JERÔNIMO — COMENTÁRIO A MATEUS
Obras de San Jerónimo, II, Comentario a Mateo y otros escritos, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), Madrid, 2002, 769 p., edición bilingüe promovida por la Orden de San Jerónimo, introducciones, traducción y notas de Virgílio Bejarano.
Contribuição, tradução e notas de Antonio Carneiro do “Comentário à Mateus”, Livro II (11, 2-16; 12), páginas 207 até 211
SOBRE A MULHER CANANEIA, E SOBRE …
“E saindo dali Jesus retirou-se para as partes de Tiro e Sidão” (15,21). Tendo deixado os escribas e os fariseus caluniadores, passa para as partes de Tiro e Sidão para curar aos tirenses e sidônios1. Com efeito, uma mulher cananeia sai de sua região natal para, gritando,pedir saúde para sua filha. Observa que a filha cananeia é curada no décimo quinto lugar.
“Tem compaixão de mim, Senhor filho de David; minha filha é atormentada por um demônio” (15,22). Soube chamar “filho de David” ao Senhor precisamente porque havia saído de seu país natal e havia abandonado o erro dos tirenses e sidônios pela sua mudança de lugar e fé. “Minha filha está atormentada pelo demônio”. Considero filha cujo demônio hostilmente a atormenta as almas dos crentes da Igreja, por ignorarem o Criador e serem adoradores de pedras.2
“Que não respondeu qualquer palavra” (15,23). Não por soberbia farisaica nem por orgulho próprio de escribas, mas sim para não mostrar-se em contradição com aquela expressão sua pela qual havia ordenado: não vos desvieis para o caminho de gentios e não entreis nas cidades dos samaritanos (Mt 10,5). (133) Pois não queria dar ocasião aos caluniadores e reservava a perfeita salvação dos gentios para o Tempo da Paixão e da Ressurreição.
“E aproximando-se seus discípulos rogavam-lhe dizendo: Despede-a, porque grita atrás de nós” (15,23). Os discípulos desconhecedores naquele tempo dos mistérios do Senhor, fosse comovidos pela misericórdia, intercediam pela mulher cananeia (a quem outro evangelista3 lhe chama sírio-fenícia), ou fosse pela sua furiosa insistência, querendo desfazer-se dela, porque insistentemente lhe reclamava não como um médico clemente, mas sim como um médico duro.
“Não fui enviado senão para as ovelhas perdidas da casa de Israel” (15,24). Não porque não tivesse sido enviado também para os gentio, mas sim porque primeiro tinha sido enviado à Israel para, não havendo recebido o Evangelho, justificar sua transmigração4 para os gentios (At 13, 46). E significativamente disse “as ovelhas perdidas da casa de Israel” para que compreendamos também a única ovelha perdida de outra parábola.
“Por isso veio e o adorou dizendo” (15,25). Contempla sob a pessoa da mulher cananeia a fé, a paciência e a humildade da Igreja, a fé com que acreditou poder curar sua filha, a paciência com que desprezada perseverou em súplicas, e a humildade com que se comparou não aos cachorros mas aos cachorrinhos. Cachorros são chamados os gentios por causa de sua idolatria, os quais dados ao consumo de sangue e dos cadáveres dos mortos se põem raivosos. Observa que esta cananeia, com perseverança primeiro o chama “ filho de David” , depois “Senhor” e por último o adora como Deus.
“Mas ela disse: Certo, Senhor, mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa de seus donos” (15,27). (134) Sei que, disse, não mereço comer o pão dos filhos nem posso tomar inteiros os manjares nem estar sentada à mesa com o Pai, mas sim que me conformo com as sobras dos cachorrinhos para por meio da humildade das migalhas, chegar à grandeza do pão inteiro. Oh admirável mutação das coisas. Israel quando eram filhos, éramos cachorros. Pela diversidade mudada da fé muda-se também a ordem dos nomes. Deles se diz depois: “Muitos cachorros me encurralaram” (Sl 21,17), e também: “Atenção com os cachorros, guardai-vos dos maus obreiros, cuidado com a mutilação” (Fp 3,2). Ouvimos com a sírio-fenícia e com a mulher que tinha fluxo de sangue: “Grande é tua fé” (15,28); “faça-se segundo tua fé” (Mt 8,13); e também: “Filha, tua fé te curou” (Mc 5,34; Lc 8, 48; Mt 9,22).
Notas:
sidônio significa : 1. relativo a ou habitante de Sidão, cidade da Fenícia, metrópole de Tiro; 2. que apresenta a cor semelhante à dos naturais de Sidão (diz-se de pele). Em latim também encontra-se a alusão à púrpura. ↩
Testemunha aqui São Jerônimo o culto às pedras sagradas estendido antigamente por estas regiões do Oriente. Mais precisamente referem-se ao culto de ídolos e colunas de pedra praticado pelas nações cananeias expressamente proibidos à Israel (Lv 26,1;Nm 33,52) e advertidos pelos profetas (Is 57,6). ↩
Trata-se de Marcos cf. 7,26: “E esta mulher era grega, sírio-fenícia de nação, e rogava-lhe que expulsasse de sua filha o demônio.” ↩
Não sem intenção usa aqui São Jerônimo o substantivo “transmigratio”, tão alusivo ao cativeiro da Babilônia. ↩