Alain de Libera — Filosofia Medieval
Excertos de Filosofia Medieval, Jorge Zahar, 1990
O ser e a essência — A distinção entre ser e essência não é aristotélica: a ousia, isto é, a substância, de Aristóteles, tem um sentido existencial. A interpretação da ousia como essentia é uma criação da Idade Média. Atestada em Abelardo (Dialectica, III, 1) — onde ela coexiste aliás com diferentes outras distinções (essentia / habitudo; essentia / vocabulum; essentia / vox) —, a oposição entre essência e existência só se impôs verdadeiramente no Ocidente com a difusão da Philosophia Prima de Avicena.
Na época de Abelardo, o vocabulário do ser ainda não está formado (J. Jolivet). Na obra lógica, a essentia abelardiana significa pois, alternativamente, a essência no sentido do eidos, uma coisa existente, o ser, e até a matéria como “fundo do ser” (na exposição da teoria realista da “essência material”); na obra teológica essentia toma ora o sentido de existência ou de coisa existente, ficando o sentido de essência reservado ao termo substantia, ora o de essência sinônimo de substantia (equação que já se lê em Calcídio citando Cícero, ou em Agostinho, cuja semântica da essência apresenta aliás mais ou menos a mesma ambiguidade). É com a distinção aviceniana entre res e ens que se instala a distinção, desde então tradicional, entre essência (essentia) e existência (existentia) ou ser (esse). Uma de suas primeiras testemunhas é o De trinitate, de Guilherme de Auvergne (por volta de 1180-1249) que lhe dá sua feição quase definitiva. A palavra esse tem dois sentidos: a essência, que é “o que significa a definição de uma coisa” (resposta à questão quid est?), e a “intenção” expressa pelo verbo ser, considerado como verbo existencial de pleno exercício. O esse tomado no sentido de existir não “entra na determinação de coisa alguma” (a existência não está compreendida na essência): posso conceber a essência de um homem sem o seu ser; a única exceção ao regime da diferença entre essência e ser é Deus, “cujo ser se diz essencialmente, pois sua essência não pode ser concebida sem o ser, uma vez que sua essência e seu ser são absolutamente idênticos”; enfim, o ser do ente, cuja essência e cujo ser diferem, e que recebe seu ser de um outro, é um “ser de participação”, atingido pela “indigência” (esse indigentiae) e contaminado pela “falsidade” (esse falsam). Essa expressão ontológica da contingência radical do ser criado é tirada de Avicena (Metaphysica, I, 8); é encontrada até em Mestre Eckhart (1270-1328) na tese condenada da “nulidade” (nihileitas) do “ser criatural”.
Com a chegada do Grande Comentário de Averróis sobre a Metafísica, a distinção entre essência e existência toma um novo aspecto: a discussão se concentra explicitamente na validade da tese aviceniana da “acidentalidade do ser” (esse) em relação à essência (essentia).
Segundo Avicena (Metaph., I, 2), a existência (ens) significa “uma disposição ou uma intenção superposta à coisa de que se fala”. Na apresentação da doutrina filosófica (na realidade aviceniana) da essência, proposta por al-Ghazali, o caráter acidental da essência é ainda mais explicitamente firmado: “O ser (ens) é acidental”, “o ser (esse) sobrevém (accidit), de alhures (alhinde), a todas as quididades, ele não lhes é inerente em virtude do que elas são por si mesmas” (Metaph., II); “toda coisa (res) pode ser pensada, sem por isso ser pensada como existente…, o ser (esse) é pois acidental a tudo o que é” (Lógica, 3). São essas teses que Averróis rejeita em bloco: “Avicena se enganou completamente ao afirmar que um (unurn) e ser (ens) significavam disposições superpostas à essência de uma coisa”; de fato, se uma res fosse um ente per aliquid additum, haveria regressão até o infinito (Metaph., IV, comm. 3); assim, é preferível afirmar com Aristóteles que “ens significa a essência (essentia) da coisa de que se fala”: “homem” (homo) e “ser-homem” (ens homo) são idênticos. A difusão latina da tese de Averróis contra a de Avicena é documentada pelas Quaestiones de divinis praedicamentis (q. 1) de Jacques de Viterbo (f 1308), que nela vê a posição característica dos “doutores modernos”. Entretanto, o ponto de vista aviceniano prevalece, em geral, no século XIII.
Em Tomás de Aquino, a tese aviceniana, retocada e fundida com a distinção boeciana do quod est e do quo est dá lugar a uma teoria metafísica que pesará sobre todas as discussões da Idade Média tardia: a teoria da distinção e da composição reais de essência e de existência no ente criado.
A tese fundamental de Tomás é que “em todo ser criado, o esse é diferente da essência e não entra na sua definição”. Tal como é, essa tese tem uma feição aviceniana; entretanto, Tomás afasta-se de sua fonte, interpretando a relação do esse para a essentia como uma relação do ato para a potência, desempenhando o esse o papel do ato em relação à potência que ele atualiza (Summa Theol, P Pars, Q. 3, a. 4) e ele modula a própria distinção entre essência e ser segundo a natureza do ente criado considerado. Nas substâncias espirituais (como o Anjo), há uma única composição de ato (esse ou quo est) e de potência (substantia subsistens, forma ou quod est); nos compostos de matéria e de forma (isto é, em todo o resto do ente criado), há duas composições: a da substância composta de matéria e de forma, a da substância já composta de matéria e de forma com o ser; em outras palavras, a forma quo est da substância hilemórfica, faz dela, a título de principium essendi, o sujeito próprio (substantia tota) de um ser (esse) que entra com ela numa composição segunda, e que, só esta, faz dela um “denominado ente” ou “ente por denominação” extrínseca — o ser conferido à substância vindo-lhe do exterior, isto é, de Deus (Summa contra Gentiles, TI, 54. Ver também In De Hebdomadibus II, 4 32; In I Sent., d. 8, q. 5, a. 1; Summa Theol., I Pars p. 50, a. 2; Quodl, II q. 2, a. 1; QuodL, III, q. 8 a. 1; Quodl, IX, q. 4, a. 1).
Entre os primeiros tomistas e seus adversários, a teoria da composição real de essência e existência é completada por uma distinção entre “o ser de essência” (esse essentiae) e o “ser de existência” (esse existentiae). Se a origem da noção de esse essentiae é aviceniana, seu desenvolvimento se fez segundo diferentes linhas, independentemente da problemática tomista (e anteriormente a esta); a noção de esse existentiae, em contrapartida, é mais diretamente ligada ao universo de doutrinas dos primeiros tomistas. Seus pontos de aplicação são, aliás, múltiplos., e vão da questão da estrutura ontológica do ente composto enquanto tal àquela, mais específica, da unidade formada pela substância e o acidente.
A noção de esse essentiae parece mostrar-se maciçamente nos anos 1240, para tratar o problema do modo de existência das idealidades matemáticas. Em suas Quaestiones supra libros IV phyisicorum Aristotelis, Roger Bacon utiliza a distinção entre “ser atual” e “ser de essência” (definido como “o ser possuído por aquilo que existe na matéria, sem que por isso ele lhe venha da matéria”) para caracterizar o procedimento abstrativo do matemático, que toma a forma non ut est in matéria, e opô-lo à atitude do físico, que considera a forma na matéria “quanto ao ser que lhe vem da matéria”.
A segunda ocorrência do esse essentiae diz respeito à teoria lógica da predicação sobre as classes vazias. Em sua Quaestio utrum haec sit vera “Homo est animal”, nullo homine existente, Siger de Brabant reporta que, segundo alguns, “mesmo se nenhum homem tem presentemente ser atual, o homem permanece em seu ser de essência, e que, na medida em que o ser de essência e definicional propõe o animal do homem, a proposição o homem existe é falsa, pois o verbo ser é, nessa proposição, segundo adjacente e predica o ser atual”. Essa tese. rejeitada por Siger, é atribuída por Alberto Magno a Avicena e a al-Ghazali, em nome da “sempiternidade da relação de inclusão (habitudo) do predicado no sujeito”, característica do primeiro modo da predicação por si (De praedicabilibus, VIII, 8). No De causis et processu universitatis, I, 8, ele precisa que toda proposição verdadeira de aptitudine essentiae é verdadeira independentemente da existência ou da não-existência das realidades designadas pelo sujeito (mesma doutrina no De intellectu et intelligibili, II, 3). Essa afirmação retoma a tese aviceniana da “indiferença da essência” ao ser e ao não-ser (Logica, 3), formulada no interior da teoria dos universais.
Tomado no nível da predicação, o ser de essência autoriza uma verificação “segundo a relação natural dos termos entre si (secundun habitudinem naturalem), precisando-se o ser atual” (Alberto, Liber I Prior, Anal., IV, 16). Muitos autores do século XIII (Richard Rufus de Cornualha, Guilherme de Sherwood, Nicolau de Cornualha) alegam nesse sentido um esse habitudinis, esse liabituale ou esse consequentiae, definido pela relação tópica (habitudo localis) ou inferencial, fundando logicamente a validade o temporal das proposições categóricas (de inesse simpticiter) analiticamente verdadeiras — um tal ser, expresso no verbo ser, tertium adiacens, não afirmando a “existência da coisa”, mas apenas a inerência do predicado. Já em suas Summulae Dialectices (por volta de 1250), Roger Bacon rejeita vigorosamente essa posição e sustenta que até as proposições necessárias só são verificadas sob a condição de ter uma denotação.
A oposição entre o esse essentiae e o esse (actualis) existentiae se lê em Pedro de Auvergne (Questiones de universalibus), mas é em Dietrich de Friburgo (por volta de 1250-1320), Gilles de Roma (por volta de 1243-1316), Henrique de Gand (por volta de 1217-1293), Godefroid de Fontaines (por volta de 1250-1309) e Duns Scot (por volta de 1265-1308) que ela toma seu verdadeiro impulso metafísico, ligado às polêmicas sobre a teoria tomista da distinção real.
Para o tomista Gilles de Roma (Theoermata de esse et essentia, 16 e 19), essência (ou esse essentiae) e existência (ou esse existentiae) são duas coisas distintas (duae res), e a criação do ente criatural em seu conjunto exige, como para o Tomás do Contra gentiles, uma composição real de essência e de existência acrescentada à composição de matéria e de forma, característica apenas dos entes materiais ou corporais (Theorem., 5). Em sua refutação de Gilles, Godefroid de Fontaines (Quodl., III, q. 1) retoma a crítica averroísta da acid,entalidade da existência segundo Avicena, sustenta a tese de uma identidade real da essência e da existência, as quais só são separadas por uma diferença de razão (secundum rationem) correspondente a uma diferença semântica entre termos abstratos (essentia, lux) e termos concretos (esse, lucem), e interpreta de acordo com Proclo a composição de ato e de potência nas Inteligências separadas (Quodl, VII, q. 7). A mesma posição visivelmente influenciada pela semântica filosófica dos modistas, é igualmente defendida pelo dominicano alemão Dietrich de Friburgo (De esse et essentia). Henrique de Gand (Quodl., I. q, 9; X, q. 7) reformula a interpretação da distinção entre essência e existência voltando à fonte aviceniana: a distinção real e a distinção de razão dão lugar a uma distinção “intermediária” (distinctio media) ou “intencional”, expressando a relação de dependência do ente criado com a causa de seu ser. Em Duns Scot, essência e existência sendo inseparáveis. (Opus Oxin., 2 d. 1, q. 2), a distinção real é eliminada seja em proveito de uma distinção formal (Wolter), seja em proveito de uma distinção modal entre a essência e seu modo intrínseco”, a existência (Gilson).
Na ontologia nominalista de Ockham, na qual se diz que só as res absolutae (substâncias primeiras e qualidades) existem, nenhuma espécie de diferença pode ser feita entre o “ser existente” (esse existere) e a coisa (res) que ultrapasse o estrito âmbito da semântica filosófica; as palavras “ser” e “coisa” significam a mesma realidade, uma verbalmente, outra nominalmente. Existência (existentia) e essência (essentia) não são duas “coisas”; assim também, a essência não se distingue do ser (esse) e do não-ser por sua “indiferença”.
Nessa versão reduzida da ontologia aviceniana, que, no fundo, retoma certos temas clássicos da lógica de Oxford (Roger Bacon) e das primeiras polêmicas antitomistas, não há lugar para o problema metafísico da distinção entre essência e existência; também não existe a possibilidade de distinguir diferentes seres ou entes pela distinção da essência e da existência. Deus não se distingue da criatura porque só Ele seria a sua própria existência ou sua própria essência, ou porque só Nele essência e existência seriam idênticas: tais proposições podem ser formadas a propósito de qualquer ente real. Entretanto, ao mesmo tempo em que rompe com a teoria da distinção (real) entre essência e existência, oriunda da leitura tomista de Avicena, Ockham retoma a distinção boeciana do quod est e do quo est, assim como a noção aviceniana do ser não-necessário. A distinção do quod est (essência ou existência) e do quo est do ente criado é uma distinção real, que atinge o próprio coração de seu ser. De fato, se, contrariamente ao que afirma a ontologia tomista da participação, toda criatura é o que é (id quod est), ela o é “por um outro” (ab alio), isto é, por Deus. A criatura é um ser que em seu ser é causado, isto é, em linguagem aviceniana, cujo ser não é necessário. Ao contrário, em Deus, que é “por si mesmo”, quod est e quo est são “o mesmo”, isto é, Deus. O Ser que é Deus é o ser cujo ser é necessário, que existe necessariamente. A originalidade de Ockhan é, pois, dissociar os pares quod est / quo est e essentia / esse, identificados por Tomás de Aquino, rejeitando ao mesmo tempo a concepção aviceniana do ser por si não-necessário, como “falso em si”: o ente criado, o quod est, é um ente verdadeiro cuja essência e cuja existência são inseparáveis, mas que, como ser, é ser causado. A diferença que atravessa o criado não considera pois o ser e a essência, mas o ser causado e sua causa: existência, essência, ente e quididade dizem o mesmo. Nenhuma essência precede a existência ou o ente individual.