(MDM1996)
A presente obra mostra a importância do encontro de Kant com o pensamento de Emmanuel Swedenborg, sábio sueco que se tornou visionário, e cuja obra maior, os Arcana coelestia, publicada em diversos volumes entre 1749 e 1756, Kant conhecia de perto. Com isso não queremos apenas lembrar que, em 1766, Kant consagrou uma obra de juventude, pré-crítica, a Swedenborg, os Sonhos de um vidente explicados por sonhos da metafísica 1, na qual afirma que a diferença entre a metafísica leibniziana e um delírio visionário não pode ser racionalmente estabelecida, e que a vida moral, com o fundamento que encontra na comunidade das vontades racionais, oferece-nos um exemplo empírico efetivo de uma comunidade de espíritos, no sentido ocultista do termo. Pretendemos também mostrar que o debate de Kant com Swedenborg, isto é, com o exemplo de um pensamento louco, é um dos temas essenciais que organizam a Crítica da razão pura. O prefácio à primeira edição dessa obra retoma, com efeito, textualmente, as críticas que em 1766 se dirigiam indistintamente ao delírio e às construções idealistas, voltando-as, no entanto apenas contra a metafísica. É na relação com essa recusa simultânea do dogmatismo e da extravagância que a própria ideia de redefinir a filosofia como ciência dos limites da razão humana, ou seja, como filosofia crítica, adquire sentido. Não foi portanto Hume quem despertou Kant de seu sonho dogmático. Aliás, a teoria crítica da modalidade é duplamente oriunda do debate de Kant com o ocultismo. De um lado, a categoria do possível tem a função de reunir Swedenborg e Leibniz — estes, com efeito, invocam conceitos sem objeto que, sem serem impossíveis no sentido da contradição, não podem ser contados entre os possíveis —; de outro, a categoria do real afasta os dois autores: ao fazer da percepção um critério necessário de toda representação que pretenda apreender um objeto real, Kant exclui o númeno leibniziano, mas, para poder excluir as visões de Swedenborg das experiências que dão acesso à realidade, logo precisa acrescentar que só podem ser ditas realidades as intuições e percepções que se encadeiem segundo os princípios a priori do entendimento puro. Aí, mais uma vez, ainda que não se pronuncie o nome de Swedenborg, Kant retoma com todas as letras a descrição do pensamento deste último, caracterizado por três teses: a crença nos espíritos enquanto participantes de uma substância que estaria presente de modo permanente no espaço, sem contudo o preencher; a posição de uma faculdade particular a nosso espírito de intuir de antemão o futuro e não apenas o concluir, isto é, a crença nas profecias e predições, das quais se distinguem as previsões científicas; por fim, a crença na transmissão de pensamento, ou seja, em um poder de nosso espírito de estar em comunidade de pensamento com outros homens, por mais distantes que possam estar. Até este ponto, a reinterpretação do pensamento kantiano a que tais observações incitam se mantém circunscrita. Entretanto, pareceu-nos preciso ir mais longe: o próprio plano e a organização da primeira Crítica, com a constituição de objetos reais para o conhecimento, devem ser compreendidos como opostos aos pensamentos delirantes sobre a ideia de mundo. O fio condutor do pensamento de Kant, aí, é lógico: ele opõe a negação determinante, isto é, o conflito real [realer Widerstreit], que caracteriza a estrutura dos objetos existentes tais como podem ser conhecidos pelo entendimento, ao conflito dialético [dialektischer Widerstreit], que alimenta os combates sem fim da razão consigo mesma, tomando erroneamente por conhecimentos seus raciocínios sobre o mundo. Se é verdade que a possibilidade de o entendimento apreender a existência de objetos significa conjurar o risco de um pensamento que nada apreende de real, e que é como uma doença da razão cuja lógica convém desconstruir, daí resulta que a teoria transcendental do objeto, na Crítica da razão pura, não deve ser compreendida de modo isolado, que a “Analítica transcendental” é inseparável da “Dialética transcendental”. A lógica da negação, elaborada pelo filósofo ao mesmo tempo em que refletia sobre a loucura, é assim o ponto de articulação entre seus interesses antropológicos e a teoria do conhecimento.
- Respeitando a intenção de literalidade da retradução da autora, optamos por “vidente de espíritos”, bem próximo a Geistersehers. Ouça-se contudo, em “vidente”, aquele que vê (que não é cego), o que permite então sem redundância a complementação “de espíritos”. Note-se contudo que se há inegável ambiguidade na palavra “vidente”, que também remete ao campo místico, em voyeur, além da literalidade buscada, a presença da psicanálise parece óbvia. (N. da T.)[↩]