BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI
Excertos de do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
Interpretação da Gnose (XI,1)
Esta homilia, bastante mal conservada, parece seguir a ordenação do culto, que previa uma leitura tirada do Evangelho e outra extraída do Apóstolo. Assim, Interpretação da Gnose, p. 9,21-14,15, parece interpretar o ensinamento e a paixão do Salvador, enquanto as p. 14,15-21,34 apresentam a Igreja como o Corpo de Cristo, a partir de 1Cor, Rm, Cl e Fl.
O autor do texto parece se defrontar com uma comunidade dividida, roída pelo ciúme e recusando a partilha dos dons espirituais. Assim, ele mostra o humilde rebaixamento de Cristo, que veio trazer o amor do Pai aos “pequenos irmãos” e daí deduz a necessidade da partilha:
Aliás, quando seu grande Filho foi enviado a seus pequenos irmãos, ele propagou externamente o desígnio do Pai e o proclamou diante do Todo. E anulou o antigo laço da dívida, a condenação. E eis aqui esse desígnio: aqueles que se reconhecem a si mesmos como estando reduzidos à escravidão, condenados em Adão, foram arrancados à morte, receberam perdão por seus pecados e foram salvos por (…) (p. 14,28-38).
Tendo um irmão que olha por nós, como também ele, glorifica o Um que nos deu a graça. Aliás, é conveniente para (cada qual) que amemos o (dom) recebido de (Deus e) que não sejamos ciumentos, pois sabemos que aquele que é ciumento coloca obstáculo em seu próprio caminho, já que somente se aniquila a si próprio com o dom, ignorando Deus. Ele deve rejubilar-se, ficar contente e ter piedade e generosidade (p. 15,24-36).
A metáfora paulina do corpo e dos membros (1Cor 12) permite afirmar vigorosamente a unicidade do corpo da Igreja por sobre a multiplicidade e a riqueza dos dons espirituais:
Agora, os membros não podem tornar-se todos unicamente pés, unicamente olhos (ou unicamente) mãos, pois não podem viver sozinhos, senão estarão destinados a morrer. Assim, por que amais os membros mortos (em lugar dos) vivos? É que vós sois ignorantes quando os odiais ou quando tendes ciúme deles, (não recebendo) por isso a graça que neles habita, pois não estais predispostos à bondade do coração. Vós deveis dar graças por vossos membros e pedir para vos tornardes tão grandes quanto a graça que vos foi concedida. Pois a Palavra é rica, generosa e benevolente (p. 17,18-36).
Tal como se apresenta, este tratado parece ser comentário tardio de teses e imagens paulinas. No entanto, o texto é gnóstico pelo dualismo latente entre os invejosos e os odiosos, semelhantes ao demiurgo ciumento, e as testemunhas do amor do Pai, os verdadeiros gnósticos.