Gênesis

(…) convém afastar a ideia de que o Gênesis propõe uma espécie de relato histórico da origem do mundo e de seu conteúdo – coisas inertes, espécies viventes, seres humanos. Considerado desse modo, o texto perde já de início toda significação. Assim, Adão [330] é criado quando tem vinte anos, tal como sua esposa, Eva. Diz-se desse Adão criado aos vinte anos que é o primeiro homem. Ora, de sua união com Eva nasceram dois filhos, dos quais um, Caim, mata o outro. Expulso do lugar onde está e que já não é o Paraíso, Caim erra pela Terra ao encontro de homens que lhe serão, todos, profundamente hostis — o que supõe que esses homens saídos de uma geração natural pertencem a famílias que povoam a Terra desde muito tempo antes.

Considerada em si mesma, a criação não é menos surpreendente se se distingue, nela, o ato criador e o conteúdo criado. E preciso reconhecer, então, que o conteúdo preexiste ao ato criador, ao menos com respeito à sua condição de existência — no caso, o tempo em que o ato criador se desenrola –, ao passo que deveria, evidentemente, precedê-lo. É assim que Deus criou sucessivamente o céu e a terra, a luz e as trevas, as águas, os vegetais, as árvores frutíferas, etc., tudo isso no primeiro dia, depois no segundo… até o sétimo dia, em que, como um homem sábio, decidiu repousar. Certamente, poder-se-ia considerar que essa circularidade entre a criação e o criado é uma visão metafísica, o que já nos conduziria a duvidar da ingenuidade do relato. Deixando de lado um feixe de questões inadequadas, iremos imediatamente ao essencial.

O Gênesis é a primeira exposição conhecida de uma teoria transcendental do homem. Por “transcendental” entendemos a possibilidade pura e apriorística da existência de algo como o homem. Trata-se da essência do homem tal como se fala de uma essência do círculo, isto é, da possibilidade interior de algo como um círculo (sem preocupação com saber quando os homens pensaram pela primeira vez num círculo e já não num redondo, quando compreenderam sua idealidade, o que é essa idealidade em geral, etc.). Do mesmo modo, a questão da condição interior de possibilidade de uma realidade como a nossa não tem nada que ver com o aparecimento histórico e factual dos homens na Terra, com seu desenvolvimento [331] empírico. Aliás, essa concepção da essência apriorística do homem marca o momento em que se pode falar de um homem pela primeira vez.


No Gênesis, a relação com o mundo está presente, e parece mesmo ocupar uma posição preeminente, na medida em que a criação é pensada precisamente como a do mundo. Nesse sentido liminar, o conceito de criação é decisivo: marca a priori o Todo do ser, a totalidade da realidade qualquer que ela seja, com uma passividade radical que jamais será suspensa. Apesar de sua radicalidade, tal passividade permanece marcada por uma incerteza fundamental e, aparentemente até mesmo falaciosa, na medida em que essa criação divina do mundo dada como um processo universal concerne com toda evidência ao homem, tomando-o em si e assim fazendo, dele, um “ser do mundo” cujos principais caracteres, e notadamente a passividade, devem eles mesmos ser captados a partir dessa condição que é a sua. (Michel Henry, MHE)