João Damasceno — ÍCONES
Excertos de Ewa Kuryluk, “SANTA VERÔNICA E O SUDÁRIO”
João de Damasco (morto antes de 754), um dos mais eloquentes teólogos de seu tempo, estava ativamente envolvido na luta contra os iconoclastas. Em seus últimos anos ele viajou através da Síria pregando contra eles e arriscou sua vida ao ir a Constantinopla. Por volta de 730, enquanto vivia no mo-nastério de S. Sabbas na Palestina, que então era governada pelo Califa, João escreveu vários tratados em defesa das imagens.43 A sagacidade desses textos notáveis foi fortalecida pela extensão da destruição que acontecia em Bizâncio sob o iconoclasta imperador Leão III. Encarando a veneração de ícones como uma consequência inevitável da encarnação, João tratou o mandylion edesseno como símbolo central da humanidade de Cristo e uma prova essencial da anuência de Deus aos ícones.
A representação material seguiu-se à presença de Jesus na Terra. Desde que a divindade de Cristo foi vestida de carne, o invisível tornou-se visível. Era “impossível fazer-se uma imagem do Deus invisível, incomensurável e ilimitado” (Oratio 1.7) do Antigo Testamento. Mas Cristo “tornou-se visível para nossa salvação, partilhando da carne e do sangue” (1.4), de modo que
você poderá traçar Sua imagem e mostrá-la a qualquer um que deseje vê-la. Sua maravilhosa condescendência, Seu nascimento da Virgem, Seu batismo no Jordão, Sua transfiguração no monte Tabor, Seus sofrimentos que nos libertaram da paixão, Sua morte, Seus milagres que são sinais de Sua natureza divina… Mostre Sua cruz salvadora, a tumba, a ressurreição, a ascensão aos céus. Use todos os tipos de desenho, palavra, ou cor.
Mas e o segundo mandamento? Aqui a estratégia de João era o ataque. Ele argumentava que no Antigo Testamento a representação era proibida devido à tendência judaica pela idolatria; e para os cristãos, mais maduros que seus instáveis predecessores, o mandamento foi dado para “evitar erros supersticiosos” e não para prevenir a representação pictórica. Não somos “mais crianças carregadas de um lado para outro e levadas por qualquer surto doutrinário… não mais sob custódia, mas recebemos de Deus a habilidade de discernir o que deve ser representado e o que não é circunscrito” (1.8). A interpretação ostensivamente dualista de João sobre os dois deuses e as duas escrituras foi devida ao pensamento platônico e neoplatônico. A linguagem e a iconografia do teólogo sírio helenizado repetia os conceitos e as metáforas da divindade que se torna acessível aos humanos através de sombras e reflexos imperfeitos e usa a imagem para mostrar-lhes o passado, o presente e o futuro:
Desde a criação do mundo as coisas invisíveis de Deus são claramente vistas por meio de imagens. Vemos imagens na criação que, apesar de serem somente tênues luzes, ainda assim nos lembram Deus. Por exemplo, quando falamos da sagrada e eterna Trindade, usamos as imagens do Sol, da luz e de raios incandescentes; ou uma fonte de água corrente, ou um rio transbordante; ou a mente, a fala e o espírito dentro de nós; ou uma roseira, uma flor e uma doce fragrância. Novamente, uma imagem prevê algo que ainda está por acontecer, algo oculto em mistério e sombras. Por exemplo, a arca do pacto é a imagem da Santa Virgem e Theotokos, como é a haste de Aarão e o pote de maná. A serpente de bronze é típica da cruz e dele, que curou a mordida perniciosa da serpente através da crucificação. A graça batismal é representada pela nuvem e as águas do mar. Novamente, as coisas que já aconteceram são lembradas por meio de imagens. (1.11-13)
Encarando a natureza e a cultura, a linguagem e a representação como fenomenológicas, João falou sobre tudo, até mesmo palavras escritas em livros, termos de imagens, mas rejeitava até o mais leve sinal da dualidade do tipo maniqueísta que distingue entre o espirito como princípio positivo e a matéria como negativo. Para ele ambos, tanto o espírito como a matéria, representavam a divindade — o primeiro o Pai invisível, o segundo o Filho encarnado:
Em tempos remotos, Deus, que não tem forma nem corpo, não pôde nunca ser representado. Mas agora que Deus é visto em carne e osso conversando com os homens, eu crio uma imagem do Deus que eu vejo. Não adoro a matéria; eu adoro o criador da matéria que se tornou matéria para me salvar, que quis fazer sua morada na matéria; que realizou a minha salvação através da matéria. Nunca cessarei de honrar a matéria que lavrou minha salvação. (1.16)
Os tratados pró-icônicos de João Damasceno são escritos com clareza e precisão mas também mexem com a emoção. Seu tom apaixonado era devido ao temperamento de João e à gravidade da ameaça iconoclasta. De fato, havia muito mais em jogo que no passado, quando Eusebius roubou de uma mulher os retratos de Pedro e Paulo para salvá-la da idolatria, e quando Epiphanius rasgou a cortina de uma igreja. Por volta do século VIII o mundo cristão estava cheio de artefatos de alta qualidade e, assim, as palavras de João refletiam não só as preocupações de um teólogo ortodoxo mas também a ansiedade de um amante da arte. Seguindo os passos de Platão, Damasceno considerava a visão como o mais nobre dos sentidos, observava como as imagens estimulavam os olhos e a mente e proclamava que “o que os livros eram para o literato, a imagem era para o iletrado” (1.17).
Damasceno não escreveu somente para defender as imagens. Ele queria que as relíquias também fossem protegidas. Assim ele descreveu como a matéria adquiria propriedades miraculosas ao tocar o corpo de Cristo e dos santos, comparou esse contato ao processo de percepção durante o qual a alma é penetrada pelo que os olhos vêem, argumentou a favor da magia e revelou a existência de uma série de acheiropoietoi: a sombra de Pedro, os lenços e aventais de Paulo, a “gruta e a manjedoura de Belém, a montanha sagrada do Gólgota, a madeira da cruz, os pregos, a esponja, a seta, a lança sagrada e salvadora, o manto, a túnica sem costuras, o lençol enrolado, os cueiros, o túmulo sagrado que é a fonte de nossa ressurreição” (Oratio 3.34).
Como todo grande iconófilo, João de Damasco era extremamente sensível à beleza do mundo e ao charme das figuras e das comparações poéticas. Como todo homem sensual com inclinações místicas, ele se empenhava em descobrir a divindade e comunicar-se com ela através da visão e do tato. Sua fome por uma iluminação resultou numa enchente de metáforas do tipo cobrir com véus e desvelar, vestir e despir, ver e tocar, imprimir e impregnar, penetrar e chamuscar. A linguagem de João reflete seu prazer na materialidade do físico do Deus-Homem e na materialidade da criação: “depois que cheiramos ou provamos, ou tocamos, combinamos nossa experiência com a razão, e chegamos assim ao conhecimento” (3.24). Essa sensualidade rendia ao eminente estudioso as simpatias do povo simples que necessitava de imagens, relíquias e milagres que fornecessem um intercâmbio imediato e espontâneo entre a divindade e a humanidade.
Um defensor apaixonado de imagens e um crente nos milagres e na magia, João de Damasco estava predestinado a ressuscitar o mandylion de Edessa e de completar a lenda de Abgar com um novo emocionalismo. Enquanto Eusebius e a Doutrina de Addai apresentam Abgar como um homem doente que deseja ser curado, Damasceno faz com que o rei se pareça a si mesmo. Seu Abgar
sentiu-se em chamas com o amor divino ao ouvir falar do Senhor, e enviou mensageiros pedindo-lhe que o visitasse. Mas se o pedido fosse negado, eles tinham ordens de pintar o Seu retrato. Então conta-se que Ele que conhece tudo e é onipotente, pegou um pedaço de pano e comprimiu-o à Sua face, imprimindo nele a imagem de Sua fisionomia, que está contida nele até hoje.
Cristo fez isso para que o povo compreendesse a sua divindade através de uma imagem material. A argumentação de João teve eco no Concilio de Niceia (787), quando o retrato de Cristo de Abgar foi invocado por várias vezes. Os iconoclastas também estavam cientes do poder de persuasão do mandylion de Edessa. Eles destruíam códigos inteiros, ou partes deles em que a imagem milagrosa era mencionada; e eram provavelmente também responsáveis pelo desaparecimento do acheiropoietos de Camuliana, que foi, na metade do século VI, transferido a Constantinopla, no século VII serviu como paládio principal da capital, mas do qual não se teve mais notícias no século VIII.