ARCHE OU ARKHE = PRINCÍPIO
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. (Jo 1,1-2)
Peters
arché: começo, ponto de partida, princípio, suprema substância subjacente (Urstoff), princípio supremo indemonstrável
1. A busca da «substância» básica de que são feitas todas as coisas é a mais antiga da filosofia grega e é acompanhada pelo problema com ela relacionado de qual é o processo que por sua vez faz surgir das coisas primárias as coisas secundárias. Ou, para utilizar terminologia estritamente aristotélica: o que é a arche (ou archai) e qual é a gênesis dos syntheta?
2. A procura pré-socrática de uma arche no sentido de uma causa material (Aristóteles colocara a investigação dentro das suas próprias categorias de causalidade; ver endoxon para o método implicado) é descrita por Aristóteles na Metafísica 983-985b, e a palavra arche deve ter sido usada pela primeira vez neste sentido técnico por Anaximandro (Diels, 12A9). Os primeiros candidatos a elementos constitutivos das coisas foram substâncias naturais individuais, água ou humidade (Tales; ver Metafísica 983b) e o ar (ver aer), mas com a sugestão de Anaximandro de que a arche era algo indeterminado (apeiron) fora dado um enorme passo no sentido da abstração afastando-se do puramente sensorial. Abriu a possibilidade de a arche ser algo mais básico do que aquilo que podia ser percepcionado pelos sentidos, embora o apeiron fosse, neste estádio, inequivocamente material. Assim Anaximandro iniciou a linha de investigação que levou ao Uno simples e esférico de Parmênides (ver on, hen) com a correlativa distinção entre o saber verdadeiro (episteme) e a opinião (doxa), e às archai geométricas e matemáticas dos pitagóricos (ver arithmos, monas) e aos atonia de Leucipo e Demócrito.
3. Aquilo que se podia chamar a tradição sensualista continuou a procurar as entidades supremas e irredutíveis nos corpos percepcionados pelos sentidos até que Emipédocles os fixou em quatro, os stoicheia terra, ar, fogo e água, mas poucos mais, além de Empédocles, aceitam estes como verdadeiras archai; eles são antes estádios entre as archai ainda mais remotas e as complexidades superiores dos corpos compósitos (syntheta).
4. A procura das archai toma então um novo rumo. Tanto Parmênides como Empédocles tinham sido categóricos na negação da mudança, o primeiro atribuindo-a a uma ilusão dos sentidos, o segundo sustentando a eternidade dos stoicheia. Mas isso era uma limitação que a breve trecho foi superada; Anaxágoras e os atomistas, cada qual à sua maneira, reafirmam a gênesis e assim, também, a possibilidade de que os stoicheia de Empédocles se transformem uns nos outros.
5. Uma nova análise da gênesis feita por Platão e Aristóteles rejeita as velhas noções da mudança como mistura ou conglomeração ou associação e concentra-se em vez disso — o exemplo tinha sido dado por Anaxágoras (ver frgs. 4, 12) — na velha noção das «forças» contrárias (ver dynamis, enantion, pathos). Isto está bem dentro da tradição sensualista visto que estas forças podem ser distinguidas pelos sentidos (reduzidas por Aristóteles, De gen. et corr. II, 329b, ao sentido do tacto, haphe); mas há também uma inclinação na direcção do apeiron com o isolamento da outra grande arche da mudança, o substrato indefinido e imperceptível (ver hypokeimenon, hypodoche, hyle).
6. Esta é, pois, a solução eventual (entre os «geneticistas»; as versões atomista e pitagórica continuam a florescer) do problema das archai dos corpos físicos: forças opostas, algumas das quais podem atuar (ver poiein) enquanto que outras podem ser actuadas (ver paschein), um substrato material em que ocorre a mudança e, eventualmente, um iniciador da mudança (ver nous, kinoun).
7. Um problema relacionado é o que é posto pela demonstração (apodeixis) recuando às suas archai supremas, as primeiras premissas do conhecimento ou os princípios supremos em que assenta um silogismo, Para os platônicos para quem o verdadeiro conhecimento é fundamentalmente inato baseado como é numa visão pré-natal dos eide (ver anamnesis, palingenesia), o problema é de pouca importância, excepto talvez na teoria posterior da dialética onde toda a aproximação da anamnesis ao conhecimento tende a recuar à origem (ver dialektike).
Quanto ao sensualista que funda todo o conhecimento na percepção sensorial, ele é forçado, pela validação das premissas do conhecimento noético, a identificar a aisthesis e a noesis (assim os atomistas, embora Epicuro se afaste um pouco com a sua noção de «auto-evidência»; ver enargeia), ou a ligar ambas, como fez Aristóteles, com o conceito de intuição (ver epagoge, nous).
Para outra orientação do problema das archai dos corpos físicos, ver syntheton; para o processo pelo qual as archai se tornam entidades mais complexas, ver gênesis; para a existência de duas archai eticamente opostas, ver kakon. (FEPeters)
Les Notions philosophiques
Ao mesmo tempo princípio e ordem, significações que se distanciam entre si no discurso histórico-político (ponto de partida do relato do historiador ou dos eventos relatados; magistratura exercida na cidade), mas não na investigação sobre a natureza, nem a filosofia: então Tucídides já distingue a arkhe da guerra do Peloponésio e sua causa, Aristóteles define a filosofia como “conhecimento das primeiras arkhai (primeiros princípios) e causas” (Met A2, 982 b9). Ele engloba assim na história da filosofia as investigações pré-socráticas sobre os elementos. Criticando seus predecessores de só terem tratado da causa material, ele estende a noção de arkhe além daquela de elemento: mais que um constituinte material, acessível ou não à experiência, a arkhe é o princípio explicativo do devir. As quatro causas da teoria aristotélica são assim quatro arkhai. A arkhe adquire um estatuto propriamente lógico, onde a questão dos princípios da realidade vem a se confundir com aquela dos princípios do raciocínio sobre a realidade. Aristóteles nomeia assim arkhai os axiomas donde parte e que respeita necessariamente toda demonstração, o mais fundamental sendo o princípio de não-contradição, ao mesmo tempo regra do discurso sensato e determinação dos entes (Met. Δ, 3 e 4).
René Guénon
O GRÃO DE MOSTARDA
Para melhor compreender essa relação entre o germe do coração e Semente de Mostarda, é preciso nos reportarmos em primeiro lugar à doutrina hindu, que dá ao coração, enquanto centro do ser, o nome de “cidade divina” (Brahma-Pura) e, o que é notável, aplica à “cidade divina” expressões idênticas a algumas empregadas no Apocalipse para descrever a “Jerusalém Celeste”.1 O Princípio divino, na medida em que reside no centro do ser, é muitas vezes designado simbolicamente como o “éter no coração”, elemento primordial do qual procedem todos os demais que são naturalmente tomados para representar o Princípio. O éter (akasha) é a mesma coisa que o avir hebraico, de cujo mistério brota a luz (aor) que realiza a extensão pela sua irradiação no exterior,2 “fazendo do vazio (thohú) alguma coisa e do que não era o que é”,3 enquanto que, por uma concentração correlativa a essa expressão luminosa, resta o iod no interior do coração, isto é, “o ponto oculto que se tornou manifesto”, um em três e três em um.4 Mas, no momento, deixaremos de lado esse ponto de vista cosmogônico, para nos dedicarmos de preferência ao ponto de vista que diz respeito a um ser em particular, como é o caso do ser humano, tomando o cuidado de notar que existe entre esses dois pontos de vista, macrocósmico e microcósmico, uma correspondência analógica em virtude da qual é sempre possível a transposição de um para o outro.
- Cf. L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, cap. III.[↩]
- Cf. Le Règne de la quantité et les signes des temps, cap. III.[↩]
- É o Fiat Lux (Yehi Aor) do Gênesis, primeira afirmação do Verbo Divino na obra da criação; vibração inicial que abre o caminho para o desenvolvimento das possibilidades contidas potencialmente, em estado “informe e vazio” (thohû va-bohû), no caos original (cf. Aperçus sur l’Initiation, cap. XLVI).[↩]
- Cf. Le Symbolisme de la Croix, cap. IV.[↩]