Nem Eckhart nem Heidegger falam de “homem”. Para ambos os pensadores, existe algo mais profundo dentro do homem, algo que não é meramente humano, que constitui a verdadeira dignidade e valor do homem. Para ambos, existe um terreno oculto onde reside o ser mais verdadeiro e a natureza essencial (Wesen) do homem. “Aqui está o homem, um verdadeiro homem”, escreve Eckhart (Q, 215,7/Serm., 225). Em suas Palestras de Instrução, Eckhart diz:
Não pense em basear a santidade no fazer; deveríamos antes basear a santidade no ser. Pois as obras não nos tornam santos, mas devemos tornar as obras santas. (Q. 57,15-8/Cl., 67)
A santidade não tem a ver com a nossa ação, mas com a base da nossa ação, o nosso ser. Os verdadeiramente grandes são grandes em seu ser:
Nada resultará de quaisquer obras que eles façam que não sejam excelentes em ser. (Q, 57,22-3/Cl., 67)
É no interior da alma, no próprio ser (Wesen) da alma, que a verdadeira grandeza pode ser encontrada. Heidegger destaca este texto de Meister Eckhart em “Die Kehre”, citando-o no alto alemão médio. Ele então acrescenta este comentário:
Consideramos que o grande ser (Wesen) do homem consiste no fato de pertencer à essência (Wesen) do Ser, de ser necessário e utilizado por este último para preservar (wahren) a essência do Ser em sua verdade (Wahrheit). (K, 39/7)
O próprio Heidegger traça assim o primeiro ponto de comparação para nós. Ele, como Meister Eckhart, encontra no homem algo mais profundo do que seu comércio diário com as coisas ao seu redor. Este ser primordial do homem é chamado tanto por Heidegger quanto por Eckhart de “Wesen” do homem. Assim como para Eckhart, também para Heidegger, Wesen tem um sentido verbal. Eckhart geralmente traduzia o latim esse pelo alemão médio-alto wesen (ele frequentemente empregava wesenheit e wesunge como traduções de essentia) (cf. Q, “Anrnerkungen”, 538). Este termo significa para ele o “ser essencial”, o “ser primordial” de uma coisa, aquilo pelo qual uma coisa é o que é. Heidegger retoma esse sentido original da palavra e o utiliza para se referir ao próprio Ser de um ente.
Ora, em ambos os casos, o próprio ser do homem, que não é nada antropomórfico, reside na sua relação com algo que, por falta de palavra melhor, dizemos “transcende” o homem. O ser essencial do homem não se encontra em sua relação com os entes, mas em sua relação com aquilo que transcende os entes, isto é, com o Ser. Assim, para Eckhart, a essência da alma é a base da alma, que é atemporal, sem nome e incriada. Esta base é um “lugar” onde Deus e a alma se unem, onde o ser transcendente de Deus acontece no homem. O “homem verdadeiro” é o homem que “deixa Deus ser Deus”, que fornece uma morada que pode abrigar e preservar o nascimento do Filho. Assim também em Heidegger, o ser essencial do homem repousa em algo mais radical do que o homem “a questão do ser essencial (Wesen) do homem não é uma questão sobre o homem” (GA13 Gelassenheit. 2. Auflage. Pfullingen: Verlag Günther Neske, 1960, 31/58). Pois o grande ser do homem deve ser uma relação com o próprio Ser para fornecer um “lugar” (Ortschaft, HB, 77/204; Stelle, WM, 13/213) no qual o próprio Ser pode acontecer. O grande ser do homem é fornecer um abrigo e uma reserva para o ser da verdade.
Eckhart e Heidegger não usam com frequência a palavra “homem”, ao invés falam em “Dasein”, a “pequena centelha”, o “pequeno castelo”, a “base da alma”. Isto se dá não por conta de um desejo de inventividade terminológica, mas a partir do que Heidegger chamaria de tentativa de acompanhar o jogo da linguagem. Pois esta dimensão mais radical do ser do homem é algo que tende continuamente a desaparecer de vista e a ser esquecida. Quando falamos de “homem”, a linguagem nos acostuma imperceptivelmente a pensar que tudo o que “existe” no homem é algo humano, algo “antropológico”. Heidegger e Eckhart subvertem esta tendência para o significado mais fácil e mais superficial da palavra “homem”, evitando a palavra e usando em seu lugar uma linguagem que não ocultará, mas revelará o que “há” (west) no homem.
Em ambos os casos, então, a interpretação antropológica do homem é “superada”. O homem não é entendido “zoologicamente” como um animal com a diferença específica da racionalidade. Nem lhe é dada nenhuma das outras especificações do homem, igualmente antropológicas, na filosofia ocidental, como “espírito” ou “pessoa” (Humanismusbrief, 66; SZ, § 10). Todas essas determinações do homem são “metafísicas”, ou seja, tomam o homem como uma espécie de ente que deve ser diferenciada das outras espécies. São determinações “ônticas” do homem. Eckhart, com efeito, insiste bastante no fato de que a base da alma não pertence a nenhuma categoria classificável, que não é um modo determinado de ser. “Este poder não tem nada em comum com qualquer outro”, diz ele (Q, 210,13-4/Serm., 220). Não é “isso nem aquilo”. Não pode sequer ser nomeado:
Consequentemente, eu a nomeio agora de uma forma mais nobre (edlere Weise) do que jamais a nomeei, e ainda assim ela rejeita tal nobreza (Edelhelt) assim como qualquer outra forma (Weise) e é elevada acima de ambas. (Q, 163,18-21/Serm., 137)
A base da alma não é um ente, ou um tipo de ente, mas um lugar dentro do qual Deus se revela como Ele é em Seu ser mais verdadeiro.
Da mesma forma, “Dasein” não é apenas um ente, ou uma espécie de ente, que pode ser diferenciado de outros entes (Humanismusbrief, 66). Em vez disso, o Dasein é principalmente uma “relação” (Ver-hältnis) com o Ser como tal. Dasein não é tanto um ente, mas uma relação com o Ser. Dasein não é algo que o homem “possui”, uma propriedade ou característica do homem, mas algo que possui o homem e torna possível o homem e sua relação com outros seres (Was heisst Metaphysik?, 16). “Dasein” não é consciência, seja empírica ou transcendental; não é o ego cogito, a res cogitans, a racionalidade animal. Dasein é algo mais básico e simples do que tudo isso, tornando tudo isso possível.