mesmo. E eu reconheço que tu compreendeste, pois já entendeste que eu sou o conhecimento da Verdade. Enquanto tu ainda caminhas comigo, mesmo sendo ignorante, tu já és conhecido e serás chamado ‘aquele-que-se-conhece-a-si-mesmo’, porque ‘quem não se conhece não conheceu nada’, mas ‘quem se conheceu a si mesmo também chegou a alcançar o conhecimento a propósito da profundeza do todo’ “.

A página 139,22-31 apresenta um eco do mito do Salvador salvo:

Tomé tomou a palavra e disse: “(Senhor), por que a luz manifestada, que brilha por causa dos homens, aparece e desaparece?” O Salvador disse: “Ó, bem-aventurado Tomé, sem dúvida a luz que se manifestou brilhou por causa de vós, não para que ficásseis neste lugar, mas para que dele saísseis. Em contrapartida, quando todos os eleitos houverem deixado o estado animal, então a luz se elevará até sua substância e sua substância a receberá em seu seio, pois ela é um bom servidor”.

A descrição do destino dos reprovados é particularmente pormenorizada, tomando emprestados elementos apocalípticos e (na página 141) elementos platônicos (as almas errantes: Fédon, 80e-81e).

Tomé, respondendo, disse: “Senhor, é útil repousar-nos naquilo que é nosso?” O Salvador respondeu: “Eis algo útil, com efeito. E, para vós, é vantajoso, pois o que se manifestou nos homens será dissolvido, já que seu recipiente carnal perecerá. E, sendo aniquilado, estará naquilo que se manifestou1, no seio daquilo que lhes é visível. Então, o fogo visível deve-se ao amor da fé que eles tiveram antes que ele os fizesse sofrer. E eles se reunirão de novo ao manifestado. Em contrapartida, aqueles que olham o não-manifestado, sem o primeiro amor, perecerão pelas preocupações da vida e pelo ardor do fogo. Em pouco tempo, o manifestado será dissolvido. Então, haverá espectros sem forma: no meio dos túmulos, eles se manterão sobre os cadáveres, para sempre, pelo sofrimento e a aniquilação da alma” (p. 141,2-18).

…O Salvador disse: “Na verdade, não tenhas aqueles como homens, mas conta-os entre os animais. Com efeito, assim como os animais se entredevoram, também os homens dessa espécie. Eles se entredevoram, mas também são excluídos da (vida), pois amam a doçura do fogo, são escravos da morte e se precipitam para as obras da mácula. Eles levam ao fim o desejo de seus pais. Eles serão precipitados no abismo e serão fustigados por causa da amarga fatalidade de sua malvada natureza. Com efeito, eles serão flagelados até fazê-los fugir, acabrunhados, para o lugar que não conhecem. E eles perderão seus membros, não na resistência2, mas no desespero” (p. 141, 25-38).

…E Tomé respondeu: “Tu nos convenceste, sem dúvida, Senhor: nós reconhecemos em nosso coração e está manifesto que é a verdade e que tua palavra não (tem) ciúme. Mas as palavras que nos disseste são pretextos para zombarias para as pessoas e chacotas contra elas, pois não são compreendidas. Então, como poderemos andar proclamando-as, se eles (não) nos contam como gente do mundo?” Respondendo, disse o Salvador: “Em verdade, vos digo: aquele que ouvir vossa palavra e voltar a face, rir ou ficar amuado, em verdade vos digo, será entregue ao arconte do alto, que domina todas as forças como seu soberano. E ele o fará dar meia-volta e o precipitará do céu no fundo do abismo. E ele será encerrado em lugar estreito e tenebroso. Então, ele não poderá se voltar nem falar por causa da grande profundidade do Tártaro e do (…) extenso do Inferno, que está edificado sobre (…). Sereis perseguidos e entregues ao anjo Tartarucos (anjo de fogo, que os) persegue com relâmpagos de fogo, lançando centelhas no rosto daquele que é perseguido. Fugindo para o Oeste, é o fogo que ele encontra. Voltando-se para o Sul, ele também o encontra lá. Voltando-se para o Norte, lá também o espera a ameaça de um fogo que queima. Em contrapartida, ele não encontra o caminho para o Leste, a fim de fugir e ser salvo: ele não o encontrou no tempo em que estava em um corpo para que o encontre agora, no dia do juízo” (p. 142,19-143,7).

As maldições também se dirigem para o desejo e o apego ao corpo (salvo a décima segunda, corrompida e mais tardia, que deplora a recusa da gnose). Um trecho interessante é a parábola da cepa, elaborada a partir de Mt 13,24-30; 21,33-41 e de Hermas (Pastor, Similitude, V, 2,1-8; 5,1-5; 6,1-8).

Com efeito, se o sol não se erguer sobre seus corpos, eles apodrecerão e serão aniquilados como planta ou erva. Se o sol erguer-se sobre ela, dar-lhe-á força e a cepa sufocará. Quanto à cepa, tendo a força e a sombra das plantas e também todos os espinhos que cresceram com ela, estendendo-se e desenvolvendo-se, her(da) sozinha da terra onde cresceu e é senhora de cada lugar a que deu sombra. Então, tendo crescido, torna-se senhora de toda a terra, produz em abundância para seu senhor e o agrada particularmente, pois ele teria de suportar grandes esforços por causa das plantas até que as tivesse arrancado, mas a cepa sozinha as retirou e sufocou. E elas morreram e tornaram-se como a terra (p. 144,21-36).

O Códice II é encerrado (p. 145,20-23) com uma subscrição (colofão) piedosa do escriba:

Lembrai-vos de mim também, meus irmãos, em vossas orações. Paz aos santos e aos pneumáticos.


  1. O manifestado é o mundo sensível, material, lugar da perda. 

  2. Essa resistência é a do martírio.