Layton Escritura Gnóstica Clássica

Bentley Layton — As Escrituras Gnósticas
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I A escritura gnóstica clássica
Introdução Histórica
Escritura Gnóstica Clássica
O termo “gnóstico” tem dois significados. Um amplo denota todos os movimentos religiosos representados neste livro, e ainda outros mais. A categoria elusiva (“gnosticismo”) que corresponde a este amplo significado sem foi difícil de definir.

O outro significado é reduzido e mais estritamente histórico: é o nome auto-designado a uma uma seita cristã, os gnostikoi, “gnósticos”.

A data da seita gnóstica
Estavam ativos desde o meio século II AD em diante. O grego era sua língua básica, assim como era da cristandade não gnóstica e do judaísmo helenístico deste período. A referência mais antiga que se tem deles é a de Irineu de Lião no ano 180 AD (I 29.1). Segundo Irineu de Lião os gnósticos influenciaram Valentino, provavelmente antes de sua chegada à Roma (136-140 AD). Acredita-se que esta seita, por utilizar material mítico de Platão, corrente no tempo de Jesus, combinado com o livro do Gênesis, tenha surgido entre o ano 30 AC e 45 AD. Provavelmente contemporânea de Fílon, mas ainda não se tem certeza.

A seita floresceu desde então sendo exterminada na institucionalização do cristianismo como religião do Império Romano.

O nome “gnóstico
A auto-designação da seita, “gnostikos”, deve ter soado estranho aos que falavam a língua grega no século II. O termo vem desde Platão, como termo técnico com acepções filosóficas, denotando “capaz de alcançar conhecimento”. Geralmente uma pessoa não era chamada de “gnóstica”, mas sim disciplinas de estudo, faculdades humanas, capacidades e algo assim. O que indica quão estranho deve ter soado um grupo de pessoas se auto-designando “gnósticos”.

O significado de “gnosis”
As escrituras gnósticas descrevem a salvação do indivíduo pela palavra grega gnosis, e o auto-designado nome da seita gnóstica refere-se a sua habilidade em alcançar a gnosis. O termo era usado ordinariamente na língua grega, com o sentido de “conhecimento” ou “ato de conhecer”, mas segundo duas espécies de conhecimento: um conhecimento proposicional, saber que algo assim é (Atenas é na Grécia); outro sentido seria familiaridade pessoal com um objeto, frequentemente uma pessoa, em grego gignoskein. Os antigos “gnósticos” descreviam a salvação como esta gnosis, esta familiaridade com deus.

Características sectárias na literatura gnóstica
A informação social não se tem, pois a literatura gnóstica consiste de “pseudoepígrafes”, ou seja, obras atribuídas à autoridade de uma figura respeitada do passado, como Adão, Set, ou João Evangelista. No mais se tem os breves registros e descrições tendenciosas dos oponentes cristãos.

Entretanto evidencia-se a coesividade do grupo gnóstico, primeiro pelo mito complexo e distintivo das origens, permeando os escritos. Segundo, este mito expressa um forte sentido de identidade de grupo, sustentado por genealogias e análises psicológicas da humanidade. Terceiro, o uso de jargão especial ou linguagem própria não encontrada nos demais ramos do cristianismo antigo. Quarto, referências a rituais de iniciação como o batismo, associados a sacramentos como os “cinco selos” e seu protótipo, cujo uso não é descrito.

O mito gnóstico
Criação de poetas teólogos desdobra-se em quatro atos:
*Ato I — a expansão de um primeiro princípio solitário (deus) em um universo não físico (espiritual) pleno
*Ato II — criação do universo material, incluindo estrelas, planetas, terra e inferno.
*Ato III — criação de Adão, Eva e seus filhos
*Ato IV — história subsequente da raça humana

Sob este drama desdobra-se uma trama de roubo, perda e recuperação de uma parte do divino, também expresso em quatro atos:
*Ato I — expansão do poder divino (“a paternidade da totalidade”) para preencher o universo espiritual
*Ato II — roubo e perda de algum deste poder nas mãos de ser não espiritual (“Ialdabaoth”)
*Ato III — logro do ladrão, levando a transferir o poder para uma parte da humanidade (os “gnósticos”)
*Ato IV — recuperação gradual pelo divino do poder perdido conforme as almas gnósticas são convocadas por um salvador e retornam a deus

Da perspectiva do divino, a evolução desta trama implica (1) plenitude ou “totalidade”, (2) falta (do poder roubado), e (3) eventual preenchimento da falta.

Não se tem um relato completo do mito gnóstico que tenha sobrevivido embora se reflita no Livro Secreto de acordo com João e no Evangelho dos Egípcios, e no relato de Irineu de Lião sobre Satorninos. As formas sobreviventes do mito apresentam grande variação em detalhe e estrutura.

A linguagem interna gnóstica
Qualquer leitor se espanta com os muitos nomes e frases obscuros que ocorrem no mito gnóstico. Em parte isto não se justifica pela simples distância que estamos deste passado, mas pelo caráter esotérico da vida gnóstica de um seita fechada e perseguida, e que se julga superior ao resto da humanidade.

Em seus relatos os gnósticos não se referem a si mesmos ou seus ancestrais ou seus protótipos espirituais como “gnósticos”. Ao invés, se consideram como “os brotos (sementes, posteridade, raça) de Set” ou “a geração da luz”, a “raça perfeita”, “a raça indomável”, ou mais obscuramente “Aquelas Pessoas”.

Sua verdadeira morada, o universo espiritual, é a “luz”, a “plenitude”, sua “raiz”. É populada por “eões”, também conhecidos como “eternos”, “grandes eternos”, “grandes eões eternos”, “seres incorruptíveis”, ou “imortais”. Todo o sistema de eões que são inferiores ao segundo princípio é a “totalidade”, ou mias obscuramente, “todos estes”, ou seja , “todos estes seres espirituais”. Este sistema é uma hierarquia gradativa de seres, cada nível é uma “sombra” ou imagem do acima.

Entidades no universo espiritual são identificadas com epítetos “eterno”, “grande”, “vivente”, “luminoso”, “macho”, “masculino”, ou mais obscuramente pelas palavras: “Aquele” (“Aqueles” e “outros”. O epiteto “outro” (“estrangeiro”, “alienado”) é baseado no Gen 4,25 em grego, descrevendo o nascimento de Set. “Deus levantou para mim alguma ‘outra’ semente”, enquanto o mistificador “Aquele” já teria sido usado em círculos esotéricos (pitagóricos) da filosofia grega.

Não há terminologia fixa para descrever a humanidade não-gnóstica, mas os inimigos celestiais demoníacos dos gnósticos são chamados pelos nomes tradicionais — “regentes”, “poderes”, “autoridades”, “brigadas” — em grande parte, incidentalmente, são também conhecidos pelas cartas no NT escritas por Paulo Apostolo ou a ele atribuídas. O universo material é a “escuridão”, assim como o universo espiritual é a “luz”. Na linguagem de um texto gnóstico os dois domínios estão divididos um do outro por um “véu”.

A descrição gnóstica dos componentes do ser humano é simples e depende de clichés platônicos. O corpo é um “grilhão”, “cativeiro”, “amarra” ou “prisão” da alma. A verdadeira pessoa é a alma, e o corpo é meramente uma “vestimenta” que devemos “pôr” e “vestir”; comparado com a vitalidade da alma, o corpo é um “cadáver”. O reino da matéria, ao qual o corpo pertence e ao qual retorna, é “sombras”, uma “caverna”, um reino de “sono”. É “fêmea” e “feminilidade” — pois de acordo com o cliché filosófico, a forma configuradora é chamada em grego “macho”, enquanto a matéria constituinte passiva de “fêmea”. O que distingue o ser humano salvo do não salvo é a presença e atividade do bom espírito (“espírito santo”, “espírito de vida”) e a renúncia da pessoa salva das ilusões mantidas pelos “espíritos falsificadores” dos regentes. A marca desta renúncia é uma vida de ascetismo e contemplação. A capacidade para gnosis e a salvação entre gnósticos é uma função de “poder” herdado ou “glória” transmitida pela “raça” gnóstica — nada mais que um fragmento do “poder” que o artesão Ialdabaoth roubou de sua mãe, Sabedoria, no momento de seu nascimento. Não é por acidente que “poder” e “glória” são também descrições de Barbelo, o segundo princípio, pois eles são epítetos que caracterizam todo universo espiritual tanto quanto pode ser conhecido ou descrito.

Nomes de caracteres no mito gnóstico
Aparte desta rede de linguagem sectária, a escritura gnóstica comporta nomes obscuros de caracteres míticos — Barbelo, Geradamas ou Adamas, “luminárias”, Ialdabaoth, etc. A escrita destes nomes varia nos antigos manuscritos e de lugar para lugar.

O batismo gnóstico
Como os demais cristãos os gnósticos reverenciam o batismo como rito de iniciação, implicando em renúncia, instrução, aprendizado e iniciação em uma nova “estirpe” e um novo estado de vida. A recepção do batismo gnóstico estava intimamente associada à recepção da gnosis, e se acreditava que habilitava o gnóstico a superar a morte.

Vários estágios da cerimônia batismal gnóstica são enumerados no Primeiro Pensamento em Três Formas. O batizado é também dito no Evangelho dos Egípcios adota o nome de Jesus, e de acordo com o Apócrifo de João a gnosis é recebida quando o salvador sela o candidato com a “luz da água dos cinco selos”. Estes cinco selos são mencionados em muitas passagens da escritura gnóstica como tendo uma conexão muito íntima com a gnosis, mas em que consistem nunca é claramente explicado. O Evangelho dos Egípcios conclui que um longa, estática invocação batismal presumivelmente falada por um recipiente do batismo gnóstico.

Por vezes a linguagem poética sobre o batismo, na escritura gnóstica, faz pensar que a cerimônia se dá fora da terra em um reino espiritual. Por exemplo, vário eões do mito gnóstico participam na cerimônia, a própria água batismal é miticamente personificada, assim como os “cinco selos”. Tudo leva a questionarmos se este batismo tem lugar fisicamente?

A cronologia da escritura gnóstica
Na ausência de informação histórica sobre os autores das várias obras de escritura gnóstica e de qualquer menção a fatos históricos nos textos, nada de preciso se pode dizer da data de composição dos mesmos.

As datas mas tardias estariam entre os séculos I e II AD, sendo outros trabalhos até do século IV.

A escritura gnóstica sem os traços cristãos distintivos
Aspectos cristãos aparecem na escritura gnóstica clássica e nos heresiólogos, caracterizando o movimento dentro do cristianismo. Entretanto algumas obras gnósticas estão permeadas de motivos platônicos que levam a crer na existência deste modelo gnóstico independentemente e até anteriormente à tradição cristã.