Horto do Esposo

ASCETISMO E MISTICISMO — O HORTO DO ESPOSO

Excertos de Mário Martins, A BÍBLIA NA LITERATURA MEDIEVAL PORTUGUESA

«Horto fechado és tu, irmã minha esposa» (Cant., 4, 12)

Há uma diferença, ao mesmo tempo grande e pequena, entre o horto deste livro e o dos Cantares. Com efeito, no Horto do Esposo, sobretudo no começo, a esposa é a alma que se recreia no horto ou jardim da Sagrada Escritura. E por linha secundária, também nesta obra. Por seu lado, Cristo alegra-se na alma do homem — e esta é um horto regado pelos rios da Sagrada Escritura. E assim como num jardim ou pomar há ervas, árvores, frutos e flores de várias espécies, assim nesta obra, à imagem da Sagrada Escritura, encontra o leitor mantimento, ensino e consolação. Rude ou sábio, qualquer homem achará nela descanso, desenfado e saúde.

As primeiras vinte páginas tomam forma de alegoria, com a Bíblia no lugar do Paraíso Terreal. Na verdade, assemelha-se a Sagrada Escritura ao Paraíso Terreal, com árvores, frutos, orvalhos nocturnos, ervas medicinais, ventos bem temperados, aves canoras, um muro em torno e guardas vigilantes. Havia também lá a Árvore da Vida, uma nascente no meio, a regar o pomar, e quatro rios de águas transparentes. Tudo isto vemos na Sagrada Escritura, até enxertos, a saber, as três pessoas da SS.ma Trindade, enxertadas numa sô natureza, e Cristo, ao mesmo tempo Deus e homem.

O demônio sabe do valor da Sagrada Escritura e chega mesmo a citar uma epístola de S. Paulo. Fonte de sabedoria, a Bíblia ensina a prudência, «a longura da vida», o juízo claro e os caminhos do bom ensino.

Recordam-se parábolas de Jesus e, mais adiante, o anônimo autor repete à letra o mesmo grito de angústia dum sermão famoso do P.e Antônio Vieira, contra os holandeses: Exurge, Domine… Levanta-te, Senhor, e não nos desampares até ao fim.

Noutros casos, adapta-se a Bíblia a um sentido espiritual. O vinho e a música alegram o coração do homem, diz o Livro do Eclesiástico (40,20). Porém, o Horto do Esposo chama vinho à contemplação de Deus, que embebeda as almas santas.

De certas passagens bíblicas, sobretudo do Eclesiastes, deriva, em parte, a mundividência do Horto do Esposo e a sua concepção da vida como um deslizar de sombras inconsistentes. Nada há sem trabalho debaixo do Sol, nem coisa sem defeito e míngua debaixo da Lua. Vaidade das vaidades e todas as coisas são vaidade. Tudo é trabalho e aflição de espírito. Jugo pesado levam os homens, desde o ventre da mãe até à sepultura, que é «madre de todos». Tecem panos, esculpem as pedras, talham as madeiras, edificam prédios, plantam hortas e vinhas, lavram campos, acendem fornos, fazem moinhos, caçam, pescam, cismam, pedem conselhos, brigam, roubam, furtam, mercam, enganam, vendem, guerreiam — e tudo isto é vaidade e aflição de espírito.

Assim diz também Salomão (a quem atribuíram e autoria do Eclesiastes). Ajuntou riquezas, terras, cantores e cantadeiras, para ao fim verificar que nada é estável debaixo do Sol. Pobres e ricos, servos e senhores, uns sofrem por uma via e outros por outra. Ao fim e ao cabo, lá diz Salomão: Saí nu do ventre da minha mãe e nu voltarei. E tudo cá fica! Outro comerá o que é meu — e isto é vaidade e mesquinheza grande.

São páginas e páginas, colhidas sobretudo no Eclesiastes ou nele inspiradas, uma espécie de manta entretecida com bonitos fios bíblicos, colhidos ao gosto do autor. E em espírito ou em palavra escrita, bate em nós, como uma onda, a expressão de estrutura hebraica: vaidade das vaidades. Como diz o Eclesiastes, «vanitas vanitatum et omnia vanitas». Passa a formosura e diz Job que o homem nasce como a flor e é pisado como ela. E Isaías: Toda a glória do homem é como a flor do campo e a sua carne assemelha-se ao feno. Assim passa a beleza.
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Temos, no Horto do Esposo, o melhor tratado, em português, sobre a Sagrada Escritura, e a maior apologia dela. Formosa é a doutrina da Escritura — mais alva do que o leite, mais clara do que a luz, mais preciosa do que o ouro, mais radiosa do que as estrelas. Tem ela o deleite da rosa, assemelha-se à luz do fogo, tens o perfume do incenso e a formosura da oliveira nos campos. Por isso escreve Jesus, filho de Sirac, no Livro do Eclesiástico: Eu, a Sabedoria, andei em volta da redondeza do céu, trespassei a profundeza do abismo, andei nas ondas do mar, ensinando claramente que «toda ha universidade das creaturas som criadas por Deus» e nele existem. E esta sabedoria faz que um rústico fique acima dum letrado, «que diz cousas falsas». E se a Sagrada Escritura custa a entender, maior é o prazer do que se acha com trabalho.

Apesar destas e doutras páginas do Horto do Esposo, será no Boosco Deleitoso que o estilo bíblico, sobretudo o dos Cantares, atingirá maior extensão e força, pela ficção da alma a peregrinar para Deus, pela correnteza fluente da linguagem e pelas expressões de amor da Sulamita, isto é, da alma contemplativa.