Jesus Eu Sou [MHE:357-358]

Michel Henry [MHE]

[…] O que é que advém antes do mundo? Nós o sabemos: é a relação de interioridade fenomenológica recíproca entre a Vida absoluta e o Primeiro Vivente na medida em que ela se experiencia n’Ele que se experiencia nela. Se experienciar-se a si mesmo, se fruir de si, é amar-se a si mesmo de tal modo que essa fruição de si, produzindo-se na Vida absoluta como a geração, por ela, do primeiro Si em que ela se experiencia e se ama assim a si mesma — experienciando-se esta a si mesma nessa Vida absoluta que se ama n’Ele –, sucede que cada um se ama num “outro” que (estando afastado aqui toda exterioridade) jamais lhe é exterior, mas, ao contrário, lhe é interior e consubstancial. Assim se cumpre a relação inaudita de que falamos: “Tu me amaste antes da criação do mundo”.

Que essa relação de interioridade fenomenológica entre a Vida absoluta e o Primeiro Vivente seja recíproca: eis o que o contexto joanino não cessa de afirmar até em sua estrutura formal. Nesta, a interioridade fenomenológica do Pai com o Filho se encontra constantemente posta como interioridade do Filho com o Pai: “Como tu, ó Pai, tu estás em mim e eu em ti”; “O Pai está em mim e eu estou no Pai”; “Não sabes que estou no Pai e que o Pai está em mim?”. [João, respectivamente 17, 24; 17, 21; 10, 38; 14, 10.]

Como tivemos ocasião de observar, o espantoso é que essa estrutura interna do processo da Vida absoluta como relação de interioridade fenomenológica entre a Vida e seu Verbo se repete na relação entre esse absoluto e o homem — no caso, entre seu Verbo e todo Si transcendental concebível. Um abismo, todavia, não separa a Vida infinita que se traz a si mesma em si em seu Verbo e uma vida, um Si tais como os nossos, incapazes de se trazer a si mesmos à vida, votados, assim, a uma morte certa? Aqui intervém a Encarnação do Verbo. É somente pela Encarnação do Verbo na carne de um homem que é “vindo de Deus”, “enviado por ele” — a saber, o Messias ou o Cristo — que se opera a união que supera esse abismo. Essa união foi chamada deificação porque, repetindo-se a interioridade fenomenológica recíproca da Vida e de seu Verbo quando o proprio Verbo se faz carne em Cristo, toda união com este é identicamente uma união com o Verbo e, neste, com a Vida absoluta. Mas como o homem poderia unir-se ao Verbo senão porque é no próprio Verbo, na Ipseidade originária do Arqui-Filho, que todo Si transcendental está unido a si, dado a ele mesmo como esse Si que ele é? É assim que, experienciando-se a si mesmo na experiência originária que a Vida faz de si em seu Verbo, o homem se tornou semelhante a este, semelhante a Deus.