A fenomenologia é capaz de dar conta dessa identidade entre o princípio que unifica a Vida e a torna possível e aquele que diversifica, nela, uma multiplicidade de viventes? A rejeição de toda diferença no sentido de discriminação entre todos esses Sis transcendentais viventes, Paulo a formulou numa afirmação abrupta: “Nem grego nem judeu, nem senhor nem servo, nem homem nem mulher”. (Gálatas 3,28) Quaisquer que sejam as perspectivas éticas abertas por essas proposições grandiosas — que Paulo toma, aliás, do ensinamento direto de Cristo –, qualquer que seja a transformação que tenham produzido na história, subsiste uma interrogação. Será [362] possível desconhecer, nos seres humanos, certos caracteres que estabelecem, entre eles, uma diferença tão importante quanto a diferença sexual, por exemplo? Não se poderia afastar esta sob pretexto de que ela intervém no plano “natural” e concerne aos corpos objetivos. Por um lado, essa diferença objetiva suscita a angústia, que determina inteiramente a relação erótica; por outro, é na imanência de nossa carne que a diferença sexual se revela originariamente na forma de impressões puras distintas, umas próprias da sensibilidade feminina, desconhecidas da sensibilidade masculina — e reciprocamente. Não se instaura, desse modo, uma incomunicabilidade essencial entre os próprios Sis transcendentais na medida em que essas impressões próprias de uns, desconhecidas dos outros, os habitam?
Tais questões reconduzem ingenuamente a uma fenomenologia da carne como se esta pudesse abstrair-se do processo de sua vinda a si mesma — como se cada Si, cada carne, cada impressão tivesse conteúdo autônomo, fechado sobre si mesmo, escapando em sua especificidade a todo “estar em comum” concebível. Mas se o “estar em comum” precede o Si como sua condição interna de possibilidade, e se essa condição transcendental é uma condição fenomenológica no sentido radical de Arquirrevelação, sem a qual nenhum fenômeno é possível, então o problema se inverte completamente. Formulada de modo rigoroso, a questão é esta: se supomos uma impressão específica da sensibilidade feminina e, assim também, uma impressão específica da sensibilidade viril, o que podem ter em comum essas duas impressões? Serem dadas a elas mesmas na autodoação da Vida absoluta.
Mas o que vale para essas impressões vale, a fortiori,para cada uma das carnes de que elas não são senão modalidades, para cada um dos Si transcendentais consubstanciais a essas carnes. É assim que cada Si transcendental carnal vivente dado a si e não estando consigo senão na autodoação da Vida absoluta em seu Verbo, se encontra sendo neste, com Ele. Desse modo, ele está [363] n’Ele com todos aqueles que também não são dados a si mesmos senão nesse Verbo em que eu sou eu mesmo dado a mim. É assim que cada Si transcendental vivente está no Verbo antes de estar consigo mesmo, e nesse Verbo ele está com o outro antes que o outro seja dado a si mesmo. E o outro está nessa mesma situação: estar no Verbo antes de estar consigo mesmo ou comigo — no Verbo em que está tanto consigo mesmo quanto comigo assim como estou eu mesmo com ele e comigo mesmo nesse Verbo. E assim, notadamente, que cada Si transcendental, estando com o outro ali onde ele é dado a si mesmo, está com o outro antes de toda determinação ulterior — antes de ser homem ou mulher. (Michel Henry, MHE)