Ícones de São Jorge

ICONOGRAFIA – ÍCONES DE SÃO JORGE

Richard Temple

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No centro do ícone está São Jorge; é a figura central das ideias latentes no ícone assim como é o centro da composição. O relacionamento entre estas ideias e a composição é tal que nenhuma característica da pintura é sem sua especial significância; ao mesmo tempo a significação interior pode ser interpretada através do estudo da composição.

O ícone apresenta diante de nós um diagrama de ordens de forças na forma de uma escada do céu ao inferno. Entre estes dois opostos cósmicos, o drama é encenado: São Jorge, montado em cavalo branco, lança o dragão. No fundo está um céu vermelho e montanhoso, uma paisagem deserta.

O evento é apresentado em uma disposição distante da “realidade”, ou seja, da realidade externa que percebemos com os sentidos. Os elementos narrativos têm um sinal de significância somente, nada há na figura que possa ser tomado por uma apresentação literal ou natural de si mesma. As figuras, lançando nenhuma sombra e dispostas em uma paisagem lunar, dão a cena uma qualidade não terrestre. Mas nada há de absurdo sobre o quadro, nossos olhos imediatamente aceitam sua beleza e a desproporção entre as figuras e a paisagem. Não há técnicas aqui para recriar efeitos naturais: nenhuma perspectiva, nenhuma luz e sombra, nenhuma anatomia. A escala, incluindo céu e inferno, é logicamente inconcebível. No entanto, nossa imaginação está feliz de entrar este “outro mundo” no qual o artista nos conduz. Não é o mundo de realidades percebidas pelos sentidos mas o mundo da realidade cósmica e espiritual, o mundo invisível de uma luta na vida interior do homem (homem interior): “combate interior” (agon).

Um cavalo representa força e poder, mas um homem cavalgando um cavalo é um símbolo tradicional de força e poder sob controle. São Jorge é a figura com quem nos identificamos; ele é o homem ideal; luta pela supremacia sobre as força inferiores. As várias características da estória são dispostas em uma ordem específica, uma sobre a outra, de modo que vemos claramente a escada de forças descendentes entre o superior e o inferior. Entre estes dois polos está São Jorge, que nem pertence ao mundo inferior nem ao superior, mas que mantém um equilíbrio entre os dois. Começamos a ver que a pintura não é uma quadro narrativo de uma homem matando um animal, mas um comentário, por implicação simbólica, sobre as forças superiores e inferiores que agem no mundo espiritual, e como é papel do homem manter um equilíbrio entre as duas.

Que forças são estas? Podem não ser simplesmente designadas como bem e mal? Referenciando o ícone demonstra quão sutil é a compreensão do artista do que ingenuamente tendemos a ver como nada mais que um conto folclórico moral. Uma abordagem simplista designaria o dragão como mal mas não cavalo. No entanto ambos, cavalo e dragão, estão em situação similar; ambos estão sob o controle do santo, o cavalo, através das rédeas em sua mão esquerda, e o dragão através da lança em sua direita. Cada um simboliza um “poder” que é dominado pelo santo. Além do mais, o dragão não tem uma aparência de maligno; ao invés, parece condescendente ao santo como se reconhecendo sua superioridade. Para o pintor não há tal coisa como bem e mal; há somente forças — níveis de forças que devem estar em um correto relacionamento entre si na harmonia do universo. Assim São Jorge não mata o dragão mas o prende com a lança ao solo, demonstrando que o domina (mas não o destrói), assim com domina o cavalo, sendo que neste caso usa sua própria força e poder. São Jorge, assim levando a cabo esta trabalho cósmico — que na prática é trabalho espiritual — nos mostra, por seu exemplo, o sentido do homem e seu verdadeiro “lugar” no universo. O santo, por sua vez, está sob as influências celestiais acima dele. Elas descem via a escada cósmica na qual ele já se mantém no quinto degrau.

A escada é uma oitava de sete estágios distintos ou degraus que tem dois começos. Um, que desce, começa com Deus — representado pela mão bendita — sob a qual estão as esferas celestiais, ou reino divino, que está representado pelo quadrante no canto superior direito. Debaixo disto o firmamento, ou mundo celestial, é indicado pelo fundo vermelho. assim vem o santo sob o qual estão as forças que ele dominou. O outro, que ascende, começa com o homem, quer dizer, homem ordinário, que ainda não submeteu o “dragão” nem dominou o “cavalo” nele mesmo. Ele pode ser dito estar não mais alto que a caverna dentro da qual, através de Adão, caiu e da qual, através de Cristo, ele é elevado.

Deus
As esferas celestiais
o Mundo celestial
O santo (Homem)
O cavalo
O dragão
O nível da terra
A caverna ou as profundezas subterrâneas

Os estágios centrais significam a transição onde um homem se torna o que a Philokalia chama “inteligente” (i.é espiritual). Só então, de acordo com Santo Antão, pode ele propriamente ser chamado um homem. Ele nasce, como os Ícones da Natividade testificam, no nível da escuridão e deve ascender, por subjugar o dragão e o cavalo, até o nível onde pode começar seu trabalho ideal.

É interessante notar que não há violência na ação como apresentada no ícone; ódio e medo não são expressos entre os combatentes como seriam em pinturas naturalísticas ocidentais. Em um ícone seria impossível demonstrar tais qualidades posto que o mundo que o artista representa não é o mundo externo, natural, mas o mundo espiritual que ele “vê’ dentro dele mesmo. Todos os elementos que constituem o ícone: santo, cavalo, dragão, assim como a caverna escura e o mundo superior e Deus — tudo isto deve ser encontrado dentro de si mesmo através de métodos, diligentemente a atentivamente aplicados, que os mestres espirituais da Philokalia descrevem. O ícone — sempre a imagem da vida espiritual e nunca o quadro da vida natural — mostra que uma vez alcançado o justo equilíbrio cada carácter expressa somente sua aceitação.

A ideia de equilíbrio, tão completamente compreendida pelo pintor, é dada expressão tanto na cor e no desenho. Tudo é harmonia e equilíbrio. O salto rápido do cavalo preenche a diagonal ascendente da esquerda para direita, mas este movimento é rapidamente contido pelo diagonal oposta da lança. Equilíbrio estático é também dado pela divisão do solo vermelho em três áreas arrumada triangularmente. É possível ver também um sistema infinitamente variado de motivos e contramotivos tais como a curva delicada dos quadris do cavalo e o do pescoço que são equilibrados por aqueles do dragão, ou a curva do halo do santo pela curva da cela. Onde quer que se olhe na pintura, cada forma, cada linha tem seu eco correspondente. O efeito, como em uma paisagem refletida na água calma, é de paz e quietude.

E assim a impressão da cena, que tem lugar em um mundo distante da esfera de violência e ódio de todo dia, nos dá uma sentimento de amor, silêncio e quietude. A face de São Jorge não está contorcida de fúria mas, ao contrário, irradia luz e alegria espiritual.

O ícone de São Jorge é uma imagem profundamente misteriosa que merece uma olhar para o que é normalmente não visto — o “combate espiritual” ou “guerra secreta” dos místicos. O guerreiro é o homem que, tendo estabelecido atenção e silêncio dentro de si mesmo, doma sua natureza terrestre a fim de se torna o recipiente das influências divinas. Quando este estado é alcançado o homem se torna o universo em miniatura. Ele transforma seu caos interior em cosmos.

Se dispomos o esquema do fundo do ícono vemos de pronto que corresponde com a topografia simbólica de Cosmas Indicopleustes. O eixo central girou da vertical para a diagonal mas as principais características da “topografia” permanecem. Emanações da mão de Deus contidas dentro de círculos concêntricos estão, como esperaríamos, na parte de cima; somente a proporção mudou em comparação com a versão do século VI. Uma imagem mais verdadeira aparece quando estendemos o círculo. O firmamento, ou as regiões celestiais, é representado pelo fundo vermelho enquanto a terra permanece como uma montanha. A caverna escura está na parte mais baixa do ícone e corresponde ao Reino da Escuridão.

O ícone de São Jorge é um comentário sobre o significado cósmico do guerreiro espiritual. Compreendemos isto se apreendemos inteiramente o que é a guerra espiritual. A Philokalia da necessidade de atenção a fim de alcançar um estado de completo desprendimento de quaisquer movimentos de desejo ou de pensamento. Isto não significa ausência de desejos e pensamentos e o místico deve descobrir este estado enquanto cercado pelas circunstâncias de sua vida ordinária mental e emocional. As reações humanas normais às pessoas e aos eventos da vida não podem ser descartadas assim como a vida ele mesma não pode ser descartada. Mas, para o guerreiro espiritual, é possível deixar tais eventos continuar enquanto permanecendo independente deles. Em outras palavras ele está interiormente separado; sua natureza divina não está suja por sua natureza humana, no entanto ambas coexistem nele.