Dom das Línguas

DOM DAS LÍNGUAS

René Guénon
*DOM DAS LÍNGUAS
Jean Canteins
O dom das línguas é a atitude, para um ser humano, de se fazer compreender na língua ou melhor nas línguas dos outros: certos indivíduos são particularmente dotados a este respeito e podem assim se exprimir em uma dezena de línguas, até mais. Excepcional e espetacular que seja — pois tem por vezes algo de proeza mental — o caso manifesta uma agilidade intelectual fora do comum. De maneira mais profunda, o “dom das línguas” é a capacidade daquele “que fala a cada sua própria linguagem neste sentido que se exprime sempre sob uma forma apropriada às maneiras de pensar dos homens aos quais se dirige” (René Guénon). Asui, o fato linguístico desaparece sob o fato sociológico da comunicação humana. Certamente, esta tem recurso a uma língua mas este recurso não é mais exclusivo, a língua não sendo então senão um dos numerosos meios disponíveis. O que importa neste caso é a natureza da comunicação, a adequação permanente pela qual o sujeito “dotado” é capaz, qualquer que seja seu interlocutor, quer dizer quaisquer que sejam seu estado social, moral, religioso, seu nível intelectual e mesmo seu país ou sua época. Trata-se, evidentemente, de uma disposição supra-humana pois implica então em uma espécie de universalização das capacidades que supera as possibilidades e determinações do homem mediano. No artigo de René Guénon (citação acima), ele invoca o caso dos Rosa-Cruz se adaptando perfeitamente por toda parte onde estadiam no curso de sua vida errante em adotando língua, nome, maneiras, etc. dos autóctones. Esta propriedade de identificação valeu àqueles que disto são dotados o epíteto de “Cosmopolita”. Decorre de uma frase de Ibn Arabi citada no artigo que uma tal universalidade não pode se dar sem uma superação de todas as formas particulares. Este conhecimento supraformal ou principial se traduz pela realização da unidade transcendente das línguas, tradições, etc.

Tal acepção do “dom das línguas” supera infinitamente o domínio linguístico. René Guénon escreveu: “O que denominamos aqui as línguas, são todas as formas tradicionais, religiosas e outras, que não são, com efeito, senão adaptações da grande Tradição primordial e universal …” Um tal “Cosmopolita” está propriamente além das “limitações inerentes à condição individual da humanidade ordinária” e é o que lhe permite estar à vontade com quem quer que seja: com um rei como com um mendigo, com um simplório com com um sábio, com uma ancião com com um moderno, etc..

O “dom das línguas” se exerce na diacronia. O ser “dotado” é rei com um rei, chinês com um chinês, medieval com um homem da Idade Média, mas não costumaria ser tudo isso ao mesmo tempo pela boa razão que uma tal eventualidade supera a ocorrência humana: não se tem todos os dias lidas com um rei-chinês-da-Idade-Média! Mesmo neste caso limite permaneceria em um certa diacronia. Para verdadeiramente se colocar na sincronia, seri preciso visualizar a hipótese de um ser que seria não somente rei com um rei, etc., mas, “ao mesmo tempo”, escravo co um escravo, etc. É uma impossibilidade e é isto que confere um caráter milagroso aos três fenômenos relatados nos Atos dos Apóstolos (v. Falar em Línguas).