Portanto, quando alguém tiver convivido com a rainha dos egípcios, embora não pareça excluído de suas magnificências, deve correr àquela que é a mãe por natureza, da qual Moisés não se separou no tempo de sua infância junto da rainha, uma vez que foi amamentado, como conta a história, com o leite materno. Isto ensina, a meu ver, que se no tempo de nossa educação convivermos estreitamente com os pensamentos pagãos, devemos não nos separar do leite da Igreja que nos alimenta. O leite são os preceitos e costumes da Igreja, com os quais a alma se alimenta e se fortifica, tomando daqui o ponto de partida para subir ao alto. É verdade que o pensamento de quem presta atenção aos ensinamentos pagãos e aos ensinamentos pátrios se encontrará entre dois inimigos (Ex 11, 12). O pensamento religioso estrangeiro resiste à palavra hebréia, disputando continuamente para aparecer mais forte que a de Israel. E assim pareceu a muitos dos mais superficiais, os quais, abandonando a fé paterna, se misturaram com os inimigos, convertidos em transgressores dos ensinamentos de seus pais. Porem quem é grande e nobre, seguindo o exemplo de Moisés, mostra com seu golpe de lança que é alma morta a doutrina que se levanta contra o discurso da verdade. Interpretando esta passagem de forma diversa, talvez alguém encontre esta luta dentro de nós. O homem se encontra, como o troféu de um certame, no meio daqueles competidores que o pretendem; faz vencedor do certame àquele a quem se inclina. Assim ocorre com a idolatria e o culto verdadeiro a Deus, a intemperança e a moderação, a justiça e a injustiça, a soberba e a humildade, e todas as coisas que se subentendem contrapostas na luta aberta de egípcio contra hebreu. Moisés nos ensina aqui com seu exemplo, a ajudar a virtude como a alguém da própria estirpe, e a repelir o adversário que a ataca. De fato, o triunfo da piedade é, ao mesmo tempo, morte e aniquilação da idolatria. Da mesma forma, a injustiça é destruída com a justiça, e mata-se a soberba com a humildade. A contenda entre os dois compatriotas tem lugar também entre nós (Ex 2, 13). Com efeito, não existiriam as invenções doutrinais das perversas heresias se não lutassem, em blocos contrapostos, as argumentações erradas contra as verdadeiras. E se somos demasiado débeis para dar por nós mesmos o triunfo ao que é justo, e o mal prevalece com seus argumentos e repele o primado da verdade, temos que fugir disto o mais rapidamente possível, partindo do exemplo da história de Moisés (Ex 2, 15) até um ensinamento melhor e mais sublime dos mistérios. E se for necessário viver de novo no estrangeiro, isto é, se houver uma necessidade que nos force a tratar com a filosofia pagã, façamo-lo depois de haver afastado os perversos pastores do uso injusto dos poços (Ex 2, 17), isto é, depois de haver refutado os mestres da maldade pelo mau uso da educação. Deste modo viveremos a sós com nós mesmos, sem chegar às mãos dos adversários ou nos colocar no meio deles, mas viveremos na companhia dos que estão apascentados por nós, iguais no sentir e no pensar: de todos os movimentos da alma que existe em nós, como ovelhas apascentadas pelo querer da razão que é a que dirige. E quando estivermos dedicados a esta paz e a este pacífico repouso, então brilhará a verdade, enchendo de luz com seus próprios fulgores os olhos da alma. Deus mesmo é a verdade que se manifestou então a Moisés através daquela inefável ILUMINAÇÃO. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 2.
Moisés chegou então a isto, e agora chega também todo aquele que, seguindo seu exemplo, despoja a si mesmo de sua envoltura terrena e olha para a luz que sai da sarça, isto é, o raio de luz que nos ilumina através da carne cheia de espinhos, que é, como diz o Evangelho, a luz verdadeira (Jo 1, 19) e a verdade (Jo 14, 6). Então este chega a ser capaz de prestar ajuda aos demais no sentido da salvação, de destruir a tirania daquele que domina com artes más, e de encaminhar à liberdade os que estão debaixo da tirania de perversa escravidão. A transformação da mão direita e a mudança do bastão em serpente (Ex 4, 3-7) são o começo dos prodígios. Parece-me que nestes prodígios se dá a entender simbolicamente o mistério da manifestação da Divindade aos homens através da carne do Senhor, graças à qual tem lugar a destruição do tirano e a libertação dos que estão oprimidos por ele. Leva-me a esta interpretação o testemunho profético e evangélico. Pois o profeta diz: Esta é a mudança da destra do Altíssimo (Sal 76, 11), como se a Divindade, considerada imutável, se houvesse mudado conforme nosso aspecto e figura por condescendência para com a debilidade da natureza humana. A mão do Legislador tomou uma cor distinta da que lhe é natural ao ser tirada do peito; voltando novamente ao peito, tornou à beleza que lhe era própria e natural. O Deus Unigênito, o que está no seio do Pai (Jo 1, 18), é a direita do Altíssimo (Sal 76, 11). Quando se manifestou a nós saindo do seio, se transformou conforme nossa forma de ser; depois de haver curado nossa enfermidade, novamente recolheu ao próprio seio, o seio da direita do Pai, a mão que havia estado entre nós e que havia tomado nossa cor. Então não tornou passível o que era de natureza impassível, mas por sua comunicação com o que era impassível transformou em impassibilidade aquilo que era mutável e passível. A transformação do bastão em serpente não há de perturbar os amigos de Cristo como se tivéssemos que harmonizar a palavra do mistério com um animal que lhe é oposto (Ex 4, 3; 7, 10 e Nm 21, 9). A verdade mesma não afasta esta imagem quando diz com a voz do Evangelho: Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do homem (Jo 3, 14). O sentido é claro. Se o pai do pecado foi chamado serpente pela Sagrada Escritura (Gn 3, 1), e o que nasce da serpente é verdadeiramente serpente, segue-se que o pecado tem o mesmo nome daquele que o gerou. Pois bem, a palavra do Apóstolo dá testemunho de que o Senhor se fez pecado por nós (2Co 5, 21), ao revestir-se de nossa natureza pecadora. O símbolo se acomoda ao Senhor como foi dito. De fato, se a serpente é pecado e o Senhor se fez pecado, a conseqüência que se segue será evidente a todos : que quem se fez pecado, se fez serpente, a qual não é outra coisa senão pecado. Se fez serpente por nós para comer e destruir as serpentes dos egípcios produzidas pelos magos. Uma vez feito isto, a serpente se transforma novamente em bastão (Ex 7, 12) com o qual são castigados os que pecam, e são aliviados os que sobem o caminho escarpado da virtude, apoiando-se no bastão da fé por meio das boas esperanças. A fé é, na verdade, a substância das coisas que se esperam (Hb 11, 1). Quem chegou ao entendimento destas coisas é como um deus em relação àqueles que, seduzidos pela ilusão material e sem substância, opõem-se à verdade e julgam coisa vã escutar falar a respeito do ser. Pois disse o Faraó : Quem é ele para que eu escute sua voz? Não conheço o Senhor (Ex 5, 2). O Faraó só julga digno aquilo que é material e carnal, as coisas que caem sob as sensações irracionais. Ao contrário, se alguém tiver sido fortalecido pela ILUMINAÇÃO da luz, e tiver recebido tanta força e tanto poder contra os adversários, então, como um atleta convenientemente preparado por seu treinador nos varonis exercícios do esporte, se dispõe, confiante e audaz, para o ataque dos inimigos, tendo na mão aquele bastão, isto é, o ensinamento da fé, com o que há de triunfar sobre as serpentes egípcias. A mulher de Moisés, saída de um povo estrangeiro (Ex 4, 20), o acompanhará. Há algo nada desprezível da cultura pagã para nossa união com ela com a finalidade de gerar a virtude. Com efeito, a filosofia moral e a filosofia da natureza podem chegar a ser esposa, amiga e companheira para uma vida mais elevada, com a condição de que os frutos que procedem delas não conservem nada da imundície estrangeira. Pois se esta sujeira não tiver sido circuncidada e cortada ao meio até o ponto em que todo o daninho e impuro haja sido arrancado fora, o anjo que lhes sai ao encontro lhes causará um terror de morte. A mulher o aplaca mostrando-lhe seu filho purificado pela ablação do sinal pelo qual se reconhece o estrangeiro (Ex 4, 24-26). Julgo que a quem esteja iniciado na interpretação da história será patente, por tudo que se disse, a continuidade do progresso na virtude que mostra o discurso seguindo, passo a passo, a conexão dos acontecimentos simbólicos da história. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 4.
Por outro lado, uma vez que por seu grande esforço e pela ILUMINAÇÃO que recebeu no cume se elevou à maior das ações da alma, tem lugar um encontro amigável e pacífico, pois Deus moveu seu irmão para que saísse a seu encontro (Ex 4, 27). Se o que acontece na história for interpretado em sentido alegórico, talvez não se encontre nada que seja alheio a nosso propósito. A quem se dedica ao progresso na virtude, assiste uma ajuda dada por Deus a nossa natureza, que é anterior a nós quanto a sua origem, mas que se mostra e se dá a conhecer quando nos dispomos a combates mais fortes, depois de havermos nos familiarizado suficientemente, com cuidado e diligência, com a vida mais elevada. Para não explicar alguns enigmas por meio de outro enigma, exporei mais claramente o sentido desta passagem. Existe uma doutrina que merece credibilidade por pertencer à tradição dos Pais. Diz que, depois da queda de nossa natureza no pecado, Deus não contemplou nossa desgraça indiferentemente, mas que colocou perto, como ajuda para a vida de cada um, um anjo que recebeu uma natureza incorpórea (Mt 18, 10- 11); e que em oposição, o corruptor da natureza maquinou algo parecido, danificando a vida do homem mediante um demônio perverso e malvado. Como conseqüência, o homem se encontra entre esses dois que o acompanham com propósitos contrários, e pode por si mesmo fazer triunfar um ou outro. O bom mostra ao pensamento os bens da virtude como são contemplados em esperança por aqueles que agem retamente; o outro mostra os sujos prazeres nos que não existe nenhuma esperança de bem, pois inclusive o prazer imediato, o que se apreende e se pega, escraviza os sentidos dos tontos. Porem se alguém se afasta dos que induzem ao mal, dirige seus pensamentos ao melhor e volta as costas – por assim dizer – ao vício, põe sua própria alma – que é como um espelho -, frente à esperança dos bens, e assim imprime na pureza da própria alma as imagens e reflexos da virtude que lhe é mostrada por Deus. É então que a companhia do irmão lhe sai ao encontro e o assiste (Ex 4, 27). Pela racionalidade e intelectualidade da alma humana, pode-se, de certo modo, chamar irmão ao anjo. Este, como já dissemos, aparece e socorre quando nos aproximamos do Faraó. Que ninguém pense que a narração da história corresponde tão absolutamente com a ilação desta consideração espiritual, que se encontrar algo do escrito que não concorda com esta interpretação, por este algo que não concorda rechace o todo. Que tenha sempre presente a finalidade de nossas palavras, a qual temos presente ao expor estas coisas. Já adiantamos no prefácio a afirmação de que as vidas dos grandes homens são colocadas como exemplos de virtude para a posteridade. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 6.
Avancemos com a continuação do texto, tendo bem presente o que já explicamos: que o mesmo Moisés ou aquele que a sua imitação se eleva na virtude, depois de haver fortalecido sua alma com uma prolongada vida elevada e reta, e com a ILUMINAÇÃO recebida do alto, considera como uma injustiça de sua parte não guiar seus compatriotas a uma vida livre. Moisés saindo a seu encontro infunde-lhes um desejo mais forte de liberdade pondo diante deles a gravidade dos padecimentos. A quando está perto de libertar seu povo do mal, traz a morte a todo primogênito egípcio (Ex 12, 29), indicando-nos deste modo que é necessário destruir o mal em seu primeiro broto, pois do contrário é impossível escapar da vida egípcia. Parece-me importante não deixar passar este pensamento sem refletir sobre ele. Pois se alguém considerar só o sentido literal, como poderá manter uma interpretação digna de Deus nos acontecimentos narrados? É injusto o egípcio e em seu lugar é castigado seu filho recém nascido que por sua tenra idade não pode distinguir entre o bem e o mal. Sua vida é alheia à paixão malvada, pois a infância não dá lugar à paixão, nem estabelece diferença entre a direita e a esquerda; unicamente ergue os olhos ao peito de sua nutriz, para expressar sua dor só dispões de suas lágrimas e, se consegue o que deseja sua natureza, mostra sua alegria com um sorriso. Onde está a justiça, se este cumpre o castigo pela maldade paterna? Onde a piedade? Onde Ezequiel clamando que a alma que peca, esta morrerá e não será responsável o filho, mas o pai (Ez 18, 20)? INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 13.