Marie Madeleine Davy — O DESERTO INTERIOR
Marie Madeleine Davy — HACIA UN EREMITISMO INTERIORIZADO

A Igreja, por prudência e para melhor manter os solitários sob sua jurisdição, aconselhava os futuros eremitas a que, antes de irem para a solidão do deserto, passassem pela vida comunitária monástica. Os cenobitas do tipo Pacômio acatavam essa recomendação. Dos desertos do baixo Egito do séc. IV lembramos principalmente Ceteia, Nítria e as Celas, onde milhares de monges viviam um eremitismo mitigado.

Essa fuga do mundo consiste, primeiramente, num distanciamento do mundo exterior; em seguida, numa recusa do mundo interior. Eis um exemplo: Arsênio, alto funcionário do Palácio, fez esta prece: “Senhor, conduze-me para a via da salvação”. Ao terminar, ouviu estas palavras: “Arsênio, foge dos homens e serás salvo”. Ele obedeceu e se retirou para a solidão. Mais tarde repetiu a mesma prece e ouviu como resposta: “Arsênio, foge, cala-te, guarda a quietude; essas coisas são as raízes da impecabilidade”. É necessário, pois, fugir sempre. Se a fuga é interiorizada, fugir não significa romper, mas viver em outro diapasão, recusando o ter, os desejos, as preocupações ligadas aos acontecimentos. Fugir… pode significar não lançar âncora na passagem, no tempo, no visível.

Segundo Eusébio de Cesareia, os solitários eram raros. Áquila os chama “unigênitos”, a fim de assemelhá-los ao Filho Unigênito de Deus1. Eles guardavam a continência, renunciavam à vida conjugai ou escolhiam viver sozinhos, depois de terem sido casados. Eram chamados “filhos do pacto” e “se aplicavam ao serviço de Deus com pureza resplandescente”Id., ibid., p. 49.. A sua solidão era tal que eles não saberiam viver na companhia de outros, mesmo que se tratasse de “filhos do pacto”. Nenhuma presença lhes convinha, a fim de que sua solidão não fosse perturbada. Aquele que quer conversar com Deus deve estar sozinho como Moisés, que pediu a Josué, seu servo, que se afastasse para ele conversar livremente com o EternoCf. Fílon, De virtutibus 55..

Temos aqui um fato novo, desconhecido dos semitas, com exceção das seitas que se tinham formado à margem do judaísmo. Notemos, a esse respeito, que grego monachoi, desempenharam, daí por diante, papel importante no cristianismo, até o fim do século XII.

Às vezes se faz alusão ao deserto profundo, isto é, mais afastado ainda, dos sedentários. Assim o aba Moisés se dirigiu ao aba Macário de Ceteia, falando-lhe sobre sua necessidade de quietude, que estava sendo perturbada pelas visitas frequentes de seus irmãos. A resposta de Macário, cheia de doçura, foi: “Vejo que tens um natural terno e que não és capaz de repelir um irmão. Se queres a quietude, vai para o deserto profundo, para Petra”. E o texto nos informa que ele foi e saboreou a paz (Apopht. Alph. Macário 22, P. G. 65, 272 B).

Aquele que conheceu os benefícios do deserto sente imensa nostalgia dele e encontra dificuldade em reinserir-se na vida em sociedade, vida que lhe parece pesada e dividida. Tal é o parecer do velho eremita Sisoés, que, por motivo de idade, abandonara sua solidão. O aba Amon, que foi visitá-lo, encontrou-o triste e lhe perguntou o motivo de sua aflição. O ancião olhou atentamente para o interlocutor e disse: “Não me bastava, no deserto, a liberdade do meu pensamento?” (Ibid., 26). Assim o deserto assegura uma perfeita liberdade, a qual permite aplicar-se totalmente ao Absoluto, sem possibilidade de distração.

Não obstante, em ocasiões de carestia, alguns monges dados à anacorese deixavam às vezes o deserto para irem cuidar dos doentes nas cidades e para distribuírem alimentos. Eles sabiam que pouco importavam as obras com as quais se ocupavam. A solidão não deve ser procurada por si mesma, ela não é um fim. Normalmente ela proporciona maior liberdade em relação à atenção dada ao essencial. Quando a disponibilidade interior se torna um estado, tudo se transfigura, e os trabalhos mais diferentes, manuais ou intelectuais, já não têm nenhuma importância. A primazia dada a esta ou àquela ocupação mostra somente que o homem ainda não está totalmente fixado no interior. Mantendo-se em lugar silencioso, entra o homem num estado sutil, ignorado dos que não vivem totalmente na solidão? É possível, mas não é certo. Quando se lê a vida de Teresa de Ávila ou de João da Cruz, nota-se a dureza de certos religiosos. Também a vida de Teresa de Lisieux mostra a falta do amor mais elementar em algumas de suas companheiras. Quem de nós não conheceu vítimas “assassinadas” por confrades devotos? Não é necessário aceitar, até certo ponto, a mediocridade própria e dos outros, sem por isso entristecer-se demasiadamente? O deserto é uma escola: também os mosteiros e a própria vida ensinam. Ser bom ou mau aluno, depende de cada um.

Não conhecemos bem os verdadeiros solitários, do passado ou do presente. A despeito das reservas que fizemos a propósito de religiosas, e não de monges eremitas, é impossível negar o esplendor da vida na solidão. Essa vida desemboca na luz. Qual luz?

Quando o eremita participa das energias divinas, ele se torna fogo e chama, tal como o aba Arsênio; este, visto através da janela de sua cela, parecia transfigurado. Quando Pisêncio rezava, a sua cela brilhava de uma claridade deslumbrante. Poderíamos multiplicar os exemplos. Basta sabermos que o homem se torna luminoso na medida de sua participação na divindade. “Aproximando-se da Luz, a alma se torna Luz”, escreve Grego rio de Nissa. O deserto é um foco de luz, e o ensinamento que ele proporciona ao eremita tem caráter incandescente.

Simeão, o novo Teólogo, quis saber como semelhante luz se produzia. Eis a resposta que lhe foi dada:

Se estiveres unido à Luz,
ela mesma te ensinará todas as coisas;
ela te revelará tudo.
O que importa aprender,
importa-o, não por palavras,
mas de outra maneiraHymnes, texto e trad. francesa de Johannes Koder e Louis Neyrand, Ed. du Cerf, S. C. 174, PP. 359, 381-383..

Na interioridade secreta, só a luz divina pode penetrar. E o deserto é uma terra solar. (Excertos do livro “O Deserto Interior”)

NOTAS


  1. Cf. Antoine Guillaumont, Les Origines du monachisme chrétien, Abbaye de Bellefontaine, n? 30, 1979, p. 47.