Talvez a história destes homens ilustres tenha sido escrita detalhadamente para isto: para que a vida dos que vêm depois se dirija para o bem imitando as coisas que foram feitas precedentemente com retidão. Talvez alguém diga: se eu não sou caldeu como sabemos que foi Abraão, nem fui criado pela filha do Egípcio como conta a história de Moisés, nem tenho nada em comum na forma de viver com nenhum destes homens de outros tempos, como conformarei minha vida com a de um deles, se não tenho como imitar a alguém que me é tão afastado em sua forma de viver? Respondemos que não pensamos que ser caldeu seja vicio ou virtude, nem que ninguém se encontre afastado da vida virtuosa por viver no Egito ou habitar na Babilônia. Pelo contrário, nem Deus se faz conhecer somente na Judéia daqueles que são dignos, nem Sião, entendido em sentido literal, é a casa de Deus ( Sal 75, 2-3 ). Portanto, teremos necessidade de uma INTERPRETAÇÃO mais sutil e de um olhar mais agudo para discernir sempre, a partir da história, de que caldeus ou egípcios havemos de nos distanciar e de que cativeiro da Babilônia devemos escapar para conseguir a vida bem-aventurada. Daqui para a frente, em nosso discurso, tomamos Moisés como modelo de vida. Em primeiro lugar, recorreremos rapidamente sua vida, conforme a conhecemos pela divina Escritura; depois buscaremos o significado espiritual correspondente à história, para receber um ensinamento sobre a virtude. Assim conheceremos em que consiste para os homens a vida perfeita. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: PRIMEIRA PARTE PREFÁCIO
Moisés chegou então a isto, e agora chega também todo aquele que, seguindo seu exemplo, despoja a si mesmo de sua envoltura terrena e olha para a luz que sai da sarça, isto é, o raio de luz que nos ilumina através da carne cheia de espinhos, que é, como diz o Evangelho, a luz verdadeira ( Jo 1, 19 ) e a verdade ( Jo 14, 6 ). Então este chega a ser capaz de prestar ajuda aos demais no sentido da salvação, de destruir a tirania daquele que domina com artes más, e de encaminhar à liberdade os que estão debaixo da tirania de perversa escravidão. A transformação da mão direita e a mudança do bastão em serpente ( Ex 4, 3-7 ) são o começo dos prodígios. Parece-me que nestes prodígios se dá a entender simbolicamente o mistério da manifestação da Divindade aos homens através da carne do Senhor, graças à qual tem lugar a destruição do tirano e a libertação dos que estão oprimidos por ele. Leva-me a esta INTERPRETAÇÃO o testemunho profético e evangélico. Pois o profeta diz: Esta é a mudança da destra do Altíssimo ( Sal 76, 11 ), como se a Divindade, considerada imutável, se houvesse mudado conforme nosso aspecto e figura por condescendência para com a debilidade da natureza humana. A mão do Legislador tomou uma cor distinta da que lhe é natural ao ser tirada do peito; voltando novamente ao peito, tornou à beleza que lhe era própria e natural. O Deus Unigênito, o que está no seio do Pai ( Jo 1, 18 ), é a direita do Altíssimo ( Sal 76, 11 ). Quando se manifestou a nós saindo do seio, se transformou conforme nossa forma de ser; depois de haver curado nossa enfermidade, novamente recolheu ao próprio seio, o seio da direita do Pai, a mão que havia estado entre nós e que havia tomado nossa cor. Então não tornou passível o que era de natureza impassível, mas por sua comunicação com o que era impassível transformou em impassibilidade aquilo que era mutável e passível. A transformação do bastão em serpente não há de perturbar os amigos de Cristo como se tivéssemos que harmonizar a palavra do mistério com um animal que lhe é oposto ( Ex 4, 3; 7, 10 e Nm 21, 9 ). A verdade mesma não afasta esta imagem quando diz com a voz do Evangelho: Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que seja levantado o Filho do homem ( Jo 3, 14 ). O sentido é claro. Se o pai do pecado foi chamado serpente pela Sagrada Escritura ( Gn 3, 1 ), e o que nasce da serpente é verdadeiramente serpente, segue-se que o pecado tem o mesmo nome daquele que o gerou. Pois bem, a palavra do Apóstolo dá testemunho de que o Senhor se fez pecado por nós ( 2Co 5, 21 ), ao revestir-se de nossa natureza pecadora. O símbolo se acomoda ao Senhor como foi dito. De fato, se a serpente é pecado e o Senhor se fez pecado, a conseqüência que se segue será evidente a todos : que quem se fez pecado, se fez serpente, a qual não é outra coisa senão pecado. Se fez serpente por nós para comer e destruir as serpentes dos egípcios produzidas pelos magos. Uma vez feito isto, a serpente se transforma novamente em bastão ( Ex 7, 12 ) com o qual são castigados os que pecam, e são aliviados os que sobem o caminho escarpado da virtude, apoiando-se no bastão da fé por meio das boas esperanças. A fé é, na verdade, a substância das coisas que se esperam ( Hb 11, 1 ). Quem chegou ao entendimento destas coisas é como um deus em relação àqueles que, seduzidos pela ilusão material e sem substância, opõem-se à verdade e julgam coisa vã escutar falar a respeito do ser. Pois disse o Faraó : Quem é ele para que eu escute sua voz? Não conheço o Senhor ( Ex 5, 2 ). O Faraó só julga digno aquilo que é material e carnal, as coisas que caem sob as sensações irracionais. Ao contrário, se alguém tiver sido fortalecido pela iluminação da luz, e tiver recebido tanta força e tanto poder contra os adversários, então, como um atleta convenientemente preparado por seu treinador nos varonis exercícios do esporte, se dispõe, confiante e audaz, para o ataque dos inimigos, tendo na mão aquele bastão, isto é, o ensinamento da fé, com o que há de triunfar sobre as serpentes egípcias. A mulher de Moisés, saída de um povo estrangeiro ( Ex 4, 20 ), o acompanhará. Há algo nada desprezível da cultura pagã para nossa união com ela com a finalidade de gerar a virtude. Com efeito, a filosofia moral e a filosofia da natureza podem chegar a ser esposa, amiga e companheira para uma vida mais elevada, com a condição de que os frutos que procedem delas não conservem nada da imundície estrangeira. Pois se esta sujeira não tiver sido circuncidada e cortada ao meio até o ponto em que todo o daninho e impuro haja sido arrancado fora, o anjo que lhes sai ao encontro lhes causará um terror de morte. A mulher o aplaca mostrando-lhe seu filho purificado pela ablação do sinal pelo qual se reconhece o estrangeiro ( Ex 4, 24-26 ). Julgo que a quem esteja iniciado na INTERPRETAÇÃO da história será patente, por tudo que se disse, a continuidade do progresso na virtude que mostra o discurso seguindo, passo a passo, a conexão dos acontecimentos simbólicos da história. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 4.
Por outro lado, uma vez que por seu grande esforço e pela iluminação que recebeu no cume se elevou à maior das ações da alma, tem lugar um encontro amigável e pacífico, pois Deus moveu seu irmão para que saísse a seu encontro ( Ex 4, 27 ). Se o que acontece na história for interpretado em sentido alegórico, talvez não se encontre nada que seja alheio a nosso propósito. A quem se dedica ao progresso na virtude, assiste uma ajuda dada por Deus a nossa natureza, que é anterior a nós quanto a sua origem, mas que se mostra e se dá a conhecer quando nos dispomos a combates mais fortes, depois de havermos nos familiarizado suficientemente, com cuidado e diligência, com a vida mais elevada. Para não explicar alguns enigmas por meio de outro enigma, exporei mais claramente o sentido desta passagem. Existe uma doutrina que merece credibilidade por pertencer à tradição dos Pais. Diz que, depois da queda de nossa natureza no pecado, Deus não contemplou nossa desgraça indiferentemente, mas que colocou perto, como ajuda para a vida de cada um, um anjo que recebeu uma natureza incorpórea ( Mt 18, 10- 11 ); e que em oposição, o corruptor da natureza maquinou algo parecido, danificando a vida do homem mediante um demônio perverso e malvado. Como conseqüência, o homem se encontra entre esses dois que o acompanham com propósitos contrários, e pode por si mesmo fazer triunfar um ou outro. O bom mostra ao pensamento os bens da virtude como são contemplados em esperança por aqueles que agem retamente; o outro mostra os sujos prazeres nos que não existe nenhuma esperança de bem, pois inclusive o prazer imediato, o que se apreende e se pega, escraviza os sentidos dos tontos. Porem se alguém se afasta dos que induzem ao mal, dirige seus pensamentos ao melhor e volta as costas – por assim dizer – ao vício, põe sua própria alma – que é como um espelho -, frente à esperança dos bens, e assim imprime na pureza da própria alma as imagens e reflexos da virtude que lhe é mostrada por Deus. É então que a companhia do irmão lhe sai ao encontro e o assiste ( Ex 4, 27 ). Pela racionalidade e intelectualidade da alma humana, pode-se, de certo modo, chamar irmão ao anjo. Este, como já dissemos, aparece e socorre quando nos aproximamos do Faraó. Que ninguém pense que a narração da história corresponde tão absolutamente com a ilação desta consideração espiritual, que se encontrar algo do escrito que não concorda com esta INTERPRETAÇÃO, por este algo que não concorda rechace o todo. Que tenha sempre presente a finalidade de nossas palavras, a qual temos presente ao expor estas coisas. Já adiantamos no prefácio a afirmação de que as vidas dos grandes homens são colocadas como exemplos de virtude para a posteridade. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 6.
Não é possível que aqueles que desejam imita-los passem pela mesma materialidade dos feitos. Como, de fato, se poderia encontrar novamente o povo que se multiplicou depois de sua emigração do Egito, e como se poderia encontrar também o tirano que o escravizou comportando-se malvadamente com a descendência masculina e permitindo à descendência mais branda e fraca aumentar até se converter em multidão, e assim todas as outras coisas que aparecem na narração? Uma vez que podemos ver que, na materialidade mesma dos feitos, não é possível imitar os gestos maravilhosos destes bem aventurados, só havemos de transferir de seu acontecer material o ensinamento moral daqueles acontecimentos que assim o admitam, dos que oferecem, para quem se esforça por conseguir a virtude, algum estímulo até este gênero de vida. E se, por força, algum dos fatos que contem a história sai da ordem e da coerência com a INTERPRETAÇÃO que propusemos, passaremos por alto como algo inútil e sem proveito para nossa finalidade. Desta forma conseguiremos não interromper a exegese relativa à virtude. Digo isto pela INTERPRETAÇÃO em relação a Aarão, prevendo uma objeção ao que segue. Com efeito, alguém dirá que não repele o fato de que o anjo tenha semelhança com a alma quanto à incorporalidade e à capacidade de entender; que não nega o fato de que sua criação tenha tido lugar antes da nossa, nem que assista aos que lutam contra os adversários; porem que não parece bem entender como imagem sua a Aarão, que conduz os israelitas à idolatria. Antecipando a ordem do relato, responderemos a isto com o que já dissemos: que um episódio estranho não desvirtua a coerência dos demais fatos, e que, se o mesmo nome designa o papel do anjo e do irmão, se acomoda também a cada um segundo significados contrários. Com efeito, não só se diz anjo de Deus, mas também de Satanás ( 2Co 12, 7 ), e chamamos irmão não só ao bom, mas também ao mau. A Escritura fala dos bons quando diz : Os irmãos serão úteis na necessidade ( Pr 17, 17 ). E dos perversos quando diz : Todo irmão prepara armadilha ( Jr 9, 3 ). Após dizer isto a margem da ordem do discurso e deixando para seu lugar adequado uma consideração mais profunda destas questões, voltemos aos temas que nos propusemos. Moisés, fortalecido com a luz que o iluminou e tendo recebido seu irmão como companheiro de luta e como ajuda, fala ao povo valentemente sobre a liberdade, recordando-lhes a grandeza pátria, e lhes dá a conhecer como poderão se livrar da fadiga do barro dos ladrilhos ( Ex 4, 29-31 ). Que nos ensina a história com estas coisas? Que não se deve atrever a falar ao povo aquele que não tiver cultivado sua forma de dizer com uma educação adequada para dirigir-se a muitos. Não vês, de fato, como Moisés, quando ainda era jovem, antes de crescer em capacidade, não foi aceito como digno conselheiro de paz por aqueles dois homens que estavam lutando e agora, ao contrário, fala ao mesmo tempo a milhares de pessoas? Podemos dizer que a história grita que não te atrevas a propor um ensinamento ou um conselho aos ouvintes, se antes não tiveres adquirido autoridade nisto mesmo através de muito estudo. Depois de pronunciar Moisés as mais valentes palavras e mostrar o caminho da liberdade excitando nos ouvintes o desejo dela, o inimigo se irrita e aumenta os sofrimentos dos que dão ouvido a estas palavras ( Ex 5, 6-14 ). Tampouco isto é alheio ao que nos interessa agora. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 7.
O ensinamento da verdade é acolhido segundo as disposições dos que recebem a palavra. De fato, a palavra mostra a todos o que é bom e o que é mau. Pois bem, quem é dócil àquilo que lhe é mostrado tem a mente na luz, enquanto que quem tem a disposição contrária e não aceita que a alma olhe para a luz da verdade permanece na obscuridade da ignorância. Se a INTERPRETAÇÃO que demos ao conjunto da passagem não estiver errada, então a INTERPRETAÇÃO dada a cada um dos detalhes não lhe será totalmente oposta, pois a exegese de cada um deles está compreendida no conjunto. Portanto, não há nada de estranho em que o hebreu permanecesse incólume diante das pragas dos egípcios, embora estivesse vivendo no meio desses estrangeiros, posto que também agora é possível ver que sucede a mesma coisa. De fato, estando divididos os homens nas grandes cidades entre doutrinas contrárias, para uns a água do manancial da fé é potável e límpida, e a conseguem mediante o ensinamento divino, enquanto a água se torna sangue corrompido para aqueles que se converteram em egípcios por causa de suas perversas opiniões ( Ex 7, 20 ). Muitas vezes os sofistas do erro rondam também a água dos hebreus para converte-la em sangue com a contaminação da mentira, isto é, para mostrar-nos que nossa doutrina não é como é, porem não conseguem corromper totalmente a água, embora a superfície fique avermelhada por causa do erro. Ainda que esteja caluniada pelos inimigos, o hebreu bebe água verdadeira, sem prestar atenção à aparência de erro. O mesmo cabe dizer da espécie de rãs ( Ex 8, 1-6 ), ruidosa e maléfica, que se introduz sub- reptíciamente nas casas, habitações e dispensas dos egípcios, sem chegar a tocar a vida dos hebreus: sua vida é anfíbia, seu salto rasteiro; é repugnante não só por seu aspecto como também pelo fedor de sua pele. Os desastrosos frutos da maldade que surgem do coração sujo dos homens como gerados no pântano, são certamente como uma espécie de rãs. Estas rãs habitam as casas de quem se fez egípcio por escolha de seu estilo de vida; se deixam ver às mesas, não abandonam os leitos e se introduzem nas dispensas onde se guardam as coisas. Considera a vida suja e desavergonhada, nascida de um verdadeiro limo pantanoso, que, ao imita-lo, se assemelha à natureza irracional. Falando com rigor, em seu estilo de vida, não pertence a nenhuma das duas naturezas, pois é homem segundo sua natureza, porem se transformou em besta por sua paixão. Por esta razão mostra em si mesma aquele modo de vida anfíbio e ambíguo. E assim encontrarás nessa vida os sinais desta praga, não só nos leitos, mas também nas mesas, nas dispensas e em toda a casa. Um homem assim deixa, por onde quer que vá, o rastro de sua vida dissoluta, de forma que todos podem distinguir facilmente a vida do homem licencioso da vida do homem puro, inclusive na decoração da casa. De fato, na casa do impuro, sobre o reboco das paredes, encontra-se pinturas feitas com habilidade, que, ao trazer à memória as formas da debilidade, excitam ao prazer sensual e introduzem as paixões na alma através da contemplação de coisas vergonhosas, enquanto que na casa do sábio, pelo contrário, há todo o cuidado e cautela para manter a vista livre de espetáculos obscenos. Do mesmo modo a mesa do sábio se encontra limpa, enquanto que a do que se espoja em uma vida lodosa está suja como as rãs, e transbordante de comidas. E assim se entrasses nas dispensas, isto é, nas coisas ocultas e reservadas de sua vida, encontrarias ali, nas intemperanças, um montão ainda maior de rãs. A história diz que o bastão da virtude fez estas coisas contra os egípcios. Não nos desconcertemos por esta forma de falar. Também diz a história que o tirano foi endurecido por Deus ( Ex 9, 12 e Rm 9, 17- 18 ). Como seria digno de condenação aquele que tivesse sido feito duro e refratário por uma força irresistível vinda do alto? O divino Apóstolo diz a mesma coisa: Posto que não tivessem por bem guardar o verdadeiro conhecimento de Deus, Deus os entregou às paixões vergonhosas ( Rm 1, 28 e 26 ), falando dos pederastas e de quantos se envilecem com as diversas formas vergonhosas e inconfessáveis da vida dissoluta. Porém, embora seja verdade que a divina Escritura se expressa dizendo que Deus entregou às paixões vergonhosas aqueles que se entregaram a elas, nem o Faraó se endureceu por querer divino, nem a vida sórdida, própria das rãs, é causada pela virtude. De fato, se a Divindade tivesse querido isto, tal querer teria tido absolutamente a mesma força sobre todos, de forma que jamais se poderia estabelecer diferença alguma entre virtude e vício. Ao contrário, uns e outros, os que são dirigidos pela virtude e os que caem no vício, vivem de formas diferentes, e ninguém poderá, racionalmente, atribuir a uma fatalidade estabelecida pelo querer divino estas diferenças no modo de viver, que surgem exclusivamente da livre escolha de cada um. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 9.
Aqui se fundamenta especialmente a lógica da INTERPRETAÇÃO que demos: que não é uma irresistível força do alto que leva um a estar nas trevas e outro na luz, senão que nós homens temos dentro de nós, na nossa natureza e em nossa livre escolha, as causas da luz e da escuridão, convertendo-nos naquilo que queremos. Segundo a história, os olhos dos egípcios não se encontravam nas trevas porque estivesse interposta uma montanha ou uma muralha que obscurecesse a vista ou os raios do sol, mas porque enquanto o sol iluminava todas as coisas com seus raios, os hebreus gozavam da luz, e os egípcios eram insensíveis a este dom. Assim, embora a vida luminosa se apresente igualmente acessível a todos, os que caminham nas trevas são empurrados à obscuridade do mal por suas práticas perversas, enquanto os outros são iluminados pela luz da virtude. Depois de terem sofrido três dias nas trevas, os egípcios também recebem parte na luz. Talvez alguém, apoiando-se nisto, dirija sua INTERPRETAÇÃO à restauração que, depois destas coisas, esperam o reino dos céus os que estão condenados ao inferno. De fato, estas trevas que se pode apalpar ( Ex 10, 21 ) como diz a história, tem grande afinidade na palavra e no sentido com as trevas exteriores ( Mt 8, 12 ). Dissipam-se uma e outra quando Moisés, como explicamos anteriormente, estende as mãos sobre os que estão nas trevas. Da mesma forma, aquela cinza de forno que, segundo a palavra produzia dolorosas pústulas nos egípcios, poderia ser interpretada, dado o simbolismo do termo forno, como o castigo do fogo do inferno com que se ameaça e que só fere os que vivem à maneira dos egípcios ( Ex 9, 8 e Mt 13, 42 ). Porem se alguém é verdadeiramente israelita e filho de Abraão, e se assemelha a ele em seu estilo de vida a ponto de mostrar por sua opção pertencer à família dos eleitos, este se conserva livre daquela dolorosa cinza. O estender das mãos de Moisés, segundo a INTERPRETAÇÃO que demos, se converteria, inclusive para os outros, em cura da enfermidade e em afastamento do castigo. E quanto àqueles leves mosquitos que atormentam os egípcios com invisíveis picadas, aos insetos tavões que se cravam dolorosamente nos corpos com suas mordidas, às lavouras destruídas pelos gafanhotos, às tempestades que se precipitam do céu com pedras de granizo, talvez ninguém, se seguiu as explicações das pragas precedentes, encontre dificuldade para ajustar a INTERPRETAÇÃO correspondente a cada uma destas pragas. Todas estas coisas são causadas primeiramente pela livre decisão egípcia e são executadas pela justiça imparcial de Deus que se acomoda ao que merecem as diversas opções. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 11.
Avancemos com a continuação do texto, tendo bem presente o que já explicamos: que o mesmo Moisés ou aquele que a sua imitação se eleva na virtude, depois de haver fortalecido sua alma com uma prolongada vida elevada e reta, e com a iluminação recebida do alto, considera como uma injustiça de sua parte não guiar seus compatriotas a uma vida livre. Moisés saindo a seu encontro infunde-lhes um desejo mais forte de liberdade pondo diante deles a gravidade dos padecimentos. A quando está perto de libertar seu povo do mal, traz a morte a todo primogênito egípcio ( Ex 12, 29 ), indicando-nos deste modo que é necessário destruir o mal em seu primeiro broto, pois do contrário é impossível escapar da vida egípcia. Parece-me importante não deixar passar este pensamento sem refletir sobre ele. Pois se alguém considerar só o sentido literal, como poderá manter uma INTERPRETAÇÃO digna de Deus nos acontecimentos narrados? É injusto o egípcio e em seu lugar é castigado seu filho recém nascido que por sua tenra idade não pode distinguir entre o bem e o mal. Sua vida é alheia à paixão malvada, pois a infância não dá lugar à paixão, nem estabelece diferença entre a direita e a esquerda; unicamente ergue os olhos ao peito de sua nutriz, para expressar sua dor só dispões de suas lágrimas e, se consegue o que deseja sua natureza, mostra sua alegria com um sorriso. Onde está a justiça, se este cumpre o castigo pela maldade paterna? Onde a piedade? Onde Ezequiel clamando que a alma que peca, esta morrerá e não será responsável o filho, mas o pai ( Ez 18, 20 )? SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 13.
Como pode a história estabelecer uma lei contrária à razão? Considerando a INTERPRETAÇÃO espiritual, não será mais razoável crer que isto sucede como figura e que, através do que foi dito, o Legislador quis propor um ensinamento? O ensinamento é este: que quem se empenha na luta da virtude contra o vício deve faze-lo desaparecer em seus primeiros brotos. De fato, com a destruição dos primeiros brotos, se destroi também o que lhes segue em continuação, como nos ensina o Senhor no Evangelho, ordenando quase com as mesmas palavras destruir os primogênitos dos vícios egípcios; exorta-nos assim a cortar a concupiscência e a ira ( Mt 5, 22 e 28 ), e a não ter medo nem da sujidade do adultério, nem da mancha do homicídio, pois nenhum destes males tem consistência por si mesmo, mas que é a cólera que leva a cabo o homicídio e o desejo é que conduz ao adultério. Precisamente porque aquele que engendra o mal, antes do adultério produziu o desejo e antes do crime produziu a cólera, quem destroi o primogênito destroi totalmente a descendência que segue o primogênito, do mesmo modo que quem golpeou a cabeça da serpente matou com o mesmo golpe o corpo que rasteja atrás. Porem isto não poderia acontecer se previamente não tivessem sido borrifadas as ombreiras das portas com aquele sangue que afugenta o Exterminador ( Ex 12, 23 ). E se queremos captar com maior exatidão o sentido de quanto se diz, a história no-lo insinua através destas coisas: através da morte do primogênito e através da proteção da entrada com o sangue. Ali, com efeito, se destroi o primeiro movimento do mal e aqui mesmo, pelo verdadeiro cordeiro, se afasta a primeira entrada do mal em nós. Pois uma vez que o exterminador esteja dentro, não o expulsaremos com um simples pensamento; vigiemos com a Lei, para que nem se quer comece a entrar em nós. A vigilância e a segurança consistem em sinalizar com o sangue do cordeiro o montante e as ombreiras da entrada ( Ex 12, 22 ). A Escritura nos explica estas coisas da alma com figuras; também a ciência profana as intuiu ao distinguir a alma em seu aspecto racional, concupiscível e irascível. Deles – diz – o irascível e o concupiscível estão abaixo, sustentando cada um a parte racional da alma, e assim a parte racional, tendo subjugadas as outras duas, as governa e, por sua vez, é sustentada por elas: é impulsionada ao valor pelo apetite irascível e é elevada pelo apetite concupiscível à participação no bem. Enquanto a alma se encontra estabilizada nesta disposição, estando segura por pensamentos virtuosos como se fossem cavilhas, dá-se uma cooperação para o bem de todas as faculdades entre si: a parte racional dá segurança por si mesma às partes que lhe estão submetidas e, por sua vez, recebe o mesmo benefício da parte delas. Porem se a ordem for invertida e o que está acima passar par baixo, caindo para a parte em que é pisada, a razão fará subir sobre si as disposições concupiscível e irascível, e então, o exterminador entrará no interior, sem que se oponha a ele nenhum repúdio proveniente do sangue, isto é, sem que a fé em Cristo ajude no combate àqueles que se encontram nestas disposições. Manda borrifar com sangue primeiro o montante, e besuntar depois as ombreiras de um lado e outro. Como poderia alguém untar primeiro o que está acima, se não estivesse em cima? Não estranhes se estes dois episódios – a morte dos primogênitos e a aspersão do sangue – não acontecem igualmente aos israelitas, e não repudies, por causa disto, nossa consideração a respeito da destruição do mal, como se estivesse fora da verdade. Interpretamos a diferença entre os nomes hebreu de egípcio como a diferença entre a virtude e o vício. Se, pois, o sentido espiritual sugere entender o israelita como o bom, não seria coerente que alguém tentasse matar as primícias dos frutos da virtude, mas aquelas cuja destruição é mais útil que sua conservação. Assim pois, coerentemente, aprendemos com Deus que é necessário destruir as primícias da estirpe egípcia, para que seja destroçado o mal, aniquilado com a destruição de seus primeiros brotos. Esta INTERPRETAÇÃO está de acordo com a história. A proteção dos filhos dos israelitas tem lugar por meio da aspersão do sangue para que o bem chegue à plenitude; por outro lado, aquele que ao amadurecer haveria de constituir o povo egípcio, este é destruído antes que chegue à plenitude no mal. O que segue está de acordo com a INTERPRETAÇÃO espiritual que propusemos, acomodando-se ao sentido do discurso. Prescreve-se, com efeito, que se converta em nosso alimento o corpo daquele do qual fluiu este sangue que, mostrado nos montantes das portas, afasta o exterminador dos primogênitos dos egípcios. A atitude dos que levam à boca esta comida há de ser sóbria e conforme com pessoas que têm pressa, não como a que se vê naqueles que se divertem em banquetes, cujas mãos estão soltas, as vestes sem cingir, os pés livres de calçados de viagem. Aqui tudo é o oposto. Os pés estão aprisionados nos sapatos, o cinturão cinge as pregas da túnica aos rins e, na mão, o bastão que defende dos cães ( Ex 12, 11 ). E neste atavio, a comida é posta diante deles sem nenhuma preparação complicada, mas elaborada apressadamente sobre o fogo, de forma improvisada. Os convidados a devoram rapidamente, a toda pressa, até que todo o corpo do animal tenha sido consumido. Comem tudo o que é comestível em redor dos ossos, porem não tocam no que está dentro, pois é proibido romper os ossos deste animal. O que sobra de comida é consumido pelo fogo ( Ex 12, 9-10 e Nm 9, 12 ). De tudo isto se depreende com clareza que a Escritura está visando um significado mais elevado, já que a Lei não nos ensina o modo de comer, para estas coisas é suficiente guia a natureza, a qual colocou em nós o apetite, mas através disto quer significar outra coisa. De fato, que tem a ver com a virtude ou o vício a comida ser apresentada de uma forma ou de outra, com a cintura cingida ou sem cingir, descalços os pés ou com os sapatos, tendo o bastão na mão ou o havendo deixado? Resulta claro, ao contrário, o que significa simbolicamente a preparação do aparato de viagem. Convida-nos diretamente a que reconheçamos que na vida presente estamos de passagem, como caminhantes, impelidos desde o nascimento até à morte pela mesma necessidade das coisas. E que é necessário que as mãos, os pés e tudo o demais estejam preparados para esta saída a fim de ter segurança no caminho. Para que não sejamos feridos nos pés desprotegidos e descalços pelos espinhos desta vida, os espinhos poderiam ser os pecados, protejamo-los com a defesa dos sapatos. Isto é a vida casta e austera, que quebra e dobra por si mesma as pontas dos espinhos, e evita que o mal penetre dentro de nós com um começo pequeno e imperceptível. Uma túnica que flutua solta sobre os pés e que se enreda entre as pernas seria um estorvo para quem anda corajosamente por este caminho, segundo Deus. Neste contexto, poderíamos entender a túnica como a relaxação prazenteira nos cuidados desta vida a qual uma mente sábia, convertendo-se em cinturão do caminhante, reduz e aperta. Que o cinturão é a temperança, se atesta pelo lugar ao qual cinge. O bastão que defende das feras é a palavra da esperança, com a qual sustentamos a alma em suas fadigas e afugentamos os que ladram. O alimento para nós preparado no fogo comparo com a fé cálida e ardente que acolhemos sem demora, de que comemos quanto de comestível está à mão do que come, enquanto deixamos de lado, sem buscar e sem espiar curiosamente, a doutrina que está velada em conceitos duros e dificilmente assimiláveis, entregando ao fogo um alimento semelhante. Para explicar os símbolos utilizados em relação a isto, dizemos o seguinte: alguns dos ensinamentos divinos têm um sentido exeqüível; não convém recebe-los preguiçosamente nem de má vontade, mas saciar- nos, como famintos impelidos pelo apetite, dos ensinamentos que estão diante de nós, de forma que o alimento se converta em robustecimento para nossa saúde. Outros ensinamentos são obscuros, como o indagar qual é a substância de Deus, ou o que existia antes da criação, ou o que há alem das aparências, ou que necessidade marca os acontecimentos, e todas as coisas deste estilo que são investigadas pelos curiosos; é necessário deixar que estas coisas só sejam conhecidas pelo Espírito Santo, que penetra as profundidades de Deus, como diz o Apóstolo ( 1Co 2, 10 ). Com efeito, ninguém que esteja familiarizado com a Escritura ignora que nela o Espírito freqüentemente é lembrado e é designado como fogo. Somos levados a esta INTERPRETAÇÃO pela advertência da Sabedoria: Não especules sobre o que te ultrapassa ( Eclo 3, 22 ), isto é, não rompas os ossos do ensinamento, pois não te é necessário o que está escondido ( Eclo 3, 23 ). SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 14.
Assim é que Moisés tira o povo do Egito. Do mesmo modo, todo o que segue as pegadas de Moisés livra da tirania egípcia a todos aqueles a quem chega a palavra. Penso que os que seguem a quem os conduz à virtude não devem ser privados da riqueza egípcia, nem carecer dos tesouros estrangeiros, mas devem levar consigo todas as coisas que pertencem a seus adversários por empréstimo. Isto é o que Moisés manda o povo fazer ( Ex 12, 35-36 ). Que ninguém, tomando isto ao pé da letra, entenda o propósito do Legislador como se ele mandasse despojar os ricos e se convertesse assim em condutor da injustiça. Ninguém que considere atentamente as leis que seguem em continuação proibindo a injustiça contra os que estão perto, tanto aos que estão acima como aos que estão abaixo, diria na verdade que o Legislador tivesse ordenado isto, ainda que a alguns pareça ser justo que, com este subterfúgio os israelitas paguem a si mesmos os salários pelos trabalhos prestados aos egípcios. Com efeito, uma ordem assim não estaria livre da acusação de não estar limpa de mentira e engano. De fato, quem toma uma coisa emprestada, e sendo alheia não a devolve a seu dono, comete injustiça por priva-lo dela; e se esta coisa é sua, ao menos é chamado mentiroso por enganar a quem a tinha com a esperança de tirar proveito. Por esta razão, mais apropriada que a INTERPRETAÇÃO literal, é a INTERPRETAÇÃO espiritual que exorta aqueles que buscam uma vida livre através da virtude a abastecer-se com a riqueza estrangeira na qual se glorificam os que são alheios à fé. Assim ocorre com a ética, a física, a geometria, a astronomia, a dialética e todas as demais ciências que são cultivadas por quem não pertence à Igreja. O guia da virtude exorta a toma-las de quem, no Egito, as possui em abundância, e a usa-las quando forem necessárias a seu tempo, quando seja necessário embelezar o divino templo do mistério com as riquezas da inteligência. Na verdade, aqueles que haviam entesourado para si esta riqueza a apresentaram a Moisés quando trabalhava na construção da tenda do testemunho, prestando cada um sua contribuição para a preparação das coisas santas. Podemos ver que isto também ocorre hoje. Muitos apresentam à Igreja de Deus, como um dom, a cultura pagã. Assim fez o grande Basilio que adquiriu formosamente a riqueza egípcia no tempo de sua juventude, a dedicou a Deus, e embelezou com esta riqueza o verdadeiro tabernáculo da Igreja. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 15.
Voltemos ao ponto em que estávamos. Aqueles que já avistam a virtude e seguem o Legislador em seu estilo de vida, quando abandonam os limites do domínio dos egípcios, são perseguidos pelos ataques das tentações que provocam ansiedades, medos e perigos em relação ao êxito final. Assustada por estas coisas, a alma dos principiantes na fé cai em completa desesperança em conseguir os bens. Porem, se Moisés ou alguém como ele se encontra à liderança do povo, ao medo se oporá o conselho, reconfortando a alma em seu desfalecimento com a esperança da ajuda divina. Mas isto não ocorrerá se o coração de quem está na liderança não fala com Deus. De fato, a muitos que estão colocados nesta posição só preocupa a maneira como se encontra organizado o que se vê, enquanto que as coisas que estão ocultas, que só são vistas por Deus, lhes produzem um cuidado pequeno. Não foi assim com Moisés. Quando exortava os israelitas a terem confiança, mesmo não pronunciando exteriormente nenhuma palavra dirigida a Deus, o próprio Deus testemunha que gritou ( Ex 14, 13-15 ), ensinando-nos a Escritura – penso – que a voz que é sonora e sobe aos ouvidos divinos não é o clamor que tem lugar com vozes, mas o pensamento interior que sobe de uma consciência pura. A quem se encontra nesta situação, parece pequeno o irmão como ajuda para as maiores batalhas, refiro-me àquele irmão que saiu ao encontro de Moisés quando, conforme o mandado de Deus, se dirigia aos egípcios, e a quem nosso discurso apresentou em seu ministério de anjo ( Ex 4, 27 ). Agora tem lugar a manifestação do Ser transcendente, que se mostra de modo que possa ser captado por quem o recebe. Conhecemos pela história que isto aconteceu então e sabemos pela INTERPRETAÇÃO espiritual que isto ocorre sempre. De fato, cada vez que alguém foge do egípcio e, ao chegar fora de seus territórios, se assusta ante os ataques das tentações, e quando o inimigo rodeando com suas forças o perseguido só lhe deixa disponível o mar, o guia, isto é, a nuvem, lhe mostra a salvação imprevista que vem de cima. Até ali, ao mar, o conduz o guia, quer dizer, a nuvem ( Ex 13, 21 ). Os que nos precederam interpretaram este nome dado ao guia como a graça do Espírito Santo que conduz ao bem os que são dignos. O que a segue atravessa a água, enquanto o guia lhe abre nela uma passagem estreita através da qual se realiza um caminhar seguro até a liberdade, onde desaparece debaixo da água aquele que o perseguia para escravizar. Quem ouve isto, talvez reconheça o mistério da água a que alguém desce junto com todo o exército do inimigo e da qual emerge só, depois de se afogar na água o exército inimigo ( Ex 14, 26-30 ). Pois quem desconhece que o exército egípcio significa as diversas paixões da alma às quais se escraviza o homem? Isto são os cavalos, isto são os carros e os que estão montados neles; isto são os arqueiros, e os infantes e o resto do exército dos inimigos ( Ex 14, 9 ). De fato, em que se diria que os movimentos de cólera ou os impulsos ao prazer, à tristeza e à avareza diferem do exército que acabamos de mencionar? A afronta é pedra lançada pela funda, e o ataque de cólera é lança que agita sua ponta, enquanto que os cavalos que puxam os carros com impulso irrefreável podem ser entendidos como o afã de prazeres. Nos três homens montados no carro – a quem a história chama tristates ( Ex 14, 7 ) -, e que são levados por ele, reconhecerás, instruído pelo simbolismo do montante e das ombreiras das portas, a tríplice divisão da alma, pensando no racional, no concupiscível e no irascível. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 16.
Este dia é esta vida na qual nos preparamos as coisas da vida futura. Nela, nenhum dos trabalhos que realizamos agora é factível: nem a agricultura, nem o comércio, nem a milícia, nem nenhum outro trabalho no qual agora nos afanamos, senão que vivendo em um total repouso destes trabalhos, recolheremos os frutos das sementes que tivermos semeado durante esta vida. Frutos incorruptíveis, se eram boas as sementes desta vida; corruptíveis e funestos, se assim no-las houver produzido a lavoura da vida. O que semeia para o espírito – diz – do espírito recolherá vida eterna; o que semeia para a carne, da carne recolherá corrupção ( Ga 6, 8 ). Por esta razão, a Lei chama parasceve com propriedade e só considera como tal a preparação para melhor, desde que o que ela entesoura é incorrupção; seu oposto não é parasceve e nem recebe este nome. Com efeito, ninguém chamaria com propriedade preparação à privação do bem, senão falta de preparação. Por esta razão, a história prescreve aos homens só a preparação endereçada ao melhor, dando a entender com seu silêncio aos discretos, em que consiste o contrário. Da mesma forma que nos alistamentos militares, o chefe da expedição entrega primeiro as provisões e depois dá o sinal de guerra, assim também os soldados da virtude, depois de haverem recebido a provisão mística, marcham para a guerra contra os estrangeiros, dirigindo a batalha Josué, sucessor de Moisés. Vês com que coerência prossegue a narração? Enquanto o homem está muito debilitado, maltratado pela perversa tirania, não afasta por si mesmo o inimigo. Tampouco pode. Outro é que se faz companheiro de combate dos fracos, o que fere o inimigo com sucessivos golpes. Porem, uma vez que tenha sido libertado da escravidão dos opressores, e tenha sido adoçado com o lenho, e tenha descansado da fadiga no acampamento das palmeiras, e tenha reconhecido o mistério da pedra, e tenha participado do alimento do céu, então não afasta o inimigo pelas mãos de outro, mas como quem abandonou o tempo da infância e alcançou a altura da juventude, ele mesmo luta corpo a corpo contra os adversários, sem ter já como general Moisés, o servo de Deus, mas o próprio Deus do qual é servo Moisés ( Dt 34, 5 e Ex 14, 31 ). Com efeito, a Lei, dada como sombra e figura dos bens que estavam por vir ( Hb 8, 5 ), é inadequada para as verdadeiras batalhas. Aquele que é a plenitude da Lei e sucessor de Moisés, que foi prenunciado na igualdade de nome de quem então mandava, esse dirige agora a batalha. O povo, quando vê levantadas as mãos do Legislador, avantaja-se sobre o inimigo no combate; se as vê caídas, cede ( Ex 8, 5 ). Ter Moisés as mãos elevadas significa a contemplação da Lei através do sentido espiritual; o deixa-las cair para a terra, a pobre exegese presa ao solo, e a observação da Lei segundo a letra. O sacerdote sustenta as mãos de Moisés que se tornaram pesadas, ajudado neste trabalho por um membro da família. Nem mesmo isto é alheio à coerência das coisas que estamos contemplando. De fato, o sacerdote verdadeiro, graças à palavra de Deus que está unida a ele, conduz novamente para o alto as energias da Lei, caídas à terra pelo peso da INTERPRETAÇÃO judía, e apoia na pedra – como em um fundamento -, a Lei que cai, de forma que esta, como sugere a figura formada pelas mãos estendidas, mostra a quem as vê qual é seu sentido. Efetivamente, para aqueles que sabem ver, o mistério da cruz aparece constantemente na Lei. Por esta razão diz o Evangelho em algum lugar que não passará um jota ou um til da lei ( Mt 5, 18 ), significando com isto o traço horizontal e o acento perpendicular com que se desenha a figura da cruz. Essa mesma cruz, mostrada então em Moisés – que é figura da Lei -, se erguia como bandeira e causa de vitória para os que a olhavam. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 21.
A narração conduz nossa consideração, uma vez mais, ao mais alto da virtude em uma contínua subida. Aquele que foi fortalecido pelo alimento, e mostrou sua força na luta corpo a corpo com os inimigos, e venceu seus oponentes, é levado agora àquele inefável conhecimento de Deus, àquela teognosia. A narração nos ensina com isto, quais e quantas coisas é necessário ter chegado a bom termo na vida para nos atrevermos a nos aproximar, com o pensamento, da montanha da teognosia, suportar o fragor das trombetas, penetrar nas trevas onde está Deus, gravar nas tábuas os divinos mandamentos e se, por causa do pecado, se quebrarem aquelas tábuas, apresentar de novo a Deus as tábuas polidas a mão, para que os caracteres que foram destruídos nas primeiras sejam desenhados novamente pelo dedo divino. Talvez seja melhor adaptar nosso conhecimento à INTERPRETAÇÃO espiritual, seguindo passo a passo a ordem da narração. Quem segue Moisés e a nuvem, pois ambos servem de guia aos que avançam na virtude, Moisés representaria aqui os preceitos da Lei, e a nuvem a INTERPRETAÇÃO espiritual da Lei que nos serve de guia, quem com mente purificada na passagem da água depois de haver matado e apartado de si o que era estrangeiro experimentou a água de MARA, isto é, a água da vida afastada dos prazeres, a qual primeiro parece amarga e sem sabor aos que a experimentam, porem regala com uma sensação doce a quem aceitou o lenho; quem depois disto se deleitou com a beleza das palmeiras e das fontes evangélicas e da água viva ( Jo 4, 11 ) que é a pedra; quem foi saciado recebendo em si mesmo o pão do céu ( Jo 6, 32 ) e lutou valentemente contra os estrangeiros, cuja vitória foi causada pelas mãos levantadas do Legislador que prefiguram o mistério da cruz, este é levado à contemplação da natureza que tudo transcende. O caminho que o conduz a este conhecimento é a limpeza, não só do corpo, purificado com algumas aspersões, mas também a das vestes, lavadas de toda mancha com água. Isto significa que é necessário que quem está a ponto de ascender à contemplação dos seres esteja completamente limpo, de forma que seja puro e sem mancha na alma e no corpo, havendo lavado as manchas igualmente de uma e de outro. Assim apareceremos puros a quem vê o secréto ( Mt 6, 4 ) e o decoro exterior estará de acordo com a disposição interna da alma. Por ordem de Deus, as vestes são lavadas antes de subir a montanha ( Ex 19, 10 ), indicando-nos com o simbolismo das vestimentas o decoro exterior da vida. Com efeito, ninguém diria que uma mancha exterior do vestido se converte em obstáculo para a subida de quem se aproxima de Deus, a menos que com vestido se aluda convenientemente – penso – ao exterior das ocupações desta vida. Feito isto, e havendo afastado da montanha o mais possível o rebanho dos irracionais, Moisés empreende a ascensão aos mais altos conhecimentos ( Ex 19, 13 ). O não ter permitido a nenhum ser irracional aparecer na montanha significa, a meu ver, que na contemplação das realidades espirituais se transcende o conhecimento que provem da sensibilidade. De fato, é próprio dos seres irracionais deixar-se guiar pelos sentidos sem refletir. O sentido da visão é o guia dos sentidos; muitas vezes o ouvido desperta o impulso para alguma coisa. Todas as coisas através das quais se ativa a sensibilidade, têm um amplo espaço nos irracionais. Ao contrário, a contemplação de Deus não tem lugar nem no âmbito do que se vê, nem no âmbito do que se ouve. Não se prende e nenhum dos conceitos habituais. Nem o olho viu, nem o ouvido ouviu. Não consiste em nenhuma das coisas que ordinariamente sobem até o coração do homem ( 1Co 2, 9 ). Quem tenta ascender ao conhecimento das coisas do alto, deve limpar previamente seus costumes de todo impulso sensível e irracional, purificar qualquer opinião proveniente de um preconceito anterior ao pensamento, e afastar-se da relação ordinária com a própria companheira, isto é, com a sensibilidade que, de certa forma, está unida a nossa natureza como esposa e companheira. E purificado dela, enfrentar assim a montanha. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 22.
A montanha verdadeiramente escarpada e de difícil acesso designa o conhecimento de Deus: a teologia. A turba apenas alcança chegar trabalhosamente até sua base. Porem, se se trata de algum Moisés, talvez suba um grande trecho, suportando no ouvido o fragor das trombetas que, como diz o texto da narração, se faz mais forte quanto mais se avança ( Ex 19, 19 ). Efetivamente, a pregação em torno da natureza divina é trombeta que golpeia o ouvido; parece já forte no começo, se faz maior e mais forte para o ouvido nas etapas finais. A Lei e os profetas proclamaram o mistério divino da Encarnação, porem as primeiras vozes eram muito débeis para alcançar os ouvidos dos indóceis. Por esta razão, a dureza de ouvidos dos judeus não percebeu o som das trombetas. Ao avançar, as trombetas, como diz o relato, se fazem mais fortes. Os últimos sons, emitidos através das pregações evangélicas, golpeiam os ouvidos pois, através destes instrumentos, o Espírito ressoou com maior clareza para aqueles que vieram depois, e produziram um ruído mais vigoroso. Os instrumentos que clamam no Espírito são os profetas e os apóstolos. Como diz a salmodia, seu clamor chegou a toda a terra e suas palavras aos confins do mundo ( Sal 18, 5 ). Que a multidão não tenha podido suportar a voz que vinha do alto e tenha encarregado Moisés de conhecer por si mesmo os mistérios ocultos e comunicar ao povo a doutrina que houvesse aprendido através do ensinamento divino ( Ex 19, 23-24 ), também isto está entre as coisas praticadas na Igreja: nem todos se lançam à compreensão dos mistérios mas elegem entre eles quem possa perceber as coisas divinas, prestam-lhe ouvidos confiantemente e tomam como digno de fé tudo quanto ouçam aqueles que tiverem sido iniciados nos mistérios divinos. Não todos – diz – são apóstolos, nem todos profetas ( 1Co 12, 29 ). Isto não está sendo observado muito hoje nas igrejas. Muitos que têm necessidade de se purificar de ações passadas, sem lavar-se e ainda com manchas em torno de suas vidas, colocando ante si mesmos a irracionalidade do sensível, cometem a ousadia de tentar a divina ascensão. Daí serem apedrejados por seus próprios raciocínios. Com efeito, as opiniões heréticas são realmente pedras que matam o próprio inventor de doutrinas perversas. Que significa o fato de Moisés penetrar as trevas e nelas ver Deus? O que se narra aqui parece contrário à primeira teofania ( Ex 20, 21 ). Pois então a divindade foi vista na luz; agora, nas trevas. Não pensemos que isto destoa quanto à coerência com o que consideramos em nossa INTERPRETAÇÃO espiritual. Através disto, o texto nos ensina que o conhecimento da piedade, no começo, se faz luz em quem o recebe. De fato, concebemos como trevas o contrário da piedade, e o afastamento das trevas é produzido pela participação na luz. Mas a seguir a mente, avançando na compreensão do conhecimento dos seres mediante uma atenção sempre maior e mais perfeita, quanto mais avança na contemplação, tanto mais percebe que a natureza divina é invisível. Em conseqüência, abandonando tudo o que é visível, não só tudo o que está no campo da sensibilidade, mas também tudo quanto a inteligência parece ver, marcha sempre para o que está mais oculto, até penetrar, com o trabalho intenso da inteligência, no invisível e incompreensível, e ali vê Deus. Nisto consiste o verdadeiro conhecimento do que buscamos, em ver no não ver, pois o que buscamos transcende todo o conhecimento, totalmente circundado pela incompreensibilidade como por trevas. Por esta razão disse o elevado João que esteve nas trevas luminosas: A Deus nunca ninguém viu ( Jo 1, 18 ), definindo com esta negação que o conhecimento da essência divina é inacessível não só aos homens, senão também a toda natureza intelectual. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 23.
Como era, pois, aquela tenda não feita por mão de homem, que foi mostrada a Moisés no alto da montanha, recebendo ordem de tomá-la como modelo para dar a conhecer, através de uma obra feita a mão, a maravilha não feita por mão de homem? Olha – disse – farás todas as coisas conforme o modelo que te foi mostrado na montanha ( Ex 25, 40 ). Colunas de ouro apoiadas em bases de prata e adornadas também com capitéis de prata. Depois outras colunas cujos capitéis e cujas bases eram de bronze e o corpo do meio de prata. Todas tinham um suporte de madeira incorruptível e em toda sua volta se espalhava o resplendor próprio destes materiais de construção. Havia também uma arca de ouro puríssimo, que resplandecia do mesmo modo; o apoio do revestimento de ouro era também de madeira incorruptível. Alem disso um candelabro: único em sua base, mas dividido no alto em sete braços e sustentando em seus braços igual número de lâmpadas. Ouro era a matéria do candelabro, e seu interior não era oco, nem estava chapeado na madeira. Alem destas coisas, o altar, o expiatório e os kerubims cujas asas davam sombra à arca ( Hb 9, 5 ). Todas estas coisas eram de ouro; o ouro não só dava o brilho de ouro à superfície, mas era ouro maciço que estava inclusive no interior dos objetos. Havia ainda tapetes de diversas cores, tecidos com arte, com flores diversas abrindo-se entrelaçadas entre si como adorno do tecido. Com estes tapetes se separava o que, na tenda, era visível e acessível para alguns ministros sagrados, e o que estava vedado e era inacessível. O nome da parte anterior era o Santo, e o da parte secreta Santo dos Santos ( Ex 26, 33 ). Enfim havia pias, incensários, a cobertura exterior das tendas, e tecidos de crinas e peles tingidas de vermelho; e todas as outras coisas que Moisés expôs com palavras ( Ex 30, 18 ). Quem poderia compreende-las com exatidão? Que realidades não feitas por mão de homem estas coisas imitam? Que proveito recebem os que vêem a imitação material daquelas coisas que foram contempladas ali por Moisés? Parece-me oportuno deixar a INTERPRETAÇÃO exata destas coisas a quem tem o poder de investigar as profundezas de Deus por meio do Espírito ( 1Co 2, 10 ), se há alguém que possa manifestar os mistérios no Espírito, como diz o Apóstolo ( 1Co 14, 2 ). De nossa parte, propomos hipoteticamente nossa INTERPRETAÇÃO destes assuntos, e a submetemos ao bom sentido de quem a ouça, deixando sua aceitação ou seu repúdio ao parecer de quem a examine. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 25.
O que foi dito não parecerá obscuro a quem acolheu com retidão o mistério de nossa fé. Há certamente um só ser entre todos, que existia antes dos séculos e que foi criado nos últimos tempos, embora não tivesse necessidade de ser criado no tempo ( Col 1, 17 ). Com efeito, como teria tido necessidade de nascimento temporal Aquele que existia antes dos tempos e dos séculos? Por nós, que por causa de nossa inconsideração nos havíamos afastado do ser, aceitou ser criado como nós para levar novamente a ser ao que se havia afastado do ser. Este é o Deus Unigênito, que abarca em si mesmo o universo, e que plantou sua tenda de campanha entre nós ( Jo 1, 14 ). Ao ouvir chamar tenda a um bem tão elevado, não se turbe o amigo de Cristo, como se com o significado desta expressão se diminuísse a grandeza da natureza de Deus. Não existe nenhum outro nome digno para expressar esta natureza, pois todos são igualmente incapazes de uma definição adequada, sejam aqueles que valorizamos pouco, sejam aqueles com os quais cremos vislumbrar algo da grandeza dos conceitos. Assim como todos os demais nomes, cada um com significado parcial, são empregados piedosamente para indicar o poder de Deus – como médico, pastor, protetor, pão, videira, caminho, porta, mansão, água, pedra, fonte e todos os demais nomes que se usam para Ele -, assim também agora, o chamamos tenda em um sentido digno de Deus. De fato, o poder que contem o universo inteiro, no qual habita toda a plenitude da divindade ( Col 2, 9 ), a proteção comum de tudo, que abrange o universo, é chamado tenda com todo o direito. Porem é necessário que a visão esteja em harmonia com este nome, isto é, que cada uma das coisas vistas nos leve à consideração de um conceito digno de Deus. E posto que o grande Apóstolo diz que o véu da tenda inferior é a carne ( Hb 10, 20 ) por estar tecida de fios diferentes que indicam – penso – a substância dos quatro elementos, talvez também ele tenha tido a visão da tenda nos santuários celestiais, quando por meio do Espírito lhe foram revelados os mistérios do paraíso ( 2Co 12, 4 ), será oportuno, partindo desta INTERPRETAÇÃO de uma parte, harmonizar com ela a contemplação da toda a tenda. O simbolismo da tenda pode ser esclarecido por meio das mesmas palavras do Apóstolo. Pois em algum lugar diz do Unigênito, ao que conhecemos designado como tenda: Tudo foi criado por Ele, as coisas visíveis e as invisíveis, os tronos, as potestates, os principados, as dominações, as virtudes ( Col 1, 16 ). SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 27.
Por conseguinte, as colunas reluzentes de prata e recamadas de ouro, os suportes e argolas e aqueles kerubims que cobriam a arca com suas asas e todas as outras coisas que contêm a descrição da tenda, se alguém as considera tendo presentes as realidades do alto, são as forças supramundanas que estão na tenda e que, conforme a vontade de Deus, sustenta o universo. Ali estão nossos verdadeiros suportes, que foram enviados para o serviço, por causa dos que hão de herdar a salvação ( Hb 1, 14 ), os quais aderidos a nossas almas como anéis, elevam àcima da virtude os que estão Afixados à terra. O texto, que chama kerubim ao que cobre com suas asas os objetos secretos colocados na arca da aliança ( Ex 25, 18-20 ), confirma a INTERPRETAÇÃO que fizemos da tenda. Sabemos que este é o nome das potências que estão em torno da natureza divina, e que Isaías e Ezequiel puderam vislumbrar ( Is 6, 2 e Ez 10, 1-17 ). O fato de que a arca da aliança esteja oculta pelas asas não deve produzir estranheza a quem ouve. De fato, está escrito em Isaías simbolicamente o mesmo em relação às asas. O que aqui se chama arca da aliança, ali é chamado face ( Is 6, 2 ). Em um lugar se oculta com as asas a arca, e em outro a face, significando o mesmo, no meu entender, em ambos os lugares: que é inacessível a contemplação das coisas inefáveis. E se ouvindo falar das lâmpadas que surgem de um só pé e se dividem em muitos braços para que se difunda por toda parte uma luz generosa e abundante, não errarás se entenderes que nesta tenda brilham os variados fulgores do Espírito, como diz Isaías ao dividir em sete as iluminações do Espírito ( Is 11, 2 e Ap 4, 5 ). Quanto ao propiciatório, penso que sequer necessite de INTERPRETAÇÃO, uma vez que o Apóstolo já colocou a descoberto seu sentido profundo quando disse: A quem Deus propôs como propiciatório ( Rm 3, 25 ). Por altar e incensário, entendo a adoração das criaturas celestes que se realiza continuamente naquela tenda. De fato, diz que não só a língua dos que estão na terra e abaixo da terra ( Flp 2, 10 ), mas também a dos que estão nos céus dirige seu louvor àquele que é Princípio de todas as coisas. Este é o sacrifício agradável a Deus: o fruto dos lábios ( Hb 13, 15 e Is 57, 19 ), como diz o Apóstolo, e o bom perfume das orações ( Ap 5, 8 ). E se entre estes objetos se considera a pele tingida de vermelho e as crinas entrelaçadas, tampouco se cortará a coerência de nossa INTERPRETAÇÃO. Na visão das coisas divinas, o olhar profético verá prefixada ali a paixão salvadora, conforme simboliza cada uma das coisas enumeradas: na cor vermelha, o sangue; nas crinas, a morte. No corpo, as crinas estão privadas de sensibilidade; por esta razão se convertem em símbolo apropriado da morte. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 28.
Quando o profeta considera o tabernáculo celestial, o contempla através destes símbolos. Se depois considera a tenda inferior, posto que muitas vezes a Igreja é chamada Cristo por Paulo, poderíamos entender, com todo o direito, que estes nomes designam os servidores do divino mistério, os que a palavra chama também colunas da Igreja, julgando que estes nomes designam os apóstolos, os mestres e os profetas ( Col 1, 18 e 1Co 12, 12 e Ef 1, 23 e Ga 2, 9 ). Com efeito, não só são colunas da Igreja Pedro, João e Tiago, nem só João Batista foi lâmpada que ilumina, senão que todos os que com seu esforço sustêm a Igreja e os que, por suas obras, se convertem em luminárias, são chamados colunas e lâmpadas ( Jo 5, 35 ). Vós sois a luz do mundo ( Mt 5, 14 ), disse o Senhor aos Apóstolos. E o divino Apóstolo, dirigindo-se a outros, manda novamente que sejam colunas, dizendo : Sede firmes e inquebrantáveis ( 1Co 15, 58 ). E edificou Timóteo como coluna formosa, fazendo-o, como disse com suas próprias palavras, coluna e fundamento da verdade ( 1Tm 3, 15 ). Neste tabernáculo, vemos oferecidos perpetuamente, de manhã e à tarde, o sacrifício de louvor e o incenso da oração ( Hb 13, 15 ). O grande Davi nos dá a entender isto dirigindo a Deus o incenso da oração em perfume e suavidade, e oferecendo o sacrifício com a elevação das mãos ( Sal 140, 2 e Ef 5, 2 ). Ao ouvir falar de peles, se reconhecerá facilmente os que se purificam da mancha dos pecados na água sacramental. Piscina era João, purificando no Jordão com o batismo de penitência; piscina era Pedro, que conduziu até a água três mil pessoas, e isto de uma só vez; piscina de Candace foi Felipe, e todos os que causam a graça em quantos recebem a participação do dom ( At 2, 41 e At 8, 27-40 ). Talvez não nos afastemos do conveniente se interpretarmos que os tapetes, que unidos entre si rodeiam circularmente a tenda, significam a unanimidade de amor e de paz entre os crentes, pois Davi o entende assim quando diz: Fiz da paz teus limites ( Sal 147, 14 ). A pele tingida de vermelho e as cobertas de crinas para completar o adorno da tenda, poderiam ser entendidas respectivamente como a mortificação da carne de pecado ( Rm 8, 3 ) – da que é símbolo a pele tingida de vermelho -, e a austeridade da vida em continência, coisas com as quais o tabernáculo da Igreja se embeleza especialmente. As peles, com efeito, que não têm em si mesmas a força vital que provem da natureza, se torna colorida com a imersão na tinta vermelha, a qual ensina que a graça que floresce por meio do Espírito não nasce senão naqueles que deram morte ao pecado em si mesmos. E se com o tecido vermelho se designa no relato o pudor casto, isto deixamos ao juízo de quem queira pensar assim. O trançado de crinas, que proporciona um tecido áspero e grosso, alude à áspera austeridade que debilita nossas paixões familiares. A vida em virgindade, que mortifica a carne de quem assim vive, mostra em si todos estes traços ( 1Co 9, 27 ). O fato de que o interior da tenda, que se chama Santo dos Santos, esteja vedado à maioria, não pensamos que destoe da coerência de nossa INTERPRETAÇÃO. Pois na verdade é coisa santa, e coisa santa entre as santas, intangível e inacessível à maioria, a verdade dos seres. Posto que está colocada na parte mais íntima e secreta da tenda do mistério, nós não devemos nos ocupar inoportunamente do conhecimento dos seres que estão alem de nossa compreensão, crendo sim que o procurado existe, ainda que não seja patente aos olhos de todos, mas que permanece inefável nas regiões secretas do espírito. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 29.
O olho da alma de Moisés, instruído nestas coisas e em outras semelhantes, purificado pela visão do tabernáculo e elevado por tais maravilhas, novamente ascende ao cume de outros conhecimentos, ao ser instruído sobre as vestimenta sacerdotal. A ela pertencem a túnica, o efod, aquele peitoral que brilhava com os múltiplos fulgores das pedras, o turbante em torno da cabeça e a lâmina ( Ex 28, 36 ) que estava em cima; os calções, as romãs, as campainhas. Depois, por cima de tudo, o oráculo com o juízo, e a verdade que aparece em um e em outro ( Ex 28, 30 ); e, em fim, as correntinhas que unem ambas as partes e nas quais estão inscritos os nomes dos patriarcas. Os nomes mesmo das vestimentas fazem supérflua uma consideração total e particularizada de cada detalhe. Com efeito, que vestes corporais têm como nome juízo, oráculo ou verdade? Isto nos demonstra claramente que a palavra, por meio destas coisas, não nos está descrevendo uma vestimenta perceptível com os sentidos, mas um ornamento da alma tecido com a prática da virtude. Jacinto é a tinta da túnica que cai até os pés. Alguns dos que nos precederam na INTERPRETAÇÃO dizem que o relato, com esta tinta, designa o ar. De minha parte, não seria capaz de decidir com exatidão se a plenitude desta cor tem algo em comum com a cor do ar. Contudo, não repudio esta INTERPRETAÇÃO, pois seu sentido é coerente com uma aplicação à vida virtuosa, já que significa que quem quer consagrar-se a Deus e oferecer seu próprio corpo para o sacrifício e converter-se em vítima viva do sacrifício vivo e do culto espiritual ( Rm 12, 1 ), não deve danificar sua alma com a vestimenta de uma vida dissipada e carnal, mas fazer leves como uma teia de aranhas, pela natureza dos costumes, todas as vestes da vida, e aproximar de si o que leva ao alto, o que é leve e aéreo, para tecer de novo esta natureza corporal, de forma que, quando ouvirmos a trombeta escatológica, nos encontremos sem carga e leves à voz de quem convoca e, levantados ao ar, sejamos elevados juntamente com o Senhor ( 1Ts 4, 17 ), sem que nenhum peso nos arraste para a terra ( 1Co 15, 42-44 ). Quem conforme a exortação do Salmista fez adelgaçar sua alma como a aranha ( Sal 38, 12 ), se revestiu daquela túnica arejada que vai da cabeça aos pés. Com efeito, a Lei não quer que a virtude esteja mutilada. As campainhas de ouro colocadas entre as romãs designam o esplendor das boas obras. Com efeito, duas são as coisas com as quais se realiza a virtude: com a fé em Deus e com uma vida segunda a consciência. O grande Paulo aplica estas romãs e estas campainhas à vestidura de Timóteo ao dizer que deve ter fé e consciência reta ( 1Tm 1, 19 ). SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 30.
Os nomes dos patriarcas, gravados junto aos ombros, contribuem não pouco a nosso ornamento, pois a vida dos homens se encontra enriquecida com os exemplos de boas obras que eles nos deram. Sobre este ornamento das peças de tela, ainda desce, desde cima, outro ornamento. Os escudos de ouro fixados em cada lado dos ombros, sustentando entre eles um objeto de ouro de forma quadrangular resplandecente com doze pedras colocadas em fila. Quatro filas, cada uma com três pedras. Entre elas não havia nenhuma igual à outra, mas cada uma brilhava com seus resplendores especiais. Esta era a forma destes ornamentos. A INTERPRETAÇÃO dos escudos pendentes dos ombros designa as duas partes da armadura contra o inimigo. Da mesma forma que a virtude está dirigida, como dissemos a pouco, pela fé e pela boa consciência, uma parte e outra é protegida com a defesa dos escudos, e se faz invulnerável ante os dardos do inimigo graças às armas da justiça a direita e a esquerda ( 2Co 6, 7 ). O ornamento quadrado que pende dos escudos de uma e outra parte e no qual, gravados em pedras, estão os patriarcas que dão nome às tribos, designa o véu que protege o coração. O relato nos ensina através das vestes que aquele que afastou o perverso arqueiro com estes escudos, adorna a própria alma com todas as virtudes dos patriarcas, cada um resplandecendo de forma diferente no tecido da virtude. A forma quadrada significa a estabilidade no bem, pois um objeto com esta forma é difícil de desarticular, por estar apoiado uniformemente nos ângulos pela retidão dos lados. As correntinhas com que estes ornamentos se aderem aos braços, parece-me que ensinam que, no que se refere à vida superior, é necessário unir a filosofia prática à que se realiza na contemplação, de forma que o coração se converte em símbolo da contemplação e os braços das obras. A cabeça adornada por diadema significa a coroa destinada aos que viveram retamente. Ela é adornada com o nome que está gravado na lâmina de ouro ( Ex 28, 36 ) com caracteres indizíveis. Quem está revestido com tais ornamentos não leva calçado a fim de não estar sobrecarregado na estrada, nem ser entorpecido com um revestimento de peles mortas, conforme a INTERPRETAÇÃO que já fizemos na exegese do acontecimento da montanha. Com efeito, como poderia o calçado ser ornamento dos pés, se já na primeira iniciação do mistério foi afastado como estorvo para a subida? Aquele que passou através das sucessivas ascensões que consideramos, leva nas mãos as tábuas feitas por Deus e que contêm a Lei divina. Estas se quebram ao chocar-se com a dureza da resistência dos pecadores. A classe de pecado foi a idolatria. Os idólatras haviam esculpido a imagem de um bezerro, que, uma vez destruída por Moisés, foi dissolvida em água que se fez beber os que haviam pecado até que desaparecesse totalmente a matéria que havia sido posta ao serviço da impiedade dos homens ( Ex 32, 15- 20 ). O relato anunciou então, profeticamente, coisas que principalmente aconteceram agora entre nós, em nosso tempo. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 32.
Concorda esta INTERPRETAÇÃO com as coisas já ditas a respeito de Aarão, quando, por ocasião de seu encontro com Moisés, o reconhecemos como o que socorre e protege, o que realiza juntamente com ele os prodígios contra os egípcios. O conhecemos justamente como superior, já que a natureza angélica e incorpórea foi feita antes que a nossa; como irmão, obviamente, pelo parentesco de sua natureza intelectual com nossa natureza intelectual. Existe a objeção de como se pode tomar em seu sentido melhor o encontro de Aarão, que se converteu para os israelitas em servidor da idolatria? Porem, neste lugar, o texto explica claramente o equívoco da “irmandade”, pois o significado desta palavra não é o mesmo em todos os lugares, já que toma este nome em sentidos opostos. Um é o irmão que abate o tirano egípcio, e outro o que faz uma cópia do ídolo para os israelitas, ainda que seja idêntico o nome de ambos. Contra irmãos desta classe impunha Moisés a espada. O que ordena aos demais, sem dúvida o estabelece também para si mesmo. A destruição de um irmão desta classe é a aniquilação do pecado. Com efeito, todo o que faz desaparecer o mal metido dentro de si pela sedução do adversário, este matou em si mesmo o que vivia pelo pecado. Nosso ensinamento em torno disto se confirma ainda mais, se colocarmos a relação de alguns outros elementos do relato com a INTERPRETAÇÃO espiritual. Dissemos, de fato, que foi ordem daquele Aarão que eles se desprendessem de suas arrecadas. O desprendimento destas se converteu na matéria do ídolo ( Ex 32, 2-3 ). Que diremos? Que Moisés havia adornado as orelhas dos israelitas com adorno de arrecadas, que é a Lei, e que o falso irmão, pela desobediência, tira o adorno colocado nas orelhas e faz com ele um ídolo. A primeira entrada do pecado foi o tirar as arrecadas, isto é, a decisão de desobedecer ao preceito. Como julgar a serpente como amiga e vizinha dos primeiros pais, a ela que sugeriu como coisa útil e boa afastar-se do mandado de Deus? Isto é o livrar as orelhas das arrecadas do preceito ( Rm 10, 17 ). Portanto, quem tiver matado tais irmãos, amigos e vizinhos ouvirá da Lei aquela palavra que conta o relato que disse Moisés aos que haviam matado a estes: Cada um de vós consagrou hoje as suas mãos ao Senhor, matando seu filho, e seu irmão, para vos ser dada a benção ( Ex 32, 29 ). Penso que a recordação daqueles que consentiram no pecado se introduziu oportunamente no discurso. Aprendemos assim que as tábuas feitas por Deus, nas quais havia sido gravada da lei divina, caíram na terra das mãos de Moisés e, quebrando-se pela dureza do solo, Moisés as refaz, embora não sejam inteiramente as mesmas, mas só o escrito nelas. Com efeito, tendo tomado as tábuas da matéria daqui de baixo, as apresenta ao poder de quem grava nelas a Lei, e assim atrai de novo a graça levando a Lei em tábuas verdadeiras, ao haver gravado Deus sua palavra na pedra. Guiados por estas coisas, talvez seja possível alcançar alguma inteligência da providência de Deus em nosso favor. Com efeito, se o divino Apóstolo disse a verdade chamando tábuas os corações ( 2Co 3, 3 ), isto é, a parte superior da alma – e sem dúvida diz a verdade aquele que sonda pelo Espírito as profundezas de Deus ( 1Co 2, 10 ) -, pode-se deduzir conseqüentemente que, no princípio, a natureza humana estava sem fraturas e era imortal, moldada pelas mãos divinas e embelezada com os caracteres não escritos da Lei, pois fisicamente estava dentro de nós uma vontade conforme à Lei, no afastamento do mal e no honrar à Divindade. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 34.
Porém depois de aparecer o ruído do pecado, ao que o começo da Escritura chama voz da serpente ( Gn 3, 4 ) e o relato das tábuas chama voz dos que começam um canto na embriaguez ( Ex 32, 18 ), então, as tábuas se quebram ao cair na terra. E o verdadeiro Legislador, aquele de quem Moisés era figura, novamente lavrou para si, de nossa terra, as tábuas da natureza. Pois sua carne, que contem Deus, não foi feita por obra do matrimônio, mas ele mesmo é o escultor da própria carne gravada pelo dedo de Deus. Com efeito, o Espírito Santo desceu sobre a Virgem e a força do Altíssimo a cobriu com sua sombra ( Lc 1, 35 ). Depois deste acontecimento, a natureza foi feita de novo inquebrável, feita imortal pelos caracteres gravados pelo dedo. Dedo é o nome dado muitas vezes pela Escritura ao Espírito Santo ( Ex 8, 19 e Dt 9, 10 e Lc 11, 20 ). Desta forma acontece uma tal transformação de Moisés, tão grande e de tanta glória, que os olhos daqui de baixo não podiam suportar a manifestação daquela glória ( 2Co 3, 12-4, 6 ). Quem tiver sido bem instruído no divino mistério de nossa fé não desconhecerá como a INTERPRETAÇÃO espiritual concorda com o relato. Com efeito, aquele que restaurou nossa natureza destroçada – pelo já dito, sabes bem quem é aquele que curou nossas roturas -, depois de haver elevado novamente a tábua quebrada de nossa natureza a sua primitiva beleza, havendo embelezado com o dedo de Deus, como dissemos, não é já suportável à vista dos indignos, pois pela super abundância de sua glória é já inacessível a quem o olha. Em verdade, quando vier em sua glória, como diz o Evangelho, e todos os anjos com Ele ( Mc 8, 38 ), a duras penas os justos poderão contemplar seu aspecto. Quanto ao que é injusto e ao que pertence à seita judia, como diz Isaías, permanecerá incapaz desta visão. Que desapareça o ímpio – diz – para que não veja a glória do Senhor ( Is 26, 11 ). Seguindo a concatenação das coisas que examinamos, nos deixamos levar à formulação de uma hipótese de INTERPRETAÇÃO espiritual desta passagem. Voltemos à questão que havíamos proposto: como aquele que viu Deus claramente nestas teofanías, o atestam a palavra divina, quando diz face a face, como quem fala a um amigo ( Ex 33, 11 e 1Co 13, 12 ), ao chegar aqui, como se nunca tivesse alcançado o que cremos que alcançou pelo testemunho da Escritura, pede a Deus que lhe apareça, como se nunca tivesse visto Aquele que lhe tem aparecido continuamente. A voz do alto acede agora ao desejo do que pede e não lhe recusa a entrega desta graça, porem novamente o leva à desesperança, ao deixar claro que o que ele busca é inalcançável à natureza humana. Apesar disto, Deus diz que há um lugar junto a ele, e nesse lugar uma pedra, e na pedra, uma fenda ( Ex 33, 21-23 ) na qual manda que Moisés se coloque. Depois Deus põe a mão na boca daquela fenda e, passando adiante, o chama. Ao ser chamado, Moisés sai fora da fenda, vê as costas de quem o chamou, e assim parece que viu o procurado, pois se cumpre a promessa da voz divina. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 35.
Se nos apegarmos à letra, o sentido destas coisas não só permanecerá obscuro a quem o examina, como nem sequer estará livre de uma concepção inverossímil de Deus. Com efeito, parte anterior e parte posterior existem só nas coisas que têm forma, e toda forma é limite de um corpo. Portanto, quem imagina uma figura delimitando Deus, não pensará que Ele está livre de uma natureza corporal. Pois bem, todo corpo é evidentemente composto. O composto é constituído pela concorrência de elementos heterogêneos. Ninguém diria que o composto é indissolúvel. O que se pode dissolver não pode ser imortal. De fato, a corrupção é a dissolução do que é composto. Se tomarmos ao pé da letra as costas de Deus, por via de conseqüência seremos levados necessariamente a um absurdo. De fato, diante e atrás só se dão no que tem forma, e a forma só se dá no que tem corpo. E este, por sua própria natureza, pode ser dividido, posto que todo o composto pode dividir-se. O que pode ser dividido não pode ser imortal. Portanto, quem é escravo da letra pensará como conseqüência que a Divindade está submetida à corrupção. E sem dúvida, Deus é imortal de incorruptível. Mas então, que INTERPRETAÇÃO alem do sentido literal será coerente com a letra? Se uma parte nos obriga, no contexto do discurso, a buscar outra INTERPRETAÇÃO das palavras escritas, sem dúvida será conveniente fazer o mesmo com relação ao todo. O que entendemos de uma parte, isso mesmo havemos de tomar necessariamente em relação ao todo, pois não existe um todo se não está composto de partes. Portanto, o lugar perto de Deus, e a pedra neste lugar, e nela o lugar que se chama fenda, e a entrada de Moisés ali, e o estender da mão de Deus até a boca da fenda, e sua passagem, e a chamada, e depois disto a contemplação das costas, tudo isto será considerado de forma mais adequada se seguirmos a norma da INTERPRETAÇÃO espiritual. Qual é o significado? Que da mesma forma que os corpos pesados, se algo recebe impulso em um plano inclinado, ainda que nada o empurre depois deste primeiro movimento, se não há nada que corte o impulso com um obstáculo, são empurrados por si mesmos para baixo com força pela ladeira enquanto o plano permanecer inclinado costa abaixo; assim de forma contrária, a alma que se liberta da paixão terrena, se volta leve e veloz, começando a voar desde baixo até às coisas de cima, até o alto. E como nada acima corta seu impulso, pois a natureza do bem atrai a si a quem levanta os olhos para ela, a alma sempre se eleva alem de si mesma, em tenção pelo desejo das coisas celestiais, como diz o Apóstolo, até às coisas que estão adiante ( Flp 3, 13 ), e elevará seu vôo cada vez mais alto. Com efeito, graças ao já conseguido, deseja não renunciar ao que está acima e torna incessante seu impulso às coisas de cima renovando sempre, com o já conseguido, a tenção para o vôo. De fato, o trabalhar da virtude alimenta sua força no cansaço, já que sua tenção não diminui pelo esforço, mas aumenta. Por esta razão dizemos que o grande Moisés, apesar de fazer-se cada dia maior, nunca se deteve no caminho para o alto, nem impôs a si mesmo algum limite até o cume, mas que uma vez posto o pé na escada em cujo cimo estava Deus ( Gn 28, 12 ), como diz Jacob, subiu ininterruptamente ao nível superior, sem cessar nunca de subir, porque sempre há um degrau mais alto do que aquele a que já se chegou. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 36.
Afirma-se que a Divindade é o Bem essencial. Pois bem, o que tem uma natureza distinta do bem é alheio ao bem, e o que é alheio ao bem pertence à natureza do mal. Demonstra-se que o continente é maior que o contido. Segue-se necessariamente que os que julgam que a Divindade está contida em um limite, devem admitir também que está abarcada pelo mal. Sendo evidentemente menor a natureza do contido que a do continente, segue-se a superioridade do mais vasto. Portanto quem encerra a Divindade em um limite estabelece que o bem está dominada por seu contrário. Porem isto é absurdo. Não se pensará, pois, em nenhum limite da natureza infinita. O que não está limitado não tem uma natureza que possa ser compreendida. Eis aqui porque todo o desejo do bem, que atrai para aquela ascensão, cresce constantemente junto com a trajetória de quem se apressa para o bem. Isto é ver realmente a Deus: não encontrar jamais a saciedade do desejo. É totalmente inevitável que quem vir se inflame em desejos de ver ainda mais, precisamente por causa daquelas coisas que é possível ver. E desta forma nenhum limite interromperá o progresso na ascensão a Deus, por não haver limite no bm, nem ser interrompido por nenhuma fartura o aumento do desejo do bem. Qual é aquele lugar perto de Deus? Que é a pedra? E qual é novamente a fenda na pedra? Que é a mão de Deus que tapa a fenda da pedra? Que é a passagem de Deus? Que são suas costas, cuja visão promete Deus a Moisés quando pedia para ver sua face? É necessário que cada um destes dons seja verdadeiramente grande e digno da magnificência do doador, ao ponto de julgar uma promessa mais esplêndida e elevada que todas as teofanias outorgadas já ao grande servidor. Porem, como pode alguém deduzir destas palavras acima com que Moisés pede subir depois de tantas ascensões, e a cuja subida Aquele que faz cooperar todas as coisas para o bem de quem ama a Deus ( Rm 8, 28 ) conduz dizendo: Eis aqui um lugar junto de mim ( Ex 33, 21 )? Eis aqui uma INTERPRETAÇÃO que se harmoniza facilmente com as coisas que já consideramos. Ao falar do lugar, não delimita quantitativamente o que lhe mostra, pois não existe medida do que carece de quantidade, mas conduz o ouvinte ao infinito ilimitado por meio da consideração do limitado por uma medida. O relato parece significar isto: Posto que o desejo te lança ao que está adiante e não tens nenhuma fartura em tua corrida, e o bem não tem limite algum, mas o desejo se orienta sempre àquilo que é ainda maior, há tanto lugar junto a mim, que quem corre nele jamais poderá alcançar o final da corrida. Porem, de outro ponto de vista, a corrida é quietude. Coloca-te – diz – sobre a fenda ( Ex 33, 21 ). SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 38.
Moisés novamente inunda o deserto para eles por meio da pedra ( Nm 20, 2-11 e Ex 17, 1-7 ). Este relato, em sua INTERPRETAÇÃO espiritual, nos ensina como é o sacramento da penitência. Com efeito, aqueles que depois de haver experimentado a água da pedra se voltam para o ventre, a carne e os prazeres egípcios, são castigados com a ânsia da participação dos bens. Porem graças ao arrependimento lhes é possível encontrar de novo a rocha que abandonaram, e abrir de novo o veio de água e saciar-se novamente da fonte. A pedra o outorga isto àquele Moisés que acreditou que a exploração de Josué era mais verdadeira que a de seus adversários, que via o ramo de uvas ( Jo 15, 1 ) pendente em nosso favor, e que de novo fez com a vara que a pedra manasse para eles. O povo ainda não havia aprendido a seguir as pegadas da grandeza de Moisés. Ainda se deixa arrastar para baixo, para os desejos servis, e se inclina aos prazeres egípcios. O relato mostra através destas coisas que a natureza humana é propensa a esta paixão acima de todas as demais, capaz de sucumbir à enfermidade por mil caminhos. Moisés, como médico que impede com sua arte que o mal vença sempre, não permite que a enfermidade predomine sobre eles a ponto de causar a morte ( Nm 21, 6-9 ). Posto que a concupiscência de coisas absurdas engendrou serpentes cuja mordida era portadora de morte ao introduzir o veneno em quem era alcançado por seus dentes, o grande Legislador neutralizou com a imagem de uma serpente a força das feras verdadeiras. Talvez seja tempo de revelar mais claramente o enigma. Existe uma só proteção contra estas perversas paixões: a purificação de nossas almas que tem lugar através do mistério da piedade. Entre as coisas que cremos no mistério, é ponto capital a fé na Paixão Daquele que por nós aceitou o padecimento. A cruz, com efeito, é um padecimento; quem olha para ela, como explica o relato, não é atingido pelo veneno da concupiscência ( Nm 21, 9 e Jo 3, 15 ). Olhar para a cruz não é outra coisa que converter a vida inteira de cada um em crucificação e morte ao mundo ( Ga 6, 14 ), inamovível por qualquer pecado, crucificando verdadeiramente as próprias carnes com o temor de Deus, como diz o profeta ( Sal 119, 120 ). O cravo que sujeita a carne é a continência. E posto que a concupiscência de coisas absurdas faz sair da terra serpentes portadoras de morte, – todo rebento da concupiscência é uma serpente-, a Lei nos mostra o que se revela no madeiro. Este é figura de serpente, porem não é serpente, como também disse o grande Paulo: Em semelhança da carne de pecado ( Rm 8, 3 ). A verdadeira serpente é o pecado; quem marcha junto do pecado se reveste da natureza da serpente. Assim pois, o homem é libertado do pecado por aquele que tomou sobre si a aparência de pecado e se fez igual a nós que nos havíamos transformado em imagem da serpente. Por ele é evitada a morte proveniente das mordidas, porem não são aniquiladas as feras. Chamo feras à concupiscência. Com efeito, a má morte dos pecadores não tem força contra aqueles que olham para a cruz, ainda que a concupiscência contra o espírito, que está metida dentro da carne, não tenha sido destruída de tudo ( Ga 5, 16-17 ). Também os crentes se deixam sentir muitas vezes as mordidas da concupiscência, porem quem olha para aquele que foi levantado no madeiro evita a paixão, dissolvendo o veneno com o temor do preceito, como se fosse um antídoto. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 43.
O Senhor no Evangelho, com sua própria voz, para que nos mantivéssemos afastados deste mal, cortou o caminho, como raiz da paixão, da concupiscência que nasce do olhar, quando ensina que quem admite a paixão com a vista, abre, contra si mesmo, a porta da enfermidade ( Mt 5, 28 ). As paixões perversas, como a peste, uma vez que tiverem dominado os pontos chaves, só cessam com a morte. Penso que não é necessário alargar o discurso apresentando ao leitor toda a vida de Moisés como exemplo de virtude. Com efeito, para quem se esforça por uma vida mais elevada, as coisas que já foram ditas servirão de não pequeno alimento para a verdadeira filosofia, enquanto que quem se encontra sem forças para os trabalhos da virtude não obteriam maior proveito com um escrito mais prolixo. Sem dúvida, para que não se esqueça a definição dada no começo na qual se baseava nosso discurso – que a vida perfeita é aquela à qual nenhum limite impede avançar, e que o constante progresso da vida ao melhor é para a alma o caminho para a perfeição – talvez seja bom que, levando o discurso até o final da vida de Moisés, se demonstre que a definição de perfeição que foi dada está certa. Com efeito, Moisés havendo se elevado durante toda a vida com estas ascensões, não duvidou em elevar-se sempre sobre si mesmo, de forma – penso – que sua vida perece em todas as coisas com a da águia, mais celestial e elevada que as nuvens, voando em círculos na abóbada celeste da ascensão espiritual. Nasceu quando entre os egípcios se tinha como um delito que nascesse um hebreu. Como o tirano castigasse então com a lei, ele foi superior à lei que dava morte, pois foi salvo primeiro por seus progenitores e, depois, pelos que haviam estabelecido a lei. E aqueles que haviam procurado sua morte com a lei, esses não só tomaram sobre si o cuidado de sua vida mas também o de uma educação bem planejada, conduzindo o menino através de toda a sabedoria. Depois disto, faz-se superior à honra humana e mais elevado que a dignidade régia, julgando que era mais forte e mais régio ter, em vez de servidores e da pompa real, a guarda da virtude e adornar-se com sua beleza. Depois disto, salva seu compatriota e fere com um golpe o egípcio, os quais, considerando-os à luz da INTERPRETAÇÃO espiritual, entendemos como o inimigo e o amigo da alma. Imediatamente faz do silêncio mestre de elevados ensinamentos, e desta forma ilumina seu espírito com a luz que resplandece da sarça. E então se apressa por fazer seus compatriotas partícipes dos bens que lhe foram dados por Deus. Com isto deu uma mostra dupla de sua virtude: com golpes variados e sucessivos mostrou, frente aos inimigos, sua força defensiva e, a seus compatriotas, sua força benfazeja. Conduz a pé através do mar este povo, sem haver preparado para si uma frota de navios, mas aprovisionando-os para a navegação com a fé como se fosse um navio; faz do abismo terra firme para os hebreus, e da terra firme, mar para os egípcios. Então os cantos de vitória. É guiado pela coluna de nuvem. É iluminado pelo fogo do céu. Prepara uma mesa com alimentos do alto. Sacia a sede com água da rocha. Eleva as mãos para a destruição dos amalecitas. Sobe à montanha. Entra nas trevas. Ouve a trombeta. Aproxima-se da natureza divina. Entra dentro do tabernáculo divino. Organiza o sacerdócio. Constrói a tenda. Regula a vida com leis. Leva a bom termo as últimas lutas da forma que explicamos. Para culminar suas obras retas, castigou a impureza por meio do sacerdócio: isto é o que significa a cólera que, através de Finéias, se levantou contra a paixão. Depois destas coisas, se aproxima da montanha do descanso. Não caminha da terra daqui de baixo até a que, em razão da promessa, olha todo o povo. Ele, que se esforçou por viver do alimento que mana do céu, não experimenta mais um alimento terreno, mas elevado ao alto, acima mesmo da montanha, como um hábil escultor que trabalha a estátua inteira de sua vida, ao término de seu trabalho, pôs fim, sem coroa, à obra. Que diz o relato sobre isto? Que Moisés morreu, servo do Senhor segundo a palavra de Deus, e que ninguém conheceu seu sepulcro; que seus olhos não se apagaram, nem seu rosto se corrompeu ( Dt 34, 5-7 ). Aprendemos que, depois de haver passado por tantos trabalhos, é considerado digno deste nome sublime, a ponto de ser chamado servidor de Deus, que é o mesmo que dizer que foi superior a tudo. Com efeito, nada serviria a Deus se não houvesse chegado a ser superior a tudo o que está no mundo. Para ele, este é o final da vida virtuosa dirigida pela palavra de Deus. A história a chama morte, morte vivente, que o sepulcro não é capaz de conter, sobre a qual não se levanta um túmulo, que não leva a cegueira aos olhos, nem a corrupção ao rosto. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 47.
Nosso breve discurso te ofereceu, homem de Deus, estas coisas sobre a perfeição da vida virtuosa, apresentando-te a vida do grande Moisés como modelo evidente de bondade, para que cada um de nós, imitando suas ações, copie em si mesmo os traços da beleza que nos foi mostrada. E de que Moisés tenha conseguido realizar a perfeição que é possível, que testemunho mais digno de fé poderíamos encontrar senão a palavra divina, quando diz: Eu te conheço pelo teu nome e tu achaste graça diante de mim ( Ex 33, 12 e 17 )? Também o fato de que seja chamado amigo de Deus pelo próprio Deus ( Ex 33, 11 ), e o fato de que tendo escolhido perecer junto com os demais se Deus não se aplacasse com benevolência daquilo que o havia ofendido, Deus deteve sua ira contra os israelitas ao modificar seu próprio juizo para não entristecer o amigo ( Ex 32, 7-14 ). Todos estes testemunhos são uma clara demonstração de que a vida de Moisés alcançou o limite mais elevado da perfeição. Posto que investigávamos qual é a perfeição da vida virtuosa e, pelo que já dissemos, descobrimos esta perfeição, é hora, nobre homem, de que olhes para o modelo e, aplicando a tua vida quanto temos contemplado nos acontecimentos históricos com INTERPRETAÇÃO espiritual te faças ser conhecido de Deus ( Ex 33, 12 e 17 ) e assim te convertas em seu amigo. A perfeição consiste verdadeiramente nisto: em afastar-se da vida de pecado não por temor servil do castigo, e em fazer o bem não pela esperança do prêmio, negociando com a vida virtuosa com disposição e ânimo interessado e mercantilista, mas consiste em que, olhando mais alem de todos os bens que nos estão preparados em esperança segundo a promessa, não tenhamos como temível mais que ser repudiados da amizade de Deus, e não julguemos respeitável e amável para nós senão o chegar a ser amigos de Deus. Isto é, em minha opinião, a perfeição da vida. Encontrarás isto quando tua mente se elevar às coisas mais altas e divinas, sei bem que encontrarás muitas. Isto servirá claramente de proveito para todos. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 48.