JERÔNIMO — CARTA 36
Ao beatíssimo papa Dámaso, Jerônimo.
1. Nada como receber carta de tua santidade, chamei sem perda de tempo meu taquígrafo e mandei-lhe se preparar para copiar. Enquanto se preparava para a função, punha-me a desenhar em minha imaginação o que expressaria em palavras. Já estava para mover minha língua e ele seu instrumento, quando de súbito um hebreu interrompeu-nos, trazia boa quantidade de rolos da sinagoga que havia tomado a pretexto de lê-los. Logo disse-me : “ Aqui tens o que postulaste” , fiquei na dúvida sem saber que fazer; mas insistiu-me tanto por estar apressado que, deixando tudo, pus-me a copiar voando, que é o que estive fazendo até este momento.
No entanto, como ontem me enviaste um diácono para dizer-me que esperavas uma carta, segundo tu, ou melhor, pelo que vejo, um comentário, e que desejavas uma breve resposta para assuntos que requereriam um por um grandes volumes, improvisei isto para ti e só omiti duas questiúnculas. Não porque não pudesse responder também algo sobre elas, mas sim porque foram discutidas em latim por dois varões eloquentíssimos, nosso Tertuliano e Novaciano, e se quisesse acrescentar algo novo, haveria de dissertar mais amplamente. Estou realmente na expectativa de que gostes: se quiser que te reúna com brevidade epistolar as várias sentenças ou que componha um livro para cada tema. À este respeito Orígenes, no tomo quarto de seus tratados exegéticos sobre a Carta de Paulo aos Romanos, dissertou magnificamente sobre circuncisão e no Levítico tratou amplamente dos animais puros e impuros, se a mim não me ocorre nada, tomar-lhe-ia de suas fontes. E para falar a verdade, tenho nas mãos o livro sobre o Espírito Santo de Dídimo cuja tradução desejo dedicar-lhe, para que não penses que o único que faço é dormir, que por suposição o sono é ler sem estilo. Assim pois, dando preferência aos problemas que comunicavas em tua carta, acrescido o que penso, e te peço perdão por minha pressa e por sua vez pela minha demora. Por minha pressa, porque numa curta velada quis ditar o que requereria dias; de minha demora, porque, ocupado com outro trabalho, não lhe respondi imediatamente à tuas perguntas.
2. Que quer dizer: “ Todo aquele que matar a Caim pagará sete vindictas ” ?
Antes de entrar no problema parece conveniente cotejar com o hebreu as versões de cada intérprete, para que se entenda mais facilmente o sentido da Escritura: “ uaiomer lo adonai lochen chol orec Cain sobathain ioccamo” . Áquila: “ E lhe disse o Senhor: Por isso todo aquele que matar Caim, sofrerá uma vindicta séptupla” . Símaco: “ E lhe disse o Senhor: Não assim, mas sim que todo aquele que matar Caim será vingado ‘ebdomatos’, quer dizer, ‘o sétimo’ .” A Septuaginta e Teodósion : “ E lhe disse o Senhor: Não assim, mas sim que todo aquele que matar Caim, pagará sete vindictas.” Depois que Caim matou seu irmão Abel, perguntado pelo Senhor: Onde está seu irmão Abel ? respondeu desrespeitosamente: Não sei. Acaso sou o guardião de meu irmão ? (Gen 4,9). Pelo qual, castigado com a maldição de ter que viver gemendo e tremendo sobre a terra, não quis pedir perdão, mas sim que, acumulando pecados sobre pecados, pensou que seu crime era tão grande que não poderia ser perdoado pelo Senhor. Finalmente respondeu ao Senhor: Minha culpa é demasiado grande para que eu possa ser perdoado (Gn 4,13). Quer dizer, “ pequei demasiado para que possa ser absolvido” . Eis aqui que me lanças para fora hoje da face da terra, e me esconderei da tua face, e andarei gemendo e tremendo sobre a terra, e acontecerá que todo aquele que me encontrar, me matará (Gn 4,13 ss). “ Sou lançado para fora, disse, de tua presença; consciente de meu crime, não posso suportar a própria luz; me esconderei para estar oculto, e sucederá que todo o que me encontrar, me matará, pois pelo tremor de meu corpo e a agitação de minha mente furiosa entenderá que mereço ser privado da vida” . O Deus verdadeiro não quer que acabe morto atormentado para se tornar um compendio, nem entregar à pena que ele mesmo se condenou, lhe disse: “ não assim” , quer dizer, “ não morrerás como pensas, acolhendo-te a morte como remédio; viverás até a sétima geração e serás atormentado pelo fogo de tua consciência; de forma que o que te matar (e aqui cabem dois sentidos) te livrará na sétima geração ou então com um sétimo tormento” . Não que quem matar Caim tenha de ser submetido a sete vindictas (nota 3), mas sim que o executor desfará as sete vindictas que em tão longo tempo se abateram sobre Caim, matando ao que foi deixado vivo para ser castigado.
3. Para se fazer mais claro o que dissemos, ponhamos um exemplo do quotidiano. O servo durante o açoite diz para o senhor: “ incendiei tua casa e destruí todos materiais, priva-me da vida” ; mas o senhor responde: “ não morrerás como desejas para por fim aos suplícios com a morte, serás guardado na verdade longo tempo com vida, e andarás tão desgraçado sob a luz do sol, que todo aquele que te matar faria um benefício ao morto” . E é exatamente então como se publicou o sentido compreendido segundo a Septuaginta.
4. A respeito do que Áquila pôs “ sete vezes tanto” , e Símaco “ hebdomato ou se vingado o sétimo”, é opinião de nossos antepassados que Lamec matou Caim na sétima geração. Com efeito Adão gerou Caim, Caim gerou Enoc, Henoch gerou Gaidad, Gaidad gerou Maleleel, Maleleel gerou Matusalém, Matusalém gerou Lamec, que sendo o sétimo desde Adão, assim como está escrito, quanto à este fato num volume hebreu, assassinou Caim. E em seguida o próprio confessa: A um homem matei com golpes dado por mim e a um jovem com uma pisadura minha (Gn 4,23); pois se Caim há de ser vingado sete vezes, Lamec será setenta vezes sete (Gn 4,24). E na verdade a respeito de Caim, quanto à este fato de ter sido assassinado na sétima geração e o que se deve fazer segundo a lei, aliás não convém fazer exposição de um castigo para tornar ele criminoso, julgo que nenhuma treva subsistirá.
5. Ora, nestas circunstâncias, o que me diz respeito prejudica não argumentar, enquanto melhor reflito sobre o assunto: que são setenta e sete vindictas que em Lamec são cumpridas. Dizem que de Adão até Cristo tem setenta e sete gerações sem interrupção. Relê o evangelista Lucas e encontre deste modo o que dissemos. Do mesmo modo que o pecado de Caim foi perdoado portanto na sétima geração — pois, com efeito o senhor não se vingará duas vezes do mesmo crime, e aquele que sofreu males em sua vida não sofrerá os mesmos tormentos em sua morte como os que sofreu em vida — e deste modo o pecado de Lamec, quer dizer do mundo todo, e por outro lado o sangue derramado pago pelo advento de Cristo que “ tira os pecados do mundo” (Jn 1,29), que lavou seu manto no sangue da uva e só pisou o lagar (Is 63, 1-3), que de Edom operou-se o milagre elevou-se rubicundo entre anjos que clamavam: “ levantem vossas portas, príncipes, e introduzi o rei em sua glória” (Sl 23,7-9), etc. Relatava-me um certo hebreu que em livros apócrifos setenta e sete indivíduos descendentes de Lamec foram destruídos pelo Dilúvio por isso quis reparar, e por causa disso sobre este número Lamec tenha em seguida executado a vindicta (nota 3), pois sua família perseverou até o Dilúvio, por isso o próprio prostrou-se.
6. Diversos suspeitam de diferentes coisas a respeito das sete vindictas de Caim, e assim afirmam que seu primeiro pecado foi não haver repartido justamente (Gn 4,2); o segundo ter inveja de seu irmão; o terceiro ter obrado com dolo quando disse: “ Vamos ao campo” (Gn 4,8); o quarto privado a vida dele; o quinto negar descaradamente: “ Não sei. Sou acaso o guarda de meu irmão?” (Gn 4,9); o sexto ter condenado a si mesmo: “ minha culpa é demasiado grande para que eu possa ser perdoado” (Gn 4,13); o sétimo não ter feito penitência nem quando após ter sido condenado, a exemplo dos ninivitas e de Ezequias, rei de Judá, que a força de lágrimas atrasaram uma morte eminente (2Rs 20, 1-3). E dizem que Deus clementíssimo o conservou até a sétima geração para que pelo menos, angustiado por tantos males e pela tristeza de uma vida tão longa, fizesse penitência e merecesse ser absolvido.
7. Alguns interpretam o número sete como pleno e perfeito reunindo testemunhos em muitas passagens das escrituras, e cujo sentido é do mesmo modo como inteiramente acima foi construído, que aquele que privou a vida de Caim havia libertado o próprio de imensa expiação e de passagem totalmente a pena de morte.
8. Mas tem também os que recorrem à interrogação de Pedro no evangelho e repetem: “ Senhor, quantas vezes pecará meu irmão contra mim e terei que perdoar ? Até sete vezes ? Disse-lhe Jesus: não digo que até sete vezes, mas sim setenta vezes sete vezes (Mt 18, 21-22).” E imaginam que a morte ou o pecado na sétima geração guardasse os sábados, quando Enoc foi subitamente arrebatado “ e não foi encontrado, porque lhe transladou o Senhor (Hb 11, 5).” Sobre o setenta e também o sete conforme esta explicação: com o advento do Cristo deixou na verdade de existir a culpa, pois o aguilhão foi quebrado.
9. Vou me referir todavia a outra opinião, para que não pareça que passo por alto. Alguns entendem o ano sétimo da remissão (Dt 15, 1) o quinquagésimo do jubileu e o quatrocentos e noventa que é o que entendem por “ setenta vezes sete vezes” de diversos modos, e afirmam que por este motivo se coloca cinquenta e quinhentos como número sagrado no evangelho na posição dos devedores (Lc 7, 41), e o quinquagésimo Salmo como da Penitência (Salmo 50), que se compõe de sete septenários e salta ao princípio da “ogdoada”. Não quero estender-me mais; basta o dito até aqui, pois com as ideias que fui derramando poderás tu mesmo compor uma dissertação tão ingente como um bosque, sobretudo sabendo que Orígenes ditou seus livros duodécimo e décimo terceiro sobre o Gênesis em torno somente desta questão.