Egito

Talvez a história destes homens ilustres tenha sido escrita detalhadamente para isto: para que a vida dos que vêm depois se dirija para o bem imitando as coisas que foram feitas precedentemente com retidão. Talvez alguém diga: se eu não sou caldeu como sabemos que foi Abraão, nem fui criado pela filha do Egípcio como conta a história de Moisés, nem tenho nada em comum na forma de viver com nenhum destes homens de outros tempos, como conformarei minha vida com a de um deles, se não tenho como imitar a alguém que me é tão afastado em sua forma de viver? Respondemos que não pensamos que ser caldeu seja vicio ou virtude, nem que ninguém se encontre afastado da vida virtuosa por viver no EGITO ou habitar na Babilônia. Pelo contrário, nem Deus se faz conhecer somente na Judéia daqueles que são dignos, nem Sião, entendido em sentido literal, é a casa de Deus (Sal 75, 2-3). Portanto, teremos necessidade de uma interpretação mais sutil e de um olhar mais agudo para discernir sempre, a partir da história, de que caldeus ou egípcios havemos de nos distanciar e de que cativeiro da Babilônia devemos escapar para conseguir a vida bem-aventurada. Daqui para a frente, em nosso discurso, tomamos Moisés como modelo de vida. Em primeiro lugar, recorreremos rapidamente sua vida, conforme a conhecemos pela divina Escritura; depois buscaremos o significado espiritual correspondente à história, para receber um ensinamento sobre a virtude. Assim conheceremos em que consiste para os homens a vida perfeita. HISTÓRIA DE MOISÉS PREFÁCIO

Ele escolheu conduzir nos montes uma vida solitária, afastada do tumulto das praças e dedicada a guardar os rebanhos no deserto. A história nos conta (Ex 3, 1-6) que, passado algum tempo nesta vida, Moisés recebeu uma surpreendente aparição de Deus: em um tranqüilo meio dia, reluziu ante seus olhos uma luz mais forte que a luz do sol; estranhando o inusitado do espetáculo, levantou os olhos para o monte e viu um arbusto do qual saia um resplendor como de fogo. Como os ramos da planta estavam verdes como se as chamas fossem orvalho, disse a si mesmo estas palavras: vamos e vejamos este grande espetáculo. Isto nos diz que o prodígio da luz não somente se mostrou a seus olhos mas, o que é mais impressionante de tudo, seus ouvidos foram iluminados com os resplendores da luz. Com efeito, a graça da luz foi distribuída a ambos os sentidos: os olhos foram iluminados com os resplendores da luz, e os ouvidos foram levados à luz com instruções puríssimas. Isto é, a voz que saía daquela luz proibiu Moisés de aproximar-se do monte com calçados feitos de peles mortas; quando ele livrou seus pés dos calçados, tocou assim aquela terra que estava iluminada com a luz divina. Depois dessas coisas, não julgo oportuno que o discurso se entretenha muito na história deste homem, para ater-nos mais a nosso propósito, fortalecido com a teofania que vira, recebeu a missão de livrar o seu povo da escravidão dos egípcios. E para que melhor se convencesse da força que recebia do alto, ele, por disposição de Deus, faz a experiência com o que tem nas mãos. Esta foi a experiência: o bastão que sua mão deixou cair se animou, e quando foi retomado por suas mãos, voltou a ser o que era antes de transformar-se em animal. Depois o aspecto de sua mão quando a tira do seio se transforma em um branco como de neve, e reintroduzida ao seio recobra seu aspecto natural (Ex 4, 2-7). Quando Moisés descia do EGITO levando consigo sua esposa, que era estrangeira, e os filhos que tinha tido com ela, conta-se que um anjo saiu-lhe ao encontro causando-lhe um medo de morte, e que a mulher o aplacou com o sangue da circuncisão do menino. Foi então que ocorreu o encontro com Aarão que fora impelido por Deus para este encontro (Ex 4, 24-28). Ambos convocam então o povo para uma assembléia geral e anunciam aos que estavam oprimidos pelo padecimento dos trabalhos, a libertação da escravidão. Sobre este tema ele teve uma conversa com o tirano. Por causa dessas coisas, aumentou a cólera do tirano contra os que dirigiam os trabalhos e contra os israelitas: aumentou então o tributo de ladrilhos, e enviou uma ordem mais pesada, de forma que os israelitas não só padeciam pelo barro, mas também eram sobrecarregados por causa da palha e das canas (Ex 5, 1-23). Depois o Faraó, este era o nome do tirano egípcio, tentou fazer frente, com os encantamentos dos feiticeiros, aos prodígios que eles faziam pela vontade de Deus. Quando Moisés tornou a converter seu bastão em animal ante os olhos dos egípcios, a magia pareceu realizar o mesmo prodígio nos bastões dos magos. Porem o engano foi desmascarado, pois a serpente surgida da transformação do bastão de Moisés, ao comer os troncos dos magos, isto é, as serpentes, demonstrou assim que os bastões dos magos não tinham nenhuma força para se defender e nem para viver, mas apenas a aparência de um truque mágico para verem os olhos daqueles que eram fáceis de enganar (Ex 7, 8-12). Quando Moisés viu que todos os súditos estavam de acordo com o príncipe da maldade, fez vir uma praga geral sobre todo o povo egípcio, sem que ninguém escapasse da experiência dos males. E para infligir este castigo aos egípcios, cooperaram com ele os mesmos elementos que vemos no universo: a terra, a água, o ar, o fogo, que trocaram suas forças conforme a vontade dos homens. HISTÓRIA DE MOISÉS 2.

Com efeito, quem estava livre de culpa permanecia incólume, enquanto que com a mesma força, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, era castigado o culpado. Ao comando de Moisés todo tipo de água se converteu em sangue para o EGITO, ao ponto de que também os peixes morressem por causa da densidade carnosa em que se havia transformado a água; o sangue, por outro lado, voltava a se converter em água para os hebreus, quando a tomavam. Aqui os magos reaparecem para simular, na água que tinham os hebreus, a aparência de sangue (Ex 7, 20-22). Sucedeu o mesmo com as rãs que invadiram o EGITO: sua aparição até uma proliferação de tal magnitude não pode ser avaliada como uma conseqüência da natureza, mas que o comando dado à espécie das rãs modificou a natureza conhecida destes animais. Todo o EGITO foi atormentado por estes animais que invadiram inclusive as casas, enquanto a vida dos hebreus se mantinha limpa dessas coisas repugnantes (Ex 7, 25-29). Da mesma forma, a atmosfera não permitia aos egípcios nenhuma distinção entre a noite e o dia; permaneciam em um obscuridade uniforme, enquanto para os hebreus, nas mesmas circunstâncias, nada havia mudado em relação ao habitual. E do mesmo modo com relação a todas as demais coisas: o granizo, o fogo, os mosquitos, as pústulas, as moscas, a nuvem de gafanhotos. Cada uma, segundo sua própria natureza, feriu os egípcios; os hebreus, ao contrário, sabiam do sofrimento de seus vizinhos por rumores e relatos, pois não experimentaram em si mesmos o ataque dessas calamidades. Depois, a morte dos primogênitos fez mais clara a diferença entre o povo hebreu e o egípcio: uns se desfaziam em lamentações pela perda dos seres mais queridos (Ex 12, 29); os outros permaneciam em total tranqüilidade e segurança, porque tinham a salvação confirmada pela aspersão do sangue e por haverem marcado as portas com sangue, como senha, em cada um dos lados das ombreiras e no montante que as unia (Ex 10, 21-23). Depois disso, enquanto os egípcios estavam abatidos pelo desastre dos primogênitos e choravam sua desgraça, solitários ou todos juntos, Moisés começou a dirigir o êxodo dos israelitas, após haver advertido que levassem consigo, como empréstimo, a riqueza dos egípcios. Quando já se passavam três dias de caminho fora do EGITO – conta-nos a história – pareceu insuportável ao Egípcio que Israel não permanecesse na escravidão e, havendo mobilizado todos os seus súditos para a guerra, correu atras do povo com sua cavalaria. Este, quando viu o arrancar da cavalaria e da infantaria, sendo inexperiente nas artes da guerra e estando pouco acostumado a estes espetáculos, deixou-se levar imediatamente pelo medo e rebelou-se contra Moisés. A história conta também este feito paradoxal de Moisés: que sua atividade foi dupla. Com efeito, com a voz e a palavra dava ânimo aos israelitas e os exortava a ter boas esperanças, e ao mesmo tempo apresentava a Deus suas súplicas em seu coração em favor daqueles que se encontravam em tal apuro, e era instruído por meio do conselho divino sobre como poderia fugir de tal perigo (Ex 12, 31-14, 5). Pois Deus mesmo, como conta a história, escutava sua voz silenciosa. Uma nuvem guiava o povo por virtude divina, não por sua própria natureza. Sua substância, com efeito, não era formada por alguns vapores ou exalações como resultado de que o ar se houvesse feito mais denso por causa de substância úmida e de sua compressão pelos ventos, mas era algo muito maior e que excedia a compreensão humana. Como atesta a Escritura, aquela nuvem era um prodígio tal que, quando os raios do sol brilhavam abrasadores, se convertia em uma proteção para o povo, fazendo sombra para os que estavam em baixo e umedecendo o calor excessivo do ar com uma água fina; durante a noite se transformava em fogo, iluminando os israelitas com o resplendor de sua própria luz desde o entardecer até o nascimento do dia (Ex13, 21-23). HISTÓRIA DE MOISÉS 3.

Moisés olhava para a nuvem e ensinava o povo a seguir este fenômeno. Então chegaram ao mar Vermelho. Ali, enquanto a nuvem dirigia a marcha, as tropas dos egípcios cercaram completamente o povo por traz, sem lhe deixar possibilidade de escapar por nenhuma parte, encurralado entre seus terríveis inimigos e o mar. Foi então que Moisés, reconfortado com a força divina, fez o mais incrível de tudo. Tendo se aproximado da margem, golpeou o mar com seu bastão. O mar se fendeu com o golpe. E, como costuma acontecer com o vidro que começando a se rachar em uma parte a fenda chega diretamente até o outro extremo, assim, fendido todo aquele mar em uma extremidade pelo bastão, a fenda das ondas se estendeu até a margem oposta. Onde o mar se havia dividido, Moisés desceu até o fundo; junto com todo o povo, estava nas profundezas, com o corpo enxuto e iluminado pelo sol. No fundo seco do mar, atravessou a pé os abismos, sem temer aquela muralha de ondas que se haviam formado de um lado e de outro: uma fortificação reta, feita dos lados deles, da solidificação do mar (Ex 14, 19-22). Porem, quando o Faraó entrou com os egípcios no mar pelo caminho aberto recentemente entre as ondas, as águas se uniram novamente com as águas; o mar fechando-se sobre si mesmo segundo sua forma primitiva, mostrou a superfície da água novamente unida, enquanto os israelitas, na margem oposta, se refaziam do grande esforço de sua marcha através do mar. Então cantaram a Deus um canto de vitória por haver erguido para eles um troféu sem derramamento de sangue, posto que os egípcios haviam sido aniquilados sob as águas com todo seu exército, seus cavalos, seus carros e suas armas (Ex 14, 26-15, 21). Depois disto, Moisés continuou avançando e, após haver percorrido durante três dias um caminho sem água, encontrou-se em grandes dificuldades ao não ter como saciar a sede do exército. Havia uma lagoa de água salobra, mais amarga que a água do mar, ao redor da qual acamparam. Estavam ali sentados em torno da água, devorados pela ânsia de água. Moisés, impelido por uma inspiração divina, tendo encontrado um pedaço de pau naquele lugar, atirou-o na água que, imediatamente, se converteu em potável pela própria força daquele lenho, que transformou a natureza da água de salobra em doce (Ex 15, 22-25). Posto que a nuvem empreendesse novamente a marcha para adiante, eles se puseram também em marcha seguindo o movimento de seu guia. Faziam sempre o mesmo, parando onde a detenção da nuvem lhes dava o sinal de descanso, e empreendendo a marcha precisamente quando a nuvem recomeçava a guia- los. Seguindo este guia, chegaram a um lugar regado por água potável, banhado generosamente por doze fontes e que recebia a sombra de um bosque de palmeiras. As palmeiras eram setenta. Apesar de número tão pequeno, bastavam para produzir grande admiração a quem as olhava porque eram de excepcional beleza e altura (Ex 15, 27). Tendo o guia se posto novamente em movimento, isto é, a nuvem conduz o exército dali para outro lugar. Este era um deserto de areia seca que queimava, sem uma única gota de água que umedecesse aquele lugar. Aqui o povo foi atormentado novamente pela sede. Uma pedra situada a uma certa altura, golpeada com a vara por Moisés, deu água doce e potável mais que suficiente para a necessidade do exército (Ex 17, 1-6). Ali mesmo se acabou a provisão de alimentos que haviam trazido do EGITO para o caminho. O povo foi acossado pela fome e teve lugar o milagre maior de todos: o alimento não lhes brotava da terra como seria natural, mas vinha gotejado de cima, do céu, em forma de orvalho. Pois ao amanhecer do dia caía para eles um orvalho. Este orvalho se convertia em alimento para os que o recolhiam. O que caía não eram gotas líquidas de água, como ocorre normalmente com o orvalho, mas em lugar de gotas de água caíam grãos parecidos com gelo; sua forma era redonda como semente de coentro, e seu sabor parecia a doçura do mel (Ex 16, 14). HISTÓRIA DE MOISÉS 4.

Assim lhes construiu a tenda e lhes transmitiu as leis, estabelecendo o sacerdócio conforme o que lhe havia sido ensinado por Deus. Depois fez que se realizassem os trabalhos materiais conforme a instrução divina: a tenda, os vestíbulos, todas as coisas interiores, o altar de incenso, o altar dos holocaustos, o lampadário, os tapetes, as cortinas, o propiciatório no interior do santuário, os ornamentos sacerdotais, os perfumes, os diversos sacrifícios, as purificações, os ritos de ação de graças, de impetração contra os males, de expiação dos pecados; tendo ordenado todas estas coisas da maneira devida, suscita contra si a inveja de seus íntimos, essa enfermidade tão familiar à natureza dos homens. De fato, tanto Aarão, honrado com a dignidade do sacerdócio, como também sua irmã Maria, movida por uma inveja especificamente feminina contra a honra que Deus havia dado a ele, disseram coisas que moveram Deus a castigar este pecado. Nesta ocasião, Moisés se mostrou digno de admiração por sua mansidão, pois enquanto Deus queria castigar a ilógica inveja, ele antepunha a natureza à cólera e intercedia perante Deus por sua irmã (Nm 12, 1-13). A plebe se entregou novamente à desordem. O começo do pecado foi a desmedida nos prazeres do ventre. Não lhes bastava viver saudável e agradavelmente do alimento que lhes vinha de cima, mas o desejo de iguarias e a ânsia de comer carne os fizeram preferir a perpétua escravidão do EGITO aos bens que já tinham. Moisés falou com Deus a respeito da paixão que se havia abatido sobre eles, e este, ao lhes conceder alcançar precisamente aquilo que desejavam, os ensinou que não era conveniente se comportar assim. De fato, de improviso fez cair no acampamento uma multidão de pássaros que voavam em grande número a rés do solo, com o que facilmente caçados saciou o desejo dos que ansiavam por carne fresca (Nm 11, 4-6 e 31-32). Para uma grande parte deles, o excesso de comida transformou o equilíbrio dos humores de seus corpos em vômitos corrompidos, e a saciedade se converteu em enfermidade e morte. Seu exemplo foi suficiente para levar a temperança a eles mesmos e aos que os assistiam (Nm 11, 33-34). Então Moisés enviou exploradores àquela região que, segundo a promessa divina, esperavam habitar. Como nem todos contaram a verdade, mas alguns deram notícias falsas e más, o povo se encheu de ira contra Moisés mais uma vez. Aqueles que desconfiaram da ajuda divina, Deus castigou não lhes deixando ver a terra que lhes havia prometido (Nm 13, 1-14, 38). Ao prosseguir sua marcha através do deserto, faltou novamente a água e, juntamente com ela, lhes faltou a lembrança do poder de Deus. Na verdade, o prodígio da rocha que já havia tido lugar, não lhes foi suficiente para crer que nada do necessário lhes faltaria agora, mas, afastando-se das mais saudáveis esperanças, propalaram ultrajes contra Deus e contra Moisés até o ponto em que mesmo Moisés pareceu se deixar levar pela desconfiança do povo. Não obstante, novamente realiza o milagre transformando em água aquela rocha bruta (Nm 20, 2-11). Mais uma vez, o prazer vulgar da comida despertou neles o desejo de fartar-se e, embora ainda não lhes faltasse nenhuma das coisas necessárias para a vida, sonharam com a saciedade do EGITO. Os jovens rebeldes foram corrigidos com castigos mais severos, ao lhes inocular veneno as serpentes mordendo-os em um ataque mortal (Nm 21, 4-6). Posto que um após outro sucumbiam à serpente, o Legislador, movido pelo conselho divino, fez uma figura de serpente em bronze e mandou colocá-la no alto para que estivesse à vista de todo o acampamento. E assim deteve o dano que estes animais faziam ao povo, e pôs fim a sua destruição. Com efeito, quem olhava para a imagem da serpente feita de bronze não tinha porque temer nenhuma mordida da serpente verdadeira, porque o olhar debilitava o veneno com uma misteriosa resistência (Ex 21, 7-9). HISTÓRIA DE MOISÉS 10.

Não é possível que aqueles que desejam imita-los passem pela mesma materialidade dos feitos. Como, de fato, se poderia encontrar novamente o povo que se multiplicou depois de sua emigração do EGITO, e como se poderia encontrar também o tirano que o escravizou comportando-se malvadamente com a descendência masculina e permitindo à descendência mais branda e fraca aumentar até se converter em multidão, e assim todas as outras coisas que aparecem na narração? Uma vez que podemos ver que, na materialidade mesma dos feitos, não é possível imitar os gestos maravilhosos destes bem aventurados, só havemos de transferir de seu acontecer material o ensinamento moral daqueles acontecimentos que assim o admitam, dos que oferecem, para quem se esforça por conseguir a virtude, algum estímulo até este gênero de vida. E se, por força, algum dos fatos que contem a história sai da ordem e da coerência com a interpretação que propusemos, passaremos por alto como algo inútil e sem proveito para nossa finalidade. Desta forma conseguiremos não interromper a exegese relativa à virtude. Digo isto pela interpretação em relação a Aarão, prevendo uma objeção ao que segue. Com efeito, alguém dirá que não repele o fato de que o anjo tenha semelhança com a alma quanto à incorporalidade e à capacidade de entender; que não nega o fato de que sua criação tenha tido lugar antes da nossa, nem que assista aos que lutam contra os adversários; porem que não parece bem entender como imagem sua a Aarão, que conduz os israelitas à idolatria. Antecipando a ordem do relato, responderemos a isto com o que já dissemos: que um episódio estranho não desvirtua a coerência dos demais fatos, e que, se o mesmo nome designa o papel do anjo e do irmão, se acomoda também a cada um segundo significados contrários. Com efeito, não só se diz anjo de Deus, mas também de Satanás (2Co 12, 7), e chamamos irmão não só ao bom, mas também ao mau. A Escritura fala dos bons quando diz : Os irmãos serão úteis na necessidade (Pr 17, 17). E dos perversos quando diz : Todo irmão prepara armadilha (Jr 9, 3). Após dizer isto a margem da ordem do discurso e deixando para seu lugar adequado uma consideração mais profunda destas questões, voltemos aos temas que nos propusemos. Moisés, fortalecido com a luz que o iluminou e tendo recebido seu irmão como companheiro de luta e como ajuda, fala ao povo valentemente sobre a liberdade, recordando-lhes a grandeza pátria, e lhes dá a conhecer como poderão se livrar da fadiga do barro dos ladrilhos (Ex 4, 29-31). Que nos ensina a história com estas coisas? Que não se deve atrever a falar ao povo aquele que não tiver cultivado sua forma de dizer com uma educação adequada para dirigir-se a muitos. Não vês, de fato, como Moisés, quando ainda era jovem, antes de crescer em capacidade, não foi aceito como digno conselheiro de paz por aqueles dois homens que estavam lutando e agora, ao contrário, fala ao mesmo tempo a milhares de pessoas? Podemos dizer que a história grita que não te atrevas a propor um ensinamento ou um conselho aos ouvintes, se antes não tiveres adquirido autoridade nisto mesmo através de muito estudo. Depois de pronunciar Moisés as mais valentes palavras e mostrar o caminho da liberdade excitando nos ouvintes o desejo dela, o inimigo se irrita e aumenta os sofrimentos dos que dão ouvido a estas palavras (Ex 5, 6-14). Tampouco isto é alheio ao que nos interessa agora. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 7.

Muitos dos que acolheram a palavra que liberta da tirania e se aproximaram da pregação são maltratados agora pelo inimigo com os assaltos das tentações. Muitos destes se fazem mais provados e firmes na fé, temperados pelo ataque dos que os combatem; ao contrário, alguns mais débeis dobram o joelhos diante destes ataques dizendo abertamente que é preferível para eles permanecer surdos à chamada da liberdade que padecer tais dificuldades por causa dela. Isto mesmo ocorreu então devido à pusilanimidade dos israelitas, que acusaram os que os aconselhava o meio de escapar da escravidão. Porem não por isso cessará a palavra de atrair para o bem, ainda que o imaturo, infantil e imperfeito de entendimento, por sua inexperiência, se assuste ante as tentações. Isto é o que o demônio tenta contra os homens: busca ferir e corromper. Que quem está sujeito a ele não olhe para o céu, mas que se incline para a terra e faça ladrilhos com lama dentro de si mesmo. De fato, é patente a todo mundo como o que pertence ao prazer material deriva da terra e da água, quer se olhe para os desejos do ventre e da gula ou quanto se refere à riqueza. A mistura destes elementos é – e se chama justamente – barro. Quantos avidamente se enchem dos prazeres do barro, não conseguem manter cheia sua ampla capacidade para receber prazeres, pois uma vez cheia, de novo se torna vazia para aquilo que flui para dentro. Quem faz ladrilhos sempre coloca de novo outro barro no molde que ficou vazio; parece-me que quem considera o apetite concupiscível da alma, compreenderá facilmente este exemplo. De fato, quem dá satisfação a sua paixão em qualquer das coisas pelas quais lutou, novamente se encontrará vazio com relação àquilo mesmo, se é lançado pela paixão a alguma outra coisa. E ao sentir-se satisfeito por esta coisa, se encontrará de novo vazio e com capacidade de desejar alguma outra coisa. E isto não cessará em absoluto de atuar em nós, até que nos subtraiamos da vida material. A cana e a palha que provem dela e que quem está submetido às ordens do tirano é obrigado a misturar ao ladrilho, interpretamos conforme o Evangelho de Deus e às palavras profundas do Apóstolo: ambos significam igualmente, a palha e a cana, matéria para o fogo (Mt 3, 12 e 1Co 3, 12-13). Quando algum dos que progridem na virtude quer atrair para uma vida livre e plena de sabedoria aqueles que estão escravizados pelo engano, aquele que, como diz o Apóstolo, seduz com ciladas variadas nossas almas (Ef 6, 12), sabe opor os sofismas do engano à lei de Deus. Tendo presente a Escritura, digo isto referindo-me às serpentes do EGITO, isto é, às diversas maldades do engano, cuja aniquilação realiza a vara de Moisés (Ex 7, 10-12). Porem isto já está suficientemente considerado. Assim pois, quem possui esta invencível vara da virtude que destroi as varas enganosas, avança por um caminho contínuo até maiores prodígios. A realização dos prodígios não tem lugar com a finalidade de ser admirada pelos que os vêem, mas está dirigida ao aproveitamento dos que se salvam (2Tim 3, 16). Com estes prodígios da virtude, se afasta o que é inimigo e se reconforta o que é da mesma estirpe. Conheçamos, em primeiro lugar, o significado geral destes prodígios; depois talvez nos seja possível adaptar analógicamente este conhecimento a cada um deles em particular. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 8.

Assim é que Moisés tira o povo do EGITO. Do mesmo modo, todo o que segue as pegadas de Moisés livra da tirania egípcia a todos aqueles a quem chega a palavra. Penso que os que seguem a quem os conduz à virtude não devem ser privados da riqueza egípcia, nem carecer dos tesouros estrangeiros, mas devem levar consigo todas as coisas que pertencem a seus adversários por empréstimo. Isto é o que Moisés manda o povo fazer (Ex 12, 35-36). Que ninguém, tomando isto ao pé da letra, entenda o propósito do Legislador como se ele mandasse despojar os ricos e se convertesse assim em condutor da injustiça. Ninguém que considere atentamente as leis que seguem em continuação proibindo a injustiça contra os que estão perto, tanto aos que estão acima como aos que estão abaixo, diria na verdade que o Legislador tivesse ordenado isto, ainda que a alguns pareça ser justo que, com este subterfúgio os israelitas paguem a si mesmos os salários pelos trabalhos prestados aos egípcios. Com efeito, uma ordem assim não estaria livre da acusação de não estar limpa de mentira e engano. De fato, quem toma uma coisa emprestada, e sendo alheia não a devolve a seu dono, comete injustiça por priva-lo dela; e se esta coisa é sua, ao menos é chamado mentiroso por enganar a quem a tinha com a esperança de tirar proveito. Por esta razão, mais apropriada que a interpretação literal, é a interpretação espiritual que exorta aqueles que buscam uma vida livre através da virtude a abastecer-se com a riqueza estrangeira na qual se glorificam os que são alheios à fé. Assim ocorre com a ética, a física, a geometria, a astronomia, a dialética e todas as demais ciências que são cultivadas por quem não pertence à Igreja. O guia da virtude exorta a toma-las de quem, no EGITO, as possui em abundância, e a usa-las quando forem necessárias a seu tempo, quando seja necessário embelezar o divino templo do mistério com as riquezas da inteligência. Na verdade, aqueles que haviam entesourado para si esta riqueza a apresentaram a Moisés quando trabalhava na construção da tenda do testemunho, prestando cada um sua contribuição para a preparação das coisas santas. Podemos ver que isto também ocorre hoje. Muitos apresentam à Igreja de Deus, como um dom, a cultura pagã. Assim fez o grande Basilio que adquiriu formosamente a riqueza egípcia no tempo de sua juventude, a dedicou a Deus, e embelezou com esta riqueza o verdadeiro tabernáculo da Igreja. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 15.

Penso que seja conveniente apressar a marcha do discurso, pois com as poucas coisas que já consideramos facilitamos aos amantes do esforço a reflexão sobre as etapas restantes. Estas etapas podem significar as virtudes; quem avança ordenadamente seguindo a coluna de nuvem, acampa e descansa nelas. Passando por alto as etapas intermediárias, recordarei em meu discurso o prodígio da rocha, cuja natureza dura e sólida se converteu em bebida para os que tinham sede, dissolvendo-se sua dureza na brandura da água (Ex 17, 6 e Sal 77, 15 e 1Co 10, 4). Não há nenhuma dificuldade em adaptar a continuação do relato à consideração espiritual. Aquele que abandonou na água o egípcio morto, e foi adoçado com o lenho, e gozou das fontes apostólicas repousando à sombra das palmeiras, esse também já se fez capaz de receber a Deus. Pois a pedra, como diz o Apóstolo, é Cristo, seca e resistente para os que não crêem; porem se alguém aproxima o bastão da fé, se converte em bebida para os sedentos e flui dentro de quem a recebe. Pois diz: Eu e meu Pai viremos e faremos nele morada (Jo 14, 23). Tampouco devemos deixar de considerar isto: depois de atravessar o mar e ter sido adoçada a água para os caminhantes da virtude; depois daquele delicioso acampamento junto às fontes e às palmeiras, e depois de beber da pedra se ter esgotado totalmente as provisões trazidas do EGITO, caiu do alto sobre eles um alimento simples e ao mesmo tempo variado. De fato, seu aspecto era simples, porem sua qualidade era variada, acomodando-se convenientemente a cada um segundo a natureza de seu desejo (Ex 16, 2-16). Que aprendemos com isto? Aprendemos com que purificação convém que cada um se limpe da vida egípcia e estrangeira até o ponto de esvaziar totalmente o odre da própria alma de todo o alimento impuro preparado pelos egípcios, e receber assim, com alma limpa, em um só, o alimento que vem do alto: um alimento que não se fez brotar para nós de uma semente mediante seu cultivo, senão que é um pão preparado, sem semente e sem cultivo, que, descendo do céu, aparece sobre a terra. Pelo simbolismo da narração sabes perfeitamente qual é este alimento verdadeiro. O pão que desce do céu (Jo 6, 51 e 6, 31) não é uma coisa sem corpo. Pois como poderia uma coisa incorpórea converter-se em alimento para o corpo? O que não é incorpóreo, evidentemente, é corpóreo. Pois bem, o corpo deste pão não foi produzido pela terra, nem pela semente, mas a terra, permanecendo tal qual é, se encontra cheia deste divino alimento que recebem os que têm fome, havendo conhecido previamente o mistério da Virgem através deste prodígio. Este pão, não produzido pelo cultivo da terra, é também a palavra que, graças à diversidade de suas qualidades, adapta sua força às capacidades dos que comem (Sb 15, 21). INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 19.

Porém ele estava tão longe de participar da enfermidade que curou a doença de quem havia adoecido. Não só permaneceu quieto, sem se deixar levar pela vingança contra os que o haviam ferido, mas aplacou a Deus em favor deles, mostrando com sua ação – penso – que quem se encontra bem protegido com o escudo da virtude não é arranhado pelas pontas dos dardos. Ele, com efeito, engrossa a ponta das armas, e a solidez da armadura as faz voltar para trás. A armadura que protege destes dardos é o mesmo Deus, do qual se reveste quem combate pela virtude. Revesti-vos, diz, de nosso Senhor Jesus Cristo (Rm 13, 14 e Ef 6, 13), isto é, da armadura completa, sem fissuras. Moisés, bem protegido por ela, tornou ineficaz o malvado arqueiro. Com efeito, nem ele foi presa de um impulso de vingança contra os que o haviam feito dano, nem depois de eles serem condenados por um juiz irrepreensível, ignorou o que é justo segundo a natureza, mas se fez suplicante diante de Deus em favor dos irmãos. Certamente não haveria de ter feito isso se não tivesse estado atrás de Deus, que lhe havia mostrado suas costas como guia seguro da virtude. As coisas que seguem são parecidas. Posto que o inimigo natural dos homens não encontrou nele campo para o dano, volta a guerra contra os mais fáceis de caçar. E tendo lançado no povo, como um dardo, a paixão da gula, preparou-os para comportar-se ao modo egípcio no que concerne ao paladar, fazendo-os preferir as ansiadas carnes do EGITO àquele alimento celestial. Porem ele, mantendo sua alma no alto, sobrevoava acima de semelhante paixão e estava todo inteiro pendente da herança futura, prometida por Deus aos que saíssem do EGITO espiritual e marchassem para aquela terra na qual mana leite misturado com mel. Por esta razão constituiu exploradores que informassem dos bens daquela terra. Os portadores de boas esperanças são, a meu ver, as considerações nascidas da fé, que fortalecem a esperança com os bens que estão preparados; os que causam a desilusão das melhores esperanças são os pensamentos que provêm do inimigo, os quais debitam a fé na promessa. Sem levar em conta nenhuma palavra dos adversários, Moisés julgou digno de fé quem dava as melhores referências acerca daquela terra. Josué era o chefe da melhor exploração e o que com sua autoridade dava credibilidade às notícias. Ao vê-lo, Moisés teve como indubitáveis as esperanças destes bens futuros, tomando o ramo de uvas, transportado por ele em varas, como sinal das riquezas dali (Nm 13, 24). Evidentemente, ao ouvir que Jesus revela aquela terra e que levanta o ramo de videira no madeiro, entendes que coisa confirmava Moisés nas esperanças. O ramo de uvas pendurado no madeiro que outra coisa designa senão o ramo pendente do madeiro nos últimos dias, cujo sangue se converte em bebida salvadora para os crentes? Moisés nos anunciou isto como símbolo, dizendo: Bebiam vinho, sangue da uva (Dt 32, 14), referindo-se por meio disto à Paixão salvadora. Novamente o caminho através do deserto. O povo, que havia perdido a esperança nos bens da promessa, se vê incomodado pela sede. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 42.