Elias Lipiner: Excertos de “As letras do Alfabeto na criação do mundo”
Habitualmente admite-se que as letras do alfabeto passam a representar ideias somente depois de justapostas umas às outras para formarem palavras ou frases. Isoladamente, representam apenas sons esvaziados de qualquer sentido ideológico. Nesse particular, porém, o alfabeto hebraico se distingue sobremaneira dos demais, apresentando uma história pontilhada de exemplos contrários a essa tese.
A severa beleza geométrica dos caracteres hebraicos quadrados, tal como os achamos escritos ainda modernamente, serviu de inspiração para o advento, na poesia e na prosa, na pesquisa e na filosofia, de estranhas narrativas e prodigiosos conceitos que atribuem a cada letra o valor de um ideograma. Ao lado do aspecto gráfico destinado à vista e do sentido fonético destinado ao ouvido, apresentam, pois, os caracteres quadrados um sentido ideológico reservado para a inteligência do homem. Vem daí a crença que, enquanto o agrupamento de fonemas exprimindo sons forma ideias na linguagem comum, o agrupamento de ideogramas exprimindo ideias não poderia senão dar origem a locuções de potência ideológica grandemente multiplicada, a ponto de conterem forças sobrenaturais extremas. E a leitura das letras segundo a sua qualidade de hieróglifos da cosmologia: os signos que modernamente se combinam no texto para formar vocábulos têm-se combinado, nos albores do mundo, para formar o Universo.
Tal crença encontra-se exposta numa surpreendente obra cosmogônica da literatura hebraica antiga, intitulada Livro da Criação ou com mais rigor Livro da Formação (“Séfer Yetziráh”), em que se declara solenemente que a formação do Universo e de todas as variadas coisas que nele há resultou das mais diversas e complexas combinações das vinte e duas letras do alfabeto; ou, antes, da justaposição e sucessivas permutas das forças criativas nelas acumuladas, ou por elas simbolizadas. Afirma o Autor no segundo capítulo: “As vinte e duas letras fundamentais, Ele gravou-as, talhou-as, pesou-as, permutou-as e combinou-as a fim de desenhar por meio delas todas as formas das coisas já criadas, bem como das que ainda estavam por sê-lo”. Todo o Universo, segundo tal concepção, equivaleria a um livro escrito por meio das figuras espirituais das letras, cuja diversidade de formas geométricas explicaria até a diversidade das coisas. É o alfabeto desnudado de suas qualidades gráficas e fonéticas comuns para formar a escrita do Universo.
Percebe-se uma grande semelhança entre os pensamentos expressos pelo autor do Livro da Criação e os conceitos espiritualistas contidos na filosofia de Pitágoras e de Platão. Este, com efeito, afirmava que as coisas materiais do mundo não passavam de reflexos das ideias, ou seja, das essências inteligíveis eternas e imutáveis de que derivam; e aquele, autor da mística dos números, igualmente separou a noção do número dos objetos materiais, para afirmar que o número é o fundamento de tudo e o princípio essencial que dá origem às coisas materiais. Também, segundo o autor do Livro da Criação, as coisas naturais do mundo real derivam de moldes sobrenaturais, eternos e imutáveis, identificados por ele com as letras do alfabeto, que ocupam, consequentemente, uma posição semelhante à das ideias na filosofia de Platão, ou à do número na filosofia de Pitágoras.
Impressionados, estimulados ou desafiados pela estranha concepção do velho livro sobre a origem do Universo, segundo a qual as letras contêm um sentido esotérico, uma força criadora e quiçá uma alma, passaram os exegetas do alfabeto hebraico — cristãos e judeus — a formular, no decorrer dos tempos, várias especulações baseadas na miraculosa intervenção dos signos gráficos em diversos domínios da existência e do pensamento humanos, e na sua aventura fascinante em escala cósmica.
Como que a indicar que nenhum detalhe da criação se encontra isolado do contexto da escrita, versaram os autores da exegese alfabética não só a intensa concentração, nas letras, de forças sobrenaturais cuja liberação motivou a criação do mundo, mas também as estações do ano, os meses e os dias, os ventos, a água e o fogo, as constelações do Zodíaco, bem como a anatomia do corpo humano. Atraídos e guiados pelo rico simbolismo das letras, esses autores vincularam a elas a revelação de um número cada vez maior de novas categorias de existência e de pensamento, bem como de ocorrências metafísicas que se estendiam ilimitadamente por todas as direções da eternidade. As letras tornaram-se assim, figuras-chave para desvendar os mistérios da origem e do destino do Universo e das coisas que o compõem, servindo, igualmente, para representar a ordem hierárquica das mesmas e, ao que parece, também para justificar a superioridade do homem sobre os demais seres, pela capacidade da fala reproduzida na escrita.