Intelecto Vontade Coração

PSICOLOGIA MEDIEVAL
INTELECTO, VONTADE, CORAÇÃO, PROBLEMA DA PRIORIDADE
Excertos do glossário do tradutor, Enio Paulo Giachini, da ótima versão portuguesa dos “Sermões Alemães” de Mestre Eckhart

Nos manuais da história da filosofia medieval há controvérsia sobre a prioridade entre as três faculdades da alma, na realização do contato do homem com Deus. Há ali diferença entre a escola tomista (prioridade do Intelecto) e as escolas franciscana boaventuriana (prioridade do sentimento-coração) e escotista (prioridade da vontade). Pelos textos dos sermões alemães de Eckhart, no entanto, se torna um tanto questionável se esse tipo de abordagem das “questões medievais” a partir de uma tal classificação, faz jus ao “inter-esse” e à busca toda própria de Mestre Eckhart. Pois uma tal classificação parte da pressuposição de que intelecto, vontade e coração significam simplesmente as faculdades do homem de conhecer, querer e sentir, seja na acepção psicológica, seja na “gnoseológica”, mormente quando se fala do intelecto ou conhecimento. Aqui em Eckhart, os termos como intelecto (Vernunft, Vernünfticheit), razão (Verstand), intelectual, racional, conhecer, conhecimento, indicam primeira e principalmente o ser-recepção da filiação divina na identificação com o Filho: Conhecer é co-nascer filho no e com o Filho Unigênito do Pai. Portanto, aqui receber é ser. Nesse ser há infinitamente mais ação, mais “vontade”, mais “amor” e mais “intimidade” do que um conhecer, um saber “epistemológico” que é um captar representativo de uma realidade, sem participar no seu ser, ou um “amar” psicológico que é uma espécie de ação pela qual eu, seguindo uma representação minha da realidade (aqui Deus), entro nessa “realidade”, digamos virtual, segundo a minha imagem e semelhança. Um tal operar e um tal devir são, provavelmente, para Eckhart, como operar e devir de madeira ensopada na água que ao ser atingida pelo fogo da divina paixão, se satisfaz com fumaças e vapores levantados pela rejeição do fogo, por não ser igual ao fogo.

Eckhart, por exemplo, no sermão 26, fala do Intelecto como a mais alta realização das forças pertencentes à parte suprema da alma, a saber, vontade e intelecto. Vontade e intelecto (Vernünfticheit), como forças efluentes da parte suprema da alma, não têm muito a ver com a nossa maneira psico-antropológica usual de entender vontade e intelecto. Por isso, na discussão tomistas versus escotistas (intelecto versus vontade), tomistas versus boaventurianos (cabeça versus coração) como nós muitas vezes abordamos a questão numa compreensão superficial, ela adquire um nível de penetração pouco adequado. Em Eckhart é necessário sempre de novo observar que a questão de intelecto e vontade diz respeito à suprema parte da alma, à centelha, à luz divina na sua “estruturação” interna. Como os termos como razão e intelecto para nós hodiernos já estão contaminados pela compreensão psico-antropológica usual, traduzir vernünfticheit ou mesmo Vernunft é difícil. No latim haveria o termo mens para indicar o intelecto enquanto força que emana da centelha, como a força “superior” na estruturação interna da dinâmica da própria centelha. Mas em português mente e mental implicam o mesmo problema da perda do sentido mais vigorosamente especulativo desses termos. Na orientação dessa questão da prioridade entre intelecto e vontade, é necessário com precisão guardar a diferença de acuidade de observação que a reflexão especulativa de Eckhart mantém, quando fala do relacionamento de intelecto e vontade como de momentos constitutivos estruturais da centelha, portanto quando fala de intelecto e vontade e de seu relacionamento mútuo, referidos à face superior da alma; e quando fala do relacionamento de intelecto e vontade e de seu relacionamento mútuo, referidos à face inferior da alma. Se agora tomo o termo intelecto referido à face inferior da alma que olha um tanto para baixo e dirige os sentidos e identifico sem mais com intelecto referido à face superior da alma que contempla todo o tempo a Deus, e, ainda por cima dessa generalização neutra dos termos, introduzo a questão do relacionamento intelecto versus vontade ou sentimento no nível dos problemas psico-antropológicos, então se torna muito difícil entender a Eckhart quando ele fala de prioridade do intelecto sobre a vontade.