TRADIÇÃODOGMA

Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
Para entender bem a relação normal entre a religião comum e a sapiência, ou entre a bhakti e o jnana, é preciso saber que, em princípio, existe no homem uma dupla subjetividade, a da “alma” e a do “espírito”. Mas, de duas uma: ou o espírito se restringe à aceitação dos dogmas revelados, de modo que a alma individual seja o único sujeito do caminho em direção a Deus, ou o espírito tem consciência da sua natureza e tende para a finalidade a que está adequado, de maneira que seja ele, e não o “eu”, o sujeito do caminho, sem abolir por isso as necessidades e os direitos da subjetividade comum, precisamente, a da alma sensível e individual.
No âmbito do Cristianismo, a ideia de que a redenção é a priori a obra intemporal do Logos dos princípios, não-humano e não-histórico; a ideia de que ela pode e deve se manifestar de diferentes maneiras em várias épocas e em diversos lugares; a de que o Cristo histórico manifesta esse Logos num determinado mundo providencial, sem que seja necessário ou possível delimitar esse mundo de maneira exata; essa ideia, dizemos, é esotérica em relação ao dogmatismo cristão e seria absurdo exigi-la da teologia.
É por isso que é inútil questionar-se “onde foi aceito” o esoterismo cristão e supor, por exemplo, que se fundamenta na Cabala e na língua hebraica. O esoterismo cristão só pode basear-se no Evangelho e no simbolismo dos dogmas e dos sacramentos — e, por extensão, no “Antigo Testamento” traduzido, principalmente nos Salmos e no Cântico dos Cânticos —, embora possa seguramente anexar “à margem” elementos do esoterismo judeu e helênico. Ele o faz até necessariamente, visto que esses elementos se encontram a seu alcance e correspondem a vocações.
…não se pode perguntar ao Céu se um determinado dogma é verdadeiro, ou se o mestre espiritual tem razão ou não, pois seriam atitudes ou de incredulidade ou de insubordinação, em contradição com o princípio credo ut intelligam, aplicado justamente em caso semelhante.

Abade Stephane: DA NORMA E DAS NORMAS
Toda religião se não se reduz a uma religiosidade vaga e sentimental, comporta necessariamente três elementos:
*verdades a crer (dogmas) que não são conceitos abstratos, mas a expressão mental e verbal de Realidades transcendentes (exemplo: a Imaculada Concepção);
*mandamentos a observar (moral), virtudes a realizar, que não são simples exteriores, mas a expressão ou a tradução de uma Norma interior, da conformidade a “meu” Arquétipo eterno;
*um culto, (uma liturgia), ritos, sacramentos que realizam em mim certas Realidades suprahumanas ou divinas (exemplo: o Batismo e a Eucaristia realizam em mim a Paixão, a Morte e a Ressurreição do Cristo).

Que quer que seja, dogmas, mandamentos e ritos aparecem primeiramente como normas exteriores, mas se não correspondem a uma Norma interior, se reduzem a um formalismo puro ou ao farisaísmo. No entanto, sem as normas exteriores, cai-se na religiosidade vaga, inconsistente, ineficaz. As normas constituem o lado objetivo da Religião, a Norma interior dela é o lado subjetivo, mas elas são o complemento indispensável uma a outra.

No ponto de partida e ao longo da “via purgativa”, os dogmas aparecem como marcas e indicadores sobre o caminho que conduz ao Conhecimento; a discussão, a dúvida, o questionamento são tantos obstáculos que se deve evitar. No estágio da “via iluminativa”, os dogmas ainda só aparecem como “a superfície de exteriores prateados” (São João da Cruz, Cântico Espiritual), mas no nível da “via unitiva” e do casamento espiritual, o mesmo autor declara: “Imediatamente, teremos acesso às sublimes cavernas da Pedra (o Cristo) que permanecem bem escondidas”. Trata-se aqui da “mística nupcial”; no entanto, a “mística da essência” (Dionísio o Areopagita, Mestre Eckhart) e a Treva mística portanto não estão excluídas, mas superam as perspectiva do Cântico, posto que as “cavernas permanecem bem escondidas”. O que seja, nesta ascensão mística, trata-se sempre dos dogmas segundo sua função de normas exteriores até aquelas de Norma interior (as cavernas da Pedra), a “superfície dos exteriores prateados” sendo uma espécie de limite, de fronteira entre as duas faces “externa” e “interna” dos dogmas, ou se se quer, entre a Luz inteligível e a “Treva mais que luminosa” do Silêncio (Dionísio o Areopagita).

Essas considerações nos parecem essenciais para compreender que a Norma interior, em sua realidade profunda, não se situa ao nível psicológico; sem dúvida ela se traduz ao nível da psyche por uma atitude que se pode chamar “interior”, exatamente como ela se exprime ao nível do “corpo” pelas normas exteriores, notadamente nas obras e ritos. Mas precisamente, o que dissemos sobre o dogma, cuja “face exterior” se situa ao nível do mental (que aparece como interior em relação ao corporal) e cuja “face interior” é consequentemente além do mental, permite compreender que a verdadeira interioridade se encontra, nos dois casos, além da psyche, logo ao nível do nous.

Tudo o que precede tende a demonstrar que a Norma interior não é puramente subjetiva, não somente porque ela tem por complemento indispensável as normas exteriores objetivas, mas porque no topo da União mística, elas formam como as duas faces de uma mesma Realidade, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva, figuradas mo Cântico espiritual (estrofes 11 e 36) pela “superfície dos exteriores prateados” e pelas “sublimes cavernas da Pedra”.

Segue-se que na perspectiva cristã a verdadeira Norma interior é a Pedra, quer dizer o Cristo. Esta perspectiva se situa portanto essencialmente ao nível ontológico, e o Mistério da Encarnação, da União hipostática das duas naturezas, permanece o Centro da espiritualidade cristã, o Protótipo, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, da União mística, pois como diz Mestre Eckhart, o Pai só tem uma Vontade, engendrar o Filho Único, o Primogênito, o Filho unigênito: exteriormente a este Mediador, não há espiritualidade cristã.


NÃO-DUALIDADE
Wei Wu Wei: BUDAS PARA QUEIMAR