Diz-se amiúde que a experiência religiosa é a experiência de um êxodo; mas se êxodo for, trata-se provavelmente da partida para uma viagem de retorno. Talvez não devido a uma natureza essencial qualquer; mas, de fato, em nossas condições de existência (Ocidente cristão, modernidade secularizada, estado de ânimo de final de século tenso devido aos prementes e inéditos riscos apocalípticos), a religião é experimentada como um retorno. E o restabelecimento presente de algo que acreditávamos ter esquecido definitivamente, a reativação de um vestígio adormecido, a reabertura de uma ferida, a reaparição de algo que fora removido, a revelação de que o que pensávamos ter sido uma Überwindung (superação, aquisição de veracidade e consequente descarte) ainda é somente uma Verwindung, uma longa convalescença que tem de tornar a enfrentar o vestígio indelével de sua doença. Se retorno for, poderia ser um modo de a religião se reapresentar que permanece acidental em relação à sua própria essência? Como se —por algum acaso histórico, individual ou social — simplesmente tivesse nos acontecido de esquecê-la, distanciando-nos dela (talvez com sentimento de culpa), e agora, por alguma outra circunstância fortuita, o esquecimento de repente tivesse se tornado mais rarefeito? Mas um mecanismo dessa natureza (há uma verdade essencial, neste caso da religião, que está imóvel em algum lugar, enquanto, ao seu redor, os indivíduos e as gerações vão e vêm, num movimento totalmente exterior e irrelevante) já se tornou impraticável em filosofia: se dissermos que uma tese é verdadeira, devemos tachar de estupidez ou de irracionalidade precoce todos os grandes ou nem tão grandes pensadores do passado que não a reconheceram? E, se não, isto significa que há uma história da verdade (uma história do ser) que não é tão inessencial para o seu “conteúdo”… Baseando-nos sobretudo em considerações como estas, parece preferível a hipótese segundo a qual o reaparecimento, a volta da religião em nossa experiência, não é um fato puramente acidental, a ser posto de lado para simplesmente nos concentrarmos nos conteúdos que desse modo retornam. Podemos, ao contrário, supor legitimamente que o retorno seja um aspecto (ou o aspecto) essencial da experiência religiosa.
Sigamos então o rasto desse vestígio, assumindo como traço constitutivo, para uma renovada reflexão sobre a religião, o próprio fato de seu retorno, de sua re§parição, de seu apelo numa voz que estamos certos de já termos ouvido. Se assumirmos que o retorno não é um aspecto exterior e acidental da experiência religiosa, então até os modos concretos desse retorno, assim como o experimentamos em nossas condições históricas extremamente determinadas, deverão ser considerados essenciais. Mas o que será preciso observar para considerar as atuais modalidades concretas do retorno do religioso? Essas modalidades parecem ser principalmente de dois tipos, que não permitem o estabelecimento de uma ligação imediata, ao menos à primeira vista. De um lado, com presença mais patente na cultura comum, o retorno do religioso (como exigência, como nova vitalidade de igrejas, seitas, como busca de doutrinas e práticas outras — a “moda” das religiões orientais, etc.) é antes de mais nada motivado pela premência de riscos globais que nos parecem inéditos, sem precedentes na história da humanidade. Começou-se logo depois da Segunda Guerra Mundial com o medo da guerra nuclear, e hoje, que este risco parece menos iminente por causa das novas condições das relações internacionais, difunde-se o medo da proliferação descontrolada desse mesmo tipo de arma e, de uma forma mais geral, a ansiedade diante das ameaças que pesam sobre a ecologia planetária e os receios ligados às novas possibilidades de manipulação genética. Outro medo, também bastante difundido, ao menos nas sociedades mais avançadas, é o da perda do sentido da existência, do verdadeiro tédio que parece acompanhar inevitavelmente o consumismo. O que evoca e atualiza aquela “hipótese extrema demais” que era Deus para Nietzsche é sobretudo o caráter radical desses riscos, que parecem ameaçar a existência da espécie e sua própria “essência” (o código genético pode ser modificado…). Mesmo aquela forma de retorno do religioso que se expressa na busca e afirmação das identidades locais, étnicas, tribais — amiúde de modo violento — pode ser remetida na maior parte dos casos a uma recusa da modernização enquanto causa de uma destruição das raízes autênticas da existência.
No que diz respeito à filosofia e à reflexão explícita, o retorno do religioso parece acontecer segundo modalidades totalmente diferentes, ligadas a experiências teóricas que nos parecem bastante distantes, e em contraste com a inspiração quase sempre “fundamentalista” da nova religiosidade inspirada nos medos apocalípticos difundidos em nossa sociedade. A queda dos interditos filosóficos contra a religião, já que é justamente disso que se trata, coincide com a dissolução dos grandes sistemas que acompanharam o desenvolvimento da ciência, da técnica e da organização social modernas; e, portanto, com o desaparecimento de qualquer fundacionalismo — em outras palavras, daquilo que a consciência comum parece buscar em sua volta à religião. Naturalmente — e esta também é uma ideia difundida — pode ser que a nova vitalidade da religião dependa justamente do fato de a filosofia e o pensamento crítico em geral, por terem abandonado a própria noção de fundamento, já não conseguirem fornecer à existência aquele sentido que se busca, por conseguinte, na religião. Mas esta leitura da situação — que muitos sustentam, mesmo onde não esperaríamos encontrá-la — de pronto dá por resolvido o próprio problema do retorno, de onde começamos. Isto é, pensa a historicidade da condição atual em termos de um desgarramento puro e simples que nos teria conduzido para longe do fundamento — sempre presente e disponível — produzindo também, pelo mesmo motivo, uma ciência e uma técnica “desumanas”; deste ponto de vista, o retorno que se trataria de realizar não passa de um abandono da historicidade e da recuperação de uma condição autêntica que só pode ser pensada como uma “permanência no essencial”. O problema que assim se coloca é se a religião seria inseparável da metafísica no sentido heideggeriano da palavra; isto é, se é possível pensar-se Deus apenas como o fundamento imóvel da história, do qual tudo parte e ao qual tudo deve retornar — com a consequente dificuldade de designação de um sentido qualquer a esse enorme vaivém. Note-se que exatamente esse tipo de dificuldade estava entre as que levaram Heidegger a fazer o apelo para que se repensasse o sentido do ser fora dos esquemas objetivistas e essencialistas da metafísica. Nos anos cruciais em que preparava Sein und Zeit [Ser e tempo], como sabemos, Heidegger estava profundamente interessado numa reflexão sobre a religião mesma em relação aos problemas da historicidade, da temporalidade e, em última análise, da liberdade e da predestinação.
[DERRIDA, Jacques e VATTIMO, Gianni (org.). A religião : o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000]