Docetismo

Antonio Orbe: O DOCETISMO GNÓSTICO

Simone Pétrement: A SEPARATE GOD: THE CHRISTIAN ORIGINS OF GNOSTICISM

Se denomina docetista o herege que a fim de afirmar a divindade de Jesus Cristo, pensa que deve negar sua humanidade. É dito que estes hereges pensavam que Cristo era homem somente em aparência, mas na realidade era um ser puramente espiritual e divino vestido de aparência humana, como os deuses da mitologia grega que tomavam a aparência humana a fim de visitar a terra. Como então poderia Deus ter sofrido e morrido? Ele “parece” sofrer e morrer, mas isto foi para ensinar a todos a verdade.

É fato que a afirmação da divindade de Jesus Cristo ao mesmo tempo que sua humanidade impôs problemas difíceis e até insolúveis. Os teólogos cristãos talvez não tenham sido bem sucedidos em explicar esta doutrina de forma a livrá-la de todas as contradições que podem surgir; e por isto mesmo a maioria denomina a Encarnação um mistério cristão. Mas a heresia doceta, de todas as heresias, foi a que correu o maior risco de esquecer o ensinamento fundamental da Cristandade. Me parece que o que Cristo ensinou acima de tudo foi que sofrimento e morte não são sinais de condenação divina; que uma pessoa poderia ser Deus ele mesmo. Mas para ensinar isto por seu exemplo era necessário para ele ter verdadeiramente sofrido e verdadeiramente morrido. Se a Paixão tivesse sido somente uma aparência a fim de ensinar a verdade, por esta mesma razão não teria ensinado nada.

É dito que a maioria dos gnósticos eram docetistas. as convém olhar de perto. Tinham certamente razões para se inclinar nesta direção. Primeiro [orque estavam conectados com um ramo do cristianismo que afirmava a divindade original de Jesus Cristo, o ramo de Paulo Apóstolo e de João Evangelista. O outro ramo, dos judeus-cristão, era de cristãos que, embora venerando Cristo, pensavam que ele era apenas um homem. O desejo de acentuar a divindade de Jesus Cristo tanto quanto possível é a raiz do Docetismo.

Também pensavam com João Evangelista e talvez com Paulo Apóstolo, que a salvação era aportada pela lição da cruz. Há um perigo nesta concepção de salvação que justamente o do Docetismo. Na medida que a cruz é uma lição, “uma imagem que salva”, pode-se ficar tentado a concluir que sua virtude está inteiramente na imagem e que não é necessário que a crucificação tenha tido lugar. Esta conclusão seria ilegítima, pois se o evento não era real, a imagem ela mesma não teria qualquer sentido. Insistindo na imagem, no mito, corre-se o risco de esquecer a história; e então a imagem ela mesma desaparece. Finalmente, a reflexão sobre o evento que foi a cruz leva a distinção nele, de uma aparência e de uma realidade. Pois a cruz, em aparência a derrota e a morte de Cristo, era, de acordo com Paulo Apóstolo e João Evangelista a vitória de Cristo sobre os poderes, porque demonstrava sua ignorância e mediocridade. Pode-se então falar de uma “aparência da cruz”, e uma “diferente realidade”, oculta por trás desta aparência.

Assim é natural que os gnósticos fiquem tentados pelo Docetismo. Mas há muitas contradições entre eles neste assunto, assim como no cristianismo em geral. Um certo grau de Docetismo existiu talvez no cristianismo nascente, mesmo em não herético, e um certo grau de crença na humanidade de Cristo nunca desapareceu, mesmo nas heresias que podem ser consideradas verdadeiramente docetas. Conclui-se que o Docetismo é algo bem mais complexo que se imagina.